Fuma

AutorKeenan, Sarah

O registro de títulos tem sido identificado como uma "tendência globalizante moderna" na legislação de terras, sendo voluntariamente adotada por governos em um crescente número de jurisdições por todo o mundo, e imposto pelo Banco Mundial (BM) e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) em outros (Raff 2003, p.8). Para as jurisdições que adotam o sistema da common law, os sistemas registrais imobiliários--isto é, os cartórios de registros de títulos imobiliários e os marcos legislativos que facilitam sua operação--alteram as bases legais dos títulos, da posse para o registro. Como observado por juízes e juristas, essa mudança é profunda, alterando a própria ideia de "terra" na lei, bem como os processos envolvidos em sua transferência de uma parte para outra. (Pottage 1994; Taylor 2008) (39)

Neste artigo, analiso os efeitos temporais do registro de títulos e sua relação com a produção de raça. Começo examinando o tempo linear produzido por meio da transferência não registrada que se baseava na retrospecção. Argumento que esse tempo linear auxiliou a naturalizar o monopólio multigeracional da aristocracia inglesa sobre a propriedade da terra. Em 1858, o colonizador Robert Torrens desenvolveu um sistema diferente para a transferência de terras na Austrália do Sul, local onde a terra foi considerada como "nova". O sistema Torrens de registro de títulos possibilitou a produção de títulos "limpos", "frescos", que independiam de seus predecessores, eliminando, assim, a necessidade de retrospecção. O sistema Torrens produz títulos inatacáveis (40) por detrás de sua "cortina" e "espelho" que funcionam de modo similar à fumaça e aos espelhos dos mágicos, bloqueando a visão de certas realidades. No caso do registro de títulos, estas realidades são histórias particulares da terra e de relações com a terra. Com base no trabalho de Mawani (2014), argumento que essa operação de registro de títulos nas colónias (settler colonies) (41) pode ser entendida como um processo que "demarcou populações... como vivendo tempos concorrentes e incomensuráveis no assentamento colonial" (42) (Mawani 2014, p. 85); aqueles demarcados como habitantes de um período histórico que agora terminou, são considerados temporários e tratados como resíduos indesejáveis (waste) a serem contidos e removidos da terra, enquanto aqueles demarcados como habitando o futuro da terra, são considerados inatacáveis e a eles é concedido o direito legal de ignorar e excluir o que veio antes deles. Chegando a uma conclusão que ressoa com o trabalho de Ruth Wilson Gilmore sobre racismo, argumento que essas populações demarcadas se materializam como raça. E embora o registro de títulos tenha sido desenvolvido em um contexto colonial, sua produção de raça por meio do bloqueio de histórias particulares com a terra também pode ser vista em outros contextos ainda hoje.

Antes do Registro Público: Titularidade Relativa, Tempo linear

Sincronicidade entre a titularidade e a posse

Historicamente, o sistema do common law para determinar a titularidade da terra não envolve um registro público. Em vez disso, a titularidade da terra é essencialmente uma questão privada com sua transferência sendo realizada por meio de um contrato. Quando disputas surgem, os tribunais não declaram nenhuma das partes "a proprietária" da terra, em contraste, determinam qual das partes em disputa tem o melhor título (the better title) naquele momento (Gray and Gray 2009, p.56). A titularidade é, portanto, relativa, e não absoluta, e, em última instância, se baseia no "puro fato da posse física" (ibid, pp.180-182). Qualquer pessoa que exerça a posse sobre uma terra, incluindo um esbulhador (trespasser) ou um posseiro (squatter), "tem um título perfeitamente bom contra todo o mundo, exceto contra o legítimo proprietário". (43) (44) E mesmo o "legítimo proprietário" (rightful owner), isto é, alguém que possa provar um direito de posse melhor e anterior, pode perder sua titularidade se não retomar a posse da terra por 12 anos. (45)

O princípio da relatividade da titularidade corresponde à impossibilidade legal de ter o domínio direto sobre as terras na Inglaterra (a menos que você seja o monarca). (46) (47) Em vez disso, os sujeitos detêm o domínio de uma estate (48), que é uma "fatia de tempo" na terra (Gray and Gray 2009, p.58). (49) O "título" é o direito de reivindicar direitos sobre a estate. Como argumenta Pottage, em vez de ser uma coisa sobre a qual se tem o domínio pleno, o título é um indicador de status. (Pottage 1998, p. 131) O título a uma estate pode ser perdido se estiver a mais de 12 anos fora de sincronia com a posse da terra. Sob a doutrina da usucapião (adversepossession), se a titularidade sobre a terra não for reivindicada por 12 anos e durante este período alguém (isto é, um "posseiro" [squatter]) exercer a posse sobre ela, haverá uma mudança no status: o/a detentor/a original da titularidade (ou seja, o "legítimo proprietário" supramencionado) será impedido/a de reivindica-la, deixando o posseiro com a melhor reivindicação sobre a terra. Posse e titularidade serão, então, colocadas novamente em sincronia.

A manutenção da titularidade de terras não registradas sob a common law, portanto, requer algo como uma performance contínua do domínio sobre a estate. Esse requisito se encaixa no ideal lockeano de tornar sua a terra ao trabalhar nela, mas também reproduz a seletividade de Locke: tradicionalmente, nem todo trabalho foi considerado capaz de constituir a posse (possession). (50) Os tribunais têm tendido a considerar o trabalho de mulheres, viajantes, servos e outros "outros" como não produzindo uma marca suficientemente permanente sobre a terra capaz de constituir a posse e, assim, garantir o status de titular (Green 1998, p.248). A sincronicidade entre posse e o título que é mantida pela relatividade não inclui, portanto, todas as relações de longo prazo com a terra, mas apenas aquelas que a lei reconhece como um domínio a título de estate (as estate ownership).

Projetando o passado no futuro: transferência de terras na common law

Antes do registro de títulos, a relatividade do common law tornava a transferência um processo arriscado para os prospectivos titulares de uma estate ( estate owners), porque a titularidade não poderia ser estabelecida definitivamente, mas apenas inferida a partir da ausência de reivindicações adversas. (Offer 1981, p.23) Como demonstra o trabalho de Pottage sobre as técnicas legais históricas de transferência de terras, a titularidade sobre a terra era uma "mercadoria frágil", pois sua estabilidade e comercialização dependiam da memória coletiva da comunidade local. (1994, p.361) Nos tempos medievais, rituais públicos elaborados eram realizados quando a terra era transferida com o objetivo de firmar o evento de transferência da titularidade na memória coletiva local (1994, pp.361-362). Como essa memória era necessária para determinar a identidade do titular, e a extensão da sua estate, a duração de um título na common law era produzida localmente. Como escreve Pottage, "as escalas de medição eram elas próprias o produto de um sentido local de tempo e espaço". (51) As relações espaço-temporais foram tramadas não de acordo com o "tempo do relógio", mas de acordo com a temporalidade de uma orientação prática para o mundo. (1994, p.366) Embora a medição do tempo por meio do relógio seja também "uma orientação prática para o mundo" (ver Bastian 2012, abaixo), o que Pottage está enfatizando é a importância das compreensões locais, enquanto opostas às universais, de tempo e espaço para o teor da titularidade. A titularidade relativa dependia e era definida por compreensões locais da terra e das relações com a terra.

Pottage descreve como os rituais medievais envolvendo espadas e cortes de grama foram substituídos por técnicas envolvendo documentos em papel, testemunhos orais e inspeções na terra, mas a natureza ritualística de preparar e verificar esses documentos (têlos assinados e testemunhados, verificando as descrições com os locais) e seu propósito de incorporar o evento de transferência da titularidade na memória coletiva local, permaneceu. (Pottage 1998, pp.135-138) Como observou a antropologista Carol Greenhouse, colocar uma descrição por escrito (em oposição a expressá-la oralmente) oferece um nível de fixidez e certeza que pode facilitar e sistematizar ideias normativas sobre o texto. (1996, p.52) A alfabetização tem sido associada ao tempo linear porque a palavra escrita é entendida como "ancorando um 'ponto base' no tempo, destacando irreversivelmente um momento no tempo, dos ciclos do tempo" (ibid, p.53). (52) A regra de transferência nemo dat quod non habet (você não pode dar o que não tem) baseia-se na premissa de que toda titularidade, todo título, tem um "ponto base" que ancora o título que está sendo transferido. Como escreve Pottage:

A transferência tradicional supunha que os novos proprietários surgissem quando um interest subsidiário era extraído de um direito maior, preexistente, ou quando uma pessoa sucedia a outra como titular de um interest. Em ambos os casos, o domínio presente estava fundado sobre um domínio passado. Para fazer prova do título, era necessário rastrear a "ascendência" de um interest por meio de cada um de seus antecessores até a origem última do título. A transmissão da propriedade era entendida em termos genealógicos. (1998, p.139) (53) A retrospecção é, portanto, a chave para a transferência no common law, mas é impossível provar a "origem última do título", sendo esta um tipo de ponto base/momento místicos em que o título foi legitimamente adquirido pela primeira vez. Em vez disso, os possíveis compradores teriam que se certificar que a genealogia ou a "cadeia" de titularidades tinha sido comprovada até um ponto no tempo após o qual era improvável que qualquer reinvindicação pudesse surgir. Até 1875, esse período era de 60 anos [um período arbitrário possivelmente escolhido porque era...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT