A função revisora dos tribunais ? a questão da valorização das decisões de primeiro grau ? uma proposta de lege ferenda: a sentença como primeiro voto no colegiado

AutorBen-Hur Silveira Claus, Ari Pedro Lorenzetti, Ricardo Fioreze, Francisco Rossal de Araújo, Ricardo Martins Costa e Márcio Lima do Amaral
CargoJuiz Titular da Vara do Trabalho de Carazinho ? RS (4a Região)/Juiz Titular da 2a Vara do Trabalho de Rio Verde ? GO (18a Região)/Juiz Titular da Vara do Trabalho de Encantado ? RS (4a Região)/Juiz Titular da 16a Vara do Trabalho de Porto Alegre ? RS (4a Região)/Juiz Titular da 2a Vara do Trabalho de Gramado ? RS (4a Região)/Juiz do Trabalho ...
Páginas17-28

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“À medida que descemos na escala hierárquica, reduz-se a legitimidade dos magistrados e avolumam-se os recursos, até atingirmos a jurisdição de primeiro grau, que o sistema literalmente destruiu, sufocando-a com uma infernal cadeia recursal que lhe retira a própria ilusão, de que ela poderia alimentar-se, de dispor de algum poder decisório. A legitimi-dade da jurisdição de grau inferior diminui na medida em que aumentam os recursos.”

(Ovídio A. Baptista da Silva)

1. Introdução

Dando prosseguimento à discussão acerca da função revisora dos tribunais e das suas relações com a efetividade da justiça e com a legitimação institucional da jurisdição de primeiro grau, o presente capítulo tem por objetivo examinar as diversas formas de valorização das decisões de primeiro grau de jurisdição e apresentar para o debate uma proposta original a ?m de realizar essa valorização da sentença.

Tem progredido a formação de consenso entre os operadores jurídicos em torno do entendimento de que enquanto não houver uma clara política judiciária e legislativa de prestígio às decisões de primeiro grau de jurisdição, deveremos renunciar à ilusão da efetividade da jurisdição. A necessidade da valorização das decisões de primeiro grau de jurisdição, uma vez assumida como um objetivo a ser criteriosamente perseguido, tem provocado ricas re?exões acerca do modo de se alcançar tal desiderato. Há vários modos de valorizar a jurisdição de primeiro grau. Em síntese, trata-se de conferir maior e?cácia à decisão originária, o que constitui, talvez, a maneira mais produtiva de efetivar a garantia constitucional da duração razoável do processo (CF, art. 5º, LXXVIII). Para MARCOS NEVES FAVA, a atual cultural da recorribilidade exces-siva alimenta a utilização abusiva de recursos, isso porque “... o congelamento da sentença de primeiro grau, até julgamento de?nitivo pelo Tribunal Regional do Trabalho, traduz-se em convite ao recalcitrante, para que recorra, mesmo, obtendo, com isto, farto tempo de não pagar7.

2. A eliminação de recurso da sentença na história

Por vezes, a valorização da sentença é pensada de forma mais aguda, como ocorre quando o modo de sua apresentação é a própria supressão do recurso, realidade histórica vivida, por exemplo, no direito romano clássico, de acordo com a pesquisa de OVÍDIO A. BAPTISTA DA SILVA8. Nessa época, não havia recurso da

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sentença do juiz; o contraditório e o direito de defesa eram exercidos em única instância.

No âmbito do direito estrangeiro, essa foi a solução defendida por MAURO CAPPELLETTI por ocasião da reforma que o processo civil italiano estava por realizar na década de 1970, no que dizia respeito à matéria de fato. Na ocasião, o ilustre jurista propunha que na reforma do CPC italiano de 1942 se eliminasse a possibilidade de recurso para a matéria de fato; o recurso da sentença limitar-se-ia a erros de direito — substancial e processual. O professor da Universidade de Florença estava a sustentar que se preservasse a possibilidade de recurso apenas para matéria jurídica em sentido estrito, não mais se facultando às partes recorrer da matéria de fato, cujo exame ?caria então restrito ao primeiro grau de jurisdição.

Nada obstante tenha assinalado a necessidade da realização de um criterioso julgamento pelo juízo de primeiro grau, MAURO CAPPELLETTI defendia a eliminação da apelação, que era a modalidade de recurso de natureza ordinária que possibilitava às partes recorrer da sentença quanto à matéria de fato. A possibilidade de recurso deveria, no seu entender, ?car circunscrita ao recurso de cassação civil9, que era a modalidade de recurso de natureza extraordinária do sistema italiano destinado ao reexame da matéria jurídica em sentido estrito (portanto, excluído o reexame da matéria de fato). Ao comentar a reforma processual em curso em seu país à época, CAPPELLETTI ponderava:

Bastante mejor es tratar de tener, como en los sistemas anglosajones y en tantos otros, un cuidado juicio de primer grado, ?nal en lo que concierne a las cuestiones de hecho, y abierto solamente a una impugnación por errores de derecho, sustancial y procesal, antes que a un verdadero y propio re-examen del mérito de la causa.10

A supressão de recurso em matéria de fato também foi defendida por magistrados do trabalho integrantes da 15a Região. Ao formular proposta de reforma do direito processual do trabalho brasileiro no ano de 2010, os referidos magistrados postularam que “... o recurso ordinário seja cabível no que se refere a questões de direito, ou seja, não atingindo as matérias fáticas”11.

Por sua vez, registra MOREIRA ALVES que, em alguns sistemas jurídicos ocidentais, existem:
notáveis restrições de talhe diverso à atividade cognitiva do juízo recursal. Merece realce a propensão a limitar às questões de direito — ainda que não em termos absolutos — a cognição da segunda instância. Assim, por exemplo, em Portugal, só em casos raros pode o órgão julgador da apelação modi?car o pronunciamento do tribunal inferior em matéria de fato (Código de Processo Civil, art. 712, n. 1). Os ordenamentos anglo-saxônicos são igualmente refratários, em larga medida, à possibilidade de uma revisão ex novo das quaestiones facti no julgamento do appeal, notadamente no que tange à prova testemunhal, e acima de tudo quando se trata de um veredicto de júri — hipótese ainda frequente nos Estados Unidos, se bem que cada vez menos na Inglaterra, onde o trial by jury tende a desaparecer no campo

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civil. Análoga orientação repercute alhures em importante setor da doutrina, que de algum tempo para cá vem preconizando o regime da instância única para as questões de fato; a tese insere-se no forte movimento de ideias ordenado à maior valorização do procedimento e da decisão de primeiro grau...12

No México, não se admite recurso em matéria trabalhista, conforme pesquisa de ANTÔNIO ÁLVARES DA SILVA13.

3. A eliminação de recurso da sentença no direito trabalhista brasileiro

A eliminação de recurso é solução defendida entre nós pelo jurista LUIZ DE PINHO PEDREIRA DA SILVA.

Entrevistado pela Associação Nacional dos Magistrados dos Trabalho — Anamatra, o magistrado aposentado e professor sustenta que a eliminação de recursos é necessária para desafogar a Justiça do Trabalho, esclarecendo seu ponto de vista da seguinte forma:

Sou até partidário da instância única, porque um jurista argentino amigo meu, a meu convite, fez certa vez aqui, na Justiça do Trabalho, uma conferência sobre a instância única e dizia: ‘Ah, porque a primeira instância pode errar. Muitas vezes, a primeira instância acerta e quem erra é a segunda.’ Então, o que interessa é uma solução rápida e imediata, se possível, do processo.14

No direito processual do trabalho brasileiro, essa forma aguda de valorização da sentença foi adotada pelo legislador no procedimento sumário instituído pela Lei n. 5.584/70, procedimento no qual se eliminou recurso da sentença nas causas de até dois (2) salários mínimos, excepcionada apenas a rara hipótese de violação à Constituição (art. 2º, § 4º)15. A eliminação de recurso da sentença foi proposta também no projeto de lei que instituiu o procedimento sumariíssimo trabalhista, aplicável às causas no valor de até quarenta (40) salários mínimos. Não tivesse sido vetado o projeto de lei nesse aspecto, a sentença proferida no procedimento sumariíssimo não comportaria recurso, salvo nas estritas hipóteses de:
a) violação literal da lei; b) contrariedade à súmula de jurisprudência uniforme do TST; ou c) violação direta da Constituição da República16. O que aumentaria ainda mais a efetividade do procedimento sumariíssimo. Uma das propostas formuladas por FRANCISCO ANTONIO DE OLIVEIRA, para conferir maior efetividade à jurisdição, é a de se elevar

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para 60 salários mínimos o limite do valor da causa para o procedimento sumariíssimo e de se aumentar a alçada especial de 2 para 40 salários mínimos17.

Depois de mencionar os fundamentos adotados pelos autores contrários ao duplo grau de jurisdição, CINTRA, GRINOVER e DINAMARCO argumentam que, não obstante as inconveniências apontadas pelos opositores: é sempre mais conveniente dar ao vencido uma oportunidade para o reexame da sentença com a qual não se conformou. Os tribunais de segundo grau, formados em geral por juízes mais experientes e constituindo-se em órgãos colegiados, oferecem maior segurança; e está psicologicamente demons-trado que o juiz de primeiro grau se cerca de maiores cuidados no julgamento quando sabe que sua decisão poderá ser revista pelos tribunais da jurisdição superior.18

Ainda podem ser encontrados na doutrina outras justi?cativas para a existência do duplo grau de jurisdição, como a puri?cação da sentença, escoimando-a de erros19.

Tais argumentos, no entanto, conforme demonstra MANOEL ANTONIO TEIXEIRA FILHO, não resistem a uma análise mais atenta, principalmente em matéria trabalhista. Segundo esse autor, se fosse levada em conta a insatisfação do vencido, dever-se-ia oferecer ao recorrido, em caso de inversão da sucumbência, novo recurso ordinário, a ?m de aliviar seu inconformismo psicológico. No que tange ao propalado aperfeiçoamento das decisões de primeiro grau, lembra o jurista paranaense que há casos em que “um mau acórdão substitui uma boa sentença”, conforme já observara Ulpiano: “ninguém ignora o quão necessário e frequente é o uso da apelação, porque, sem dúvida, corrige a iniquidade ou a injustiça...

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