A função revisora dos tribunais ? a questão do método no julgamento dos recursos de natureza ordinária

AutorBen-Hur Silveira Claus/Ari Pedro Lorenzetti/Ricardo Fioreze/Francisco Rossal de Araújo/Ricardo Martins Costa/Márcio Lima do Amaral
CargoJuiz Titular da Vara do Trabalho de Carazinho ? RS (4a Região)/Juiz Titular da 2a Vara do Trabalho de Rio Verde ? GO (18a Região)/Juiz Titular da Vara do Trabalho de Encantado ? RS (4a Região)/Juiz Titular da 16a Vara do Trabalho de Porto Alegre ? RS (4a Região)/Juiz Titular da 2a Vara do Trabalho de Gramado ? RS (4a Região)/Juiz do Trabalho ...
Páginas111-129

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O principal defeito dos sistemas jurídicos da civil law “... es la profunda desvalorización del juicio de primer grado, con la conexa glorificación, si así puede decirse, de los juicios de gravamen”. (CAPPELLETTI)

1. Introdução

O presente ensaio objetiva contribuir para o debate acerca da função revisora dos tribunais nos recursos de natureza ordinária.

O tema é tratado sob a perspectiva da efetividade da prestação jurisdicional, com ênfase no exame do método utilizado pelos tribunais no exercício da função revisora das sentenças por ocasião do julgamento dos recursos de natureza ordinária. O método utilizado pelos tribunais é examinado a partir de uma premissa elementar: o prévio reconhecimento da dimensão hermenêutica do fenômeno jurídico e da consequente discricionariedade ínsita ao ato de julgar.

2. A morosidade do Poder Judiciário

A morosidade é a principal crítica dirigida ao Poder Judiciário. Trata-se de uma crítica procedente – os processos judiciais demoram demais, regra geral. O Estado, que avoca o monopólio da jurisdição, deve prestar a justiça em prazo breve: a reparação do direito violado deve ocorrer logo. Se a garantia fundamental da duração razoável do processo se torna apenas uma promessa ilusória, então a Constituição não estaria sendo respeitada e o Estado Democrático de Direito estaria falhando. A dimensão do problema ganha maior relevo em face da crescente demanda de massa por justiça diante da insuficiente estrutura dos serviços judiciários.

O método utilizado pelos tribunais no exercício da função revisora no julgamento dos recursos de natureza ordinária tem infiuência direta na efetividade jurisdicional e no processo institucional de legitimação da jurisdição de primeiro grau.

3. O método na filosofia

Antes de falar sobre o método utilizado pelos tribunais no exercício da função revisora, é conveniente dedicar dois parágrafos para discorrer sobre o método na filosofia.

A palavra método é de origem grega. Methodos significa caminho para chegar a um fim. Descartes acreditou que poderia chegar a verdades claras e distintas se contasse com um método científico para a investigação dos fenômenos. Esse caminho para a descoberta da verdade Descartes acreditou ter alcançado no Discurso do método, obra que publicou em 1637: “desfazermo-nos de todas as opiniões que recebemos e reconstruir, de novo e desde os fundamentos, todos os sistemas dos nossos conhecimentos”.1 Mais recentemente, a filosofia veio a perceber a impossibilidade de o cientista livrar-se de todos os preconceitos, propondo um retorno à concepção de Aristóteles, concepção segundo a qual o método é determinado pelo objeto, conforme ensina o filósofo alemão HANS-GEORG GADAMER.2

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A filosofia fenomenológica concebe o método como o próprio movimento do pensamento “às coisas mesmas”. É no âmbito do próprio objeto que o método se dá. O método não é externo ao objeto para o qual se destina: “Toda a procura retira do procurado sua direção prévia”, diz HEIDEGGER.3 Recorremos a ERNILDO STEIN para melhor explicar essa relação existente entre o objeto da investigação e o método escolhido para a investigação. Diz o autor que Heidegger, na obra Ser e Tempo:

Descobre que o método se determina a partir da coisa mesma. A escada para penetrar nas estruturas existenciais do ser-aí é manejada pelo próprio ser-aí e não pode ser preparada fora para depois dar acesso ao objeto. Não há propriamente escada que sirva para penetrar no seu ‘sistema’. A escada já está implicada naquilo para onde deveria conduzir. O objeto, o ser-aí, já sempre traz consigo a escada. Há uma relação circular. Somente se sobe para dentro das estruturas do ser-aí, porque a gente já se move nelas. Esta antecipação não crítica do método é consequência inevitável da circularidade do processo hermenêutico. Quem, para desenvolver seu método, parte da compreensão como estrutura fundamental do homem, sempre pressupõe de algum modo em exercício aquilo que visa com o método.4

A conclusão é a de que o método já está sempre de certa forma pressuposto quando nos dirigimos para o objeto de nossa investigação científica. Não é possível uma disjunção radical entre objeto e método. Objeto e método estão reciprocamente implicados no fenômeno do conhecimento. E assim é também porque o objeto não nos é dado, mas construído a partir do que sabemos ou pensamos saber sobre ele.

Em suma, pois, a questão do método depende essencialmente da postura do sujeito cognoscente frente ao objeto.

4. A função revisora dos tribunais e o problema da efetividade da jurisdição

Aos tribunais cabe julgar os recursos interpostos contra as sentenças — julgar a impugnação feita pela parte recorrente à sentença. Trata-se da função revisora do tribunais.

O método adotado pelos tribunais no julgamento dos recursos de natureza ordinária tem importância decisiva para a efetividade da jurisdição. Em linhas gerais, pode-se estabelecer o raciocínio de que a efetividade da jurisdição diminui à medida que aumenta a reforma das sentenças. A recíproca também é verdadeira: aumenta a efetividade da jurisdição à medida que as sentenças são confirmadas. Essa correspondência está intimamente ligada aos princípios constitucionais da celeridade e da duração razoável do processo, uma vez que não se pode admitir, dentro de nossa dinâmica constitucional atual, um processo lento como sendo efetivo. A realidade fática e os aspectos sociais já demonstraram a insuficiência de um processo moroso, ainda que razoável sob o aspecto meramente técnico.

Outro aspecto do problema: a reforma das sentenças estimula recursos. Esse aspecto é relevante, pois, conforme o magistério de OVÍDIO A. BAPTISTA DA SILVA, “a legitimi-dade da jurisdição de grau inferior diminui na medida em que aumentam os recursos”.5 Uma verdadeira pletora de recursos congestiona os tribunais de 2º grau — nos tribunais superiores esse quadro é ainda mais dramático —, com sério déficit para a efetividade da jurisdição. Estatísticas revelam que o índice de recorribilidade, em determinadas fases processuais, chega a mais de 100%, o que indica uma cultura jurídica voltada à recorribilidade, a exigir

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uma ação orgânica e concertada das diversas instâncias do poder jurisdicional.

Por certo não se está falando do direito de recorrer em si, mas do abuso, da procrastinação. Nesse aspecto, as penas processuais são importante instrumento pedagógico para a mudança da praxe. Todavia, é na valorização do julgado de 1º grau que reside o papel principal para a construção de uma nova cultura jurídica de recorribilidade. O que não se pode mais aceitar é a perniciosa cultura de se tentar reduzir o primeiro grau de jurisdição à condição de mera instância de passagem.

Afirma-se que o método adotado pelos tribunais tem importância decisiva para a efetividade da jurisdição porque a legitimidade da jurisdição de primeiro grau passa pelo reconhecimento — e pela confirmação — da autoridade judicial que resolveu o conflito na respectiva comunidade. E do método adotado pelos tribunais no exercício de sua legítima função revisora depende em grande medida o fortalecimento da jurisdição de primeiro grau.

5. Entre a “sentença razoável” do juiz e a “sentença ideal” para o relator — um falso dilema a superar

Se há uma relação de pertença entre método, objeto e sujeito cognoscente, logo se percebe que, para acertar na escolha do método, é necessário antes acertar ao definir a finalidade da função revisora dos tribunais no julgamento dos recursos de natureza ordinária. Em linhas gerais, adotada a perspectiva da efetividade da jurisdição, pode-se considerar que a finalidade da função revisora dos tribunais no julgamento de recursos de natureza ordinária é examinar se a sentença conferiu uma solução legítima à causa — uma sentença razoável —, no que respeita àqueles aspectos objeto do recurso.

Com sua jurisdição delimitada à matéria específica objeto do recurso, ao tribunal cabe verificar se a sentença conferiu uma solução legítima à causa (uma sentença razoável), e não cogitar se a decisão proferida seria exatamente aquela sentença ideal que o relator proferiria se estivesse no lugar do juiz originário. Quando adota um tal método de trabalho, o tribunal parece desconhecer o irrecusável caráter hermenêutico da aplicação do direito, ignorando a natureza discricionária ínsita ao ato de julgar.

Embora possa causar alguma perplexidade a afirmação de que o ato de julgar implica discricionariedade do magistrado, em face de nossa formação positivista, tal postulado deve ser recebido com o espírito de acolhimento presente nas palavras que ocorreram a KARL ENGISCH para introduzir estudo desse tema: “Mais difícil do que demonstrar que existe o ‘poder discricionário’ no direito é demonstrar que isso é, não apenas inevitável, mas também algo de bom.”6

O tema da discricionariedade judicial será retomado em seguida. Por ora, importa destacar as consequências que decorrem da adoção do método da sentença ideal pelo tribunal no exercício da função revisora. É claro que o resultado prático é negativo para a efetividade da jurisdição, pois a probabilidade de reforma da sentença aumenta consideravelmente quando a função revisora é exercida sob inspiração da sentença ideal para o relator, a qual tende a ser distinta da sentença prolatada...

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