Fronteiras invisiveis e deslocamentos forcados: impactos da "guerra" de faccoes na periferia de Fortaleza (Ceara, Brasil)/Invisible frontiers and urban displaced: impacts of the "war" of factions in the periphery of Fortaleza (Ceara, Brazil).

AutorFilho, Francisco Cl

1 introdução

Apesar de a violência não ser novidade no cotidiano das grandes metrópoles brasileiras, a situação de conflitos letais atingiu níveis impressionantes. Em 2016, ocorreram 62.517 homicídios no Brasil, alcançando a maior taxa da história, com 30,3 homicídios para cada 100 mil habitantes. As taxas de homicídio na região Nordeste cresceram mais de 80% entre 2006 e 2016. Os estados brasileiros com maiores variações positivas na taxa de homicídio no decênio apresentado foram Rio Grande do Norte (307,5%), Tocantins (152%), Sergipe (150,4%), Maranhão (148,5%), Acre (129,7%), Bahia (116,6%), Amazonas (107,7%), Pará (103,7%) e Ceará (103,2%), todos das regiões Norte e Nordeste do país (BRASIL, 2018).

Fortaleza, capital do estado do Ceará, assim como diversas cidades brasileiras, passou por um período crescente nas taxas de homicídios. Porém, em 2016, a capital cearense observou, em comparação a 2015, uma considerável redução de 14,2% na taxa de homicídios. Em 2015 a taxa de homicídios foi de 46,6 mortes para cada mil habitantes, enquanto em 2016 foi de 39,8, segundo o Anuário Brasileiro da Segurança Pública (2017).

Uma das explicações para essa redução seria o estabelecimento de um "acordo de paz" celebrado por facções criminosas, entre o final de 2015 e segundo semestre de 2016. Segundo Barros (2018, et al., p. 118), essa pactuação consistiu, especialmente por parte das organizações criminosas, da proibição do ciclo de vinganças e homicídios entre os grupos locais. O autor ressalta que essa pacificação não tem relação com uma política de diagnóstico, de segurança pública qualificada ou de políticas de promoção de justiça social, "mas da reorganização de grupos que disputam mercados ilegais de drogas e armas" (BARROS, et al., 2018, p. 118). O acordo entre facções teria sido rompido em meados de 2016, o que explicaria a considerável ampliação em 50,7% do número de homicídios, comparados os anos de 2017 e 2016.

Além do aumento da quantidade de homicídios, o fim do acordo entre grupos criminosos produziu um acirramento da disputa pelo controle do tráfico de drogas na cidade, gerando um impacto nas relações cotidianas de moradores, trabalhadores e servidores públicos que atuam nos territórios em conflito. Essa nova dinâmica conflituosa entre organizações criminosas impactou diretamente as relações sociais na periferia da cidade de Fortaleza.

Esse artigo tem por objetivo evidenciar o impacto do conflito armada urbano entre organizações criminosas no cotidiano de moradores e trabalhadores que atuam na periferia da cidade de Fortaleza, estado do Ceará. É parte de pesquisa realizada no curso de mestrado do Programa de Pós-graduação em direito da Universidade Federal do Ceará, com objetivo de analisar o acesso ao serviço público no contexto do que se denominou estado de exceção na periferia do capitalismo (AGAMBEN, 2004; BERCOVICI, 2004).

A pesquisa delimitou-se ao período de 2016, quando há o fim do "acordo de paz" entre facções criminosas, e 2018, com a conclusão do mestrado do autor. O recorte territorial deu-se na comunidade Novo Perimetral, também conhecida com Gereba, localizada no bairro Passaré, região centro-sul da cidade de Fortaleza. Essa comunidade, juntamente a outra fronteiriça, conhecida como Babilônia, tornou-se uma das referências do impacto da "guerra de facções" na cidade de Fortaleza. Para caracterização do contexto analisado, a pesquisa utiliza a expressão violência urbana armada (BARROS, 2018; SÁ, 2018), valendo-se de expressões "guerra" apenas em sentido metafórico. Compreende-se que tais conceitos jurídicos são profundamente distintos.

A pesquisa é de natureza qualitativa, descritiva e exploratória (DESLAURIERS, KÉRISIT, 2012, p. 130) e utilizou as seguintes técnicas: observação na comunidade, com incursões e vivências em campo, entrevistas abertas em profundidade, relatos em diário de campo, registros fotográficos e análise documental. Foram entrevistados um morador, um policial militar e um defensor público, cujos nomes e características pessoais são preservadas ao longo do texto. Cabe destacar, dentre várias incursões, o percurso em uma viatura da Polícia Militar em território "controlado" por facções e a participação em eventos comunitários promovidos para enfrentar a situação de extrema vulnerabilidade.

Nas primeiras incursões ao campo, o olhar do pesquisador detinha-se especialmente para situação de vulnerabilidade dos moradores do Conjunto Novo Perimetral. Esta comunidade formou-se no entorno do antigo Aterro Sanitário de Fortaleza, conhecido como Lixão do Jangurussu, que funcionou entre 1978 e 1998. Centenas de catadores de material reciclável de diversas regiões da cidade se deslocaram para o Lixão, onde passaram a trabalhar e morar.

Logo no início da pesquisa de campo, também percebia-se a problemática da violência e da insegurança. Durante as entrevistas e no campo de pesquisa, não foram levantadas questões específicas sobre a segurança ou violência no território, mesmo assim o assunto aflorava na medida em que o diálogo ganhava confiança e empatia.

Era comum, ao comentar-se sobre a situação atual da comunidade, falar sobre contexto de agravamento da violência, como quando o morador entrevistado diz que "viver na comunidade hoje, o hoje que eu digo é de três anos pra baixo [...] vem mudando, mudando, mudando muito [silêncio]". Em outro momento, projetando a situação dos atendimentos na unidade de saúde localizada na comunidade, preocupa-se pois, "vai ser atendido todo mundo na mesma policlínica, é isso que eu estou vendo, atender todo mundo aí na mesma coisa. Se for pra melhorar vai melhorar, mas se for pra piorar [silêncio] porque se acontecer de morrer um de lá, vai morrer muita gente".

O participante da pesquisa faz referência aos usuários do serviço público de saúde que residem em comunidades "controladas" por facções criminosas rivais, mas precisam frequentar a mesma Unidade de Saúde.

Por diversas vezes, os relatos sobre a violência eram precedidos ou sucedidos de pausas silenciosas, o que é relevante para análise, pois o silêncio, assim como a palavra, tem suas condições de produção (MINAYO, 2010, p. 323). Ao citar a expressão "facção", alguns participantes da pesquisa mudavam o tom da voz, conotando uma sensação de tensão. O morador participante da pesquisa, ao falar sobre aparentemente "tomar partido" em relação a algum grupo rival exclama, "nem pensar, por amor de Cristo, que aconteça um negócio desses, porque se acontecer um negócio desses, eu nunca fui envolvida, mas se acontecer um negócio desses até eu fico".

A expressão "envolvido" popularizou-se como forma de dizer que indivíduos fazem parte de alguma facção, porém, como aparece nas falas, não necessariamente significa tornar-se praticante de algum fato tipificado como crime. Para o morador entrevistado, o envolvido "ou faz parte da facção ou que tem alguma relação de amizade com quem faz parte [...] você foi visto com quem faz parte você é envolvido, e aí você não sabe o nível de envolvimento que essa pessoa tem, mas aí ele já é estigmatizado". Ou seja, a estigmatização surge como uma representação social sobre o outro e sobre si mesmo, ao se dizer, por exemplo, que "até eu fico [envolvido]".

Essa situação expressa, conforme Loíc Wacquant (2005, p. 33) a estigmatização territorial, que "origina entre os moradores estratégias sociófobas de evasão e distanciamento mútuos e exacerba processos de diferenciação social interna, que conspiram em diminuir a confiança interpessoal", o que acaba por minar "o senso de coletividade necessário ao engajamento na construção da comunidade e da ação coletiva". Entender essa estigmatização social é fenómeno fundamental para o contexto pesquisado pois, conforme Alessandro Baratta (2002, p. 161), a criminalidade revela-se como um "status atribuído a determinados indivíduos", em primeiro lugar, pela seleção dos bens penalmente protegidos e dos comportamentos ofensivos destes bens e, em segundo, "a seleção dos indivíduos estigmatizados entre todos os indivíduos que realizam infrações a normas penalmente sancionadas".

No contexto da "guerra" entre facções e a acirrada disputa pelo domínio de territórios, a noção de "envolvido" é generalizada, estigmatizando todos os moradores da localidade. Para facção presente na comunidade, o simples fato de um morador ser de outra comunidade é motivo para considerá-lo inimigo. É o que diz o policial militar entrevistado, pois:

não é requisito a pessoa ser batizada [iniciada] [para] se intitular de uma determinada facção, mas pelo fato de ela morar naquela comunidade, e aquela comunidade ser de uma facção rival do bairro vizinho, ela não poder transitar, assim, andar a pé [...] pelo fato de ela morar em um determinado local. (Policial Militar. Entrevista em 16.jul.2018). Percebe-se como a conflituosidade criminosa não é necessariamente externa à comunidade, mas um conjunto de relações sociais e comunitárias profundamente enraizado nos territórios periféricos. Como fala o defensor público participante da pesquisa "no geral, a comunidade não quer facção e ela está lá porque a comunidade é muito vulnerável, se a comunidade se fortalecer, sem dúvida esse fenômeno da facção perderia força [...]".

Há uma mudança de "códigos de ética" entre indivíduos praticantes de crimes e a comunidade onde vivem. O defensor público identifica a diferença do "tráfico clássico", que "tinha um código de ética de sobretudo defender a comunidade, e as pessoas muitas vezes se sentiam mais protegidas pelo tráfico do que pela própria polícia". Isso porque:

o tráfico não adotava postura autofágica, não expulsava os seus moradores, por exemplo, a não ser em casos excepcionais que ficavam ali, pontuais, e não chegavam nem a ter esse alcance público que está tendo hoje em termos de refugiados urbanos. (Defensor Público. Entrevista em...

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