A função revisora dos tribunais diante da sentença razoável

AutorBen-Hur Silveira Claus
CargoMestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos ? Unisinos-RS
Páginas35-52

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O jurista designa uma decisão como ‘defensável’ quando na verdade a sua rectitude não pode demonstrar-se por forma indubitável, mas também muito menos se pode demons-trar que ela seja ‘falsa’, se há pelo menos bons fundamentos a favor de sua rectitude.

Karl Larenz

1. Introdução

Em ensaio anterior, examinamos o tema da função revisora dos tribunais sob a perspectiva da efetividade da prestação jurisdicional, com ênfase no exame do método utilizado pelos tribunais no exercício da função revisora das sentenças por ocasião do julgamento dos recursos de natureza ordinária, oportunidade em que se estudou o método utilizado pelos tribunais a partir de uma premissa elementar: o prévio reconhecimento da dimensão hermenêutica do fenômeno jurídico e da consequente discricionariedade ínsita ao ato de julgar.

Naquela oportunidade, sustentamos que incumbe aos tribunais evoluir para uma política judiciária de confirmação da sentença razoável, afirmando não ser recomendável a reforma da sentença apenas porque não seria aquela sentença ideal que o relator proferiria se estivesse no lugar do juiz originário. Uma crítica produtiva logo nos foi apresentada sob a forma de pergunta: — o que é sentença razoável?

A crítica é produtiva por manter em aberto a discussão acerca da função revisora dos tribunais em recursos de natureza ordinária. Além disso, tal crítica é produtiva como elemento necessário à construção de um novo conceito de recorribilidade, que se conforme à garantia constitucional da duração razoável do processo e que supere as distorções provocadas pela atual recorribilidade excessiva, que tem levado o sistema jurisdicional ao esgotamento, com direto prejuízo à efetivação dos direitos e com indireto desprestígio ao próprio Estado Democrático de Direito, que não realiza a reparação dos direitos violados em tempo hábil.

O presente ensaio tem por objetivo responder a essa questão, situando-a no âmbito do tema da função revisora dos tribunais em recursos de natureza ordinária, na perspectiva da efetividade da jurisdição.

2. A sentença razoável na doutrina - Considerações iniciais

À pergunta pela sentença razoável, temos respondido que se trata de uma sentença aceitável, assim considerada uma sentença defensável para o caso concreto diante do direito aplicável1.

A defensabilidade de uma decisão é apurada quando, embora a respectiva adequação não possa ser demonstrada de forma induvidosa, muito menos pode ser demonstrada a sua invalidade, desde que existam argumentos ponderáveis em favor de sua razoabilidade. Citado por Karl Engisch, Larenz apresenta sua concepção de sentença razoável na seguinte formulação: “O jurista designa uma decisão como ‘defensável’ quando na verdade a sua rectitude não pode demonstrar-se por forma indubitável, mas também muito menos se pode demonstrar que ela seja ‘falsa’, se há pelo menos bons fundamentos a favor de sua rectitude.” (ENGISCH, 2008, p. 273.) Voltaremos a essa controvertida questão.

O fascinante tema da sentença razoável está entrelaçado com o tema da discricionariedade judicial e com o tema maior do que significa justiça. Karl Engisch deparou-se com essas intrincadas questões e preferiu iniciar a resposta formulando as seguintes perguntas:

Que significa ‘justiça’? Justiça unívoca, que exclui várias respostas diferentes a uma questão (que exclui, portanto, neste sentido, ‘pluralidade de sentidos’)? Ou não será talvez ‘justiça’ o mesmo que justiça individual, não será solução ‘justa’ o mesmo que solução ‘defensável’ ou algo semelhante — o que continua a deixar em aberto ainda um ‘espaço livre’ para várias respostas divergentes no seu conteúdo mas, quanto ao

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seu valor, igualmente justas? (ENGISCH, 2008, p. 218.)

A compreensão da ideia de sentença razoável principia pelo prévio reconhecimento da incontornável ambiguidade da linguagem da lei.

3. A ambiguidade da linguagem da lei convoca o magistrado sartreano

A ambiguidade da linguagem costuma instalar uma pluralidade de sentidos no texto da lei. É natural que assim seja, pois o significado é sempre algo impreciso. Quando se estuda o método para estabelecer o sentido de uma norma, o recurso aos vários modos de interpretação cumpre papel determinante, especialmente quando de sua articulada combinação, o que, contudo, muitas vezes não elimina a coexistência de mais de um sentido possível para determinada norma diante do caso concreto, e com frequência fala-se então ora no ‘espaço de jogo de significação’; ora fala-se no ‘halo do conceito’; ora fala-se no ‘espaço de livre apreciação’; ora fala-se na ‘textura aberta’ da norma; ora fala-se na ‘penumbra da incerteza’; ora fala-se na ‘teoria da defensabilidade’ das decisões; fala-se na sentença razoável, na sentença aceitável, na sentença equilibrada, na sentença sensata.

A vagueza da linguagem da lei levou um grande jurista a formular a impressiva assertiva teórica de que estamos rodeados de incertezas. Para Herbert Hart, não se pode escapar da ambiguidade da linguagem em que a lei vem formulada, porquanto é da natureza constitutiva da linguagem um determinado grau de imprecisão nas suas expressões. O autor identifica aqui o fenômeno da textura aberta da linguagem da norma, do qual o juiz não pode se desvencilhar senão pelo recurso necessário a um juízo discricional.

Ao fazer a resenha da posição de Herbert Hart, Cristina Brandão acaba por convocar o magistrado sartreano. A figura do homem condenado existencialmente a escolher se corporifica no magistrado confrontado com o caso concreto a resolver. E isso ocorre em face da contingência de que, conforme adverte Cristina Brandão:

[...] a linguagem geral dotada de autoridade em que a regra é expressa passa a nos guiar apenas de uma maneira incerta. Grosso modo, a regra geral apenas parece agora delimitar não mais que um exemplo dotado de autoridade. A regra que proíbe o uso de veículos no parque é aplicável a certa combinação de circunstâncias, mas há outras circunstâncias que a tornam indeterminada. A partir daí, a discricionariedade que é deixada pela linguagem pode ser muito ampla, de modo que, na aplicação da regra, o que ocorre na verdade é uma escolha, ainda que possa ser a melhor escolha, ainda que não arbitrária ou irracional. E a necessidade de tal escolha é lançada sobre nós porque somos homens, não deuses. (BRANDÃO, 2006, p. 57.)

Assim, o magistrado personifica no campo jurídico o homem sartreano condenado à condição existencial de ter de escolher; escolher um entre os sentidos legítimos a serem atribuídos à norma no caso concreto; escolher uma entre as soluções possíveis para o caso.

Em um construtivo esforço hermenêutico para tornar acessível a concepção de Herbert Hart sobre o problema da ambiguidade da linguagem no direito, a consagrada expressão da penumbra da incerteza é apresentada por Cristina Brandão como uma consequência incontornável da circunstância de que “... as leis padecem de uma insuficiência incurável” (2006, p. 57)2. Essa insuficiência é uma consequência incontornável da natureza ambígua da linguagem.

Essa esfera de incerteza foi identificada por Herbert Hart como a ‘textura aberta’ da lingua-gem da norma, de modo que “... toda norma encontrará situações em que sua aplicação é

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incerta, ou seja, situações onde não está claro se a norma é aplicável ou não” (BRANDÃO, 2006, p. 60).

Enfrentada a questão no âmbito da filosofia, a ambiguidade da linguagem adquire uma dimensão ainda mais central para o problema do conhecimento. Aqui, é inestimável a contribuição da filosofia hermenêutica para a superação da filosofia da consciência:

Abandona-se o ideal da exatidão da lingua-gem, porque a linguagem é indeterminada. O ideal da exatidão é um mito filosófico. Esse ideal de exatidão completamente desligado das situações concretas de uso carece de qualquer sentido, como se pode perceber no parágrafo 88 das IF, o que significa dizer que é impossível determinar a significação das palavras sem uma consideração do contexto socioprático em que são usadas. A linguagem é sempre ambígua, pela razão de que suas expressões não possuem uma significação definitiva. Pretender uma exatidão linguística é cair numa ilusão metafísica (STRECK, 2000, p. 152-53).3

Ao examinar a questão da imprecisão da linguagem no âmbito do direito, Lenio Luiz Streck afirma que “As palavras da lei são constituídas de vaguezas, ambiguidades, enfim, de incertezas significativas. São, pois, plurívocas. Não há possibilidade de buscar/recolher o sentido fundante, originário, primevo, objetificante unívoco ou correto de um texto jurídico” (STRECK, 2000, p. 239).

A expectativa do racionalismo iluminista de que a lei pudesse ostentar um sentido unívoco e duradouro não poderia mesmo resistir à força jurígena da dinâmica das circunstâncias de fato. Logo se perceberia que “a mudança das concepções de vida pode fazer surgir lacunas que anteriormente não haviam sido notadas” e que há lacunas que se manifestam apenas de forma superveniente “porque entretanto as circunstâncias se modificaram” (ENGISCH, 2008, p. 287). Além das lacunas trazidas pelo decurso do tempo e pela modificação das circunstâncias de fato, a incerteza do sentido da lei é antes uma...

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