Fundamentação das decisões judicias: sua importância para o processo justo e seu 'desprezo' numa sociedade que tem pressa

AutorCarla da Silva Mariquito
CargoMestranda em Direito Processual na UERJ. Advogada.
Páginas147-180
Revista Eletrônica de Direito Processual REDP. Volume VIII.
Periódico da Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito Processual da UERJ.
Patrono: José Carlos Barbosa Moreira www.redp.com.br ISSN 1982-7636
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FUNDAMENTAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAS: SUA IMPORTÂNCIA PARA
O PROCESSO JUSTO E SEU “DESPREZO” NUMA SOCIEDADE QUE TEM
PRESSA
Carla da Silva Mariquito
Mestranda em Direito Processual na UERJ.
Advogada.
Sumário: 1. Introdução. 2. O dever de fundamentar as decisões e sua evolução. 3. O
processo justo e fundamentação das decisões judiciais. 3.1- O processo justo e sua
relação com a fundamentação das decisões judiciais - um instrumento a viabilizar o
contraditório participativo. 3.2- A fundamentação das decisões, a exigência de
publicidade e a fiscalização do processo justo. 4. A fundamentação das decisões
judiciais na sociedade contemporânea e a tendência de padronização decisória. 5.
Conclusão. 6. Referências Bibliográficas
1. Introdução
O estudo da evolução do Estado e seus reflexos no Direito é incrível. A
intimidade existente entre cultura e processo aguça a curiosidade, conduzindo ao
descobrimento das várias facetas que um mesmo instituto pode receber de acordo com o
contexto social no qual está inserido e de acordo com a sociedade sobre a qual incide.
O cerne do presente estudo está na análise do dever de fundamentar as decisões
judiciais, inicialmente norma infraconstitucional e atualmente elevada ao nível
constitucional, como um dos componentes do processo justo e confrontá-lo com o
intuito para o qual foi criado, qual seja controlar as arbitrariedades ocorridas no
processo, em sua aplicação prática.
O Estado Democrático Constitucional exige que a atuação do aplicador do
Direito esteja interligada às normas constitucionais. Por este motivo, a servidão do juiz
à lei, quer dizer, a limitação do poder de interpretação judiciária que visava tão somente
assegurar seu império1, deve ser substituída por uma conduta que exalte o contraditório,
1BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A motivação das decisões judiciais co mo garantia inerente ao
Estado de Direito. Temas de Direito Pr ocessual, 2ª série, 2ª Ed. São Paulo: Saraiva, 1988, p.89
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que também atinge o magistrado, e que demonstre que as alegações das partes e suas
provas efetivamente interferiram, influenciaram no livre convencimento judicial2.
Apenas pode-se obter certeza a respeito da observância do contraditório
participativo e das demais garantias que formam o processo justo por meio da
fundamentação das decisões judiciais, forte instrumento de segurança contra a
arbitrariedade e o abuso no exercício do poder pelo juiz. Exige-se que as decisões sejam
fundamentadas com base nas normas e valores constitucionais e não somente na
intuição e opinião individual e sigilosa do magistrado.
Somente através do cumprimento do dever de fundamentação das decisões
judiciais, seus destinatários poderão avaliar o grau de imparcialidade do magistrado, o
respeito à igualdade de tratamento e principalmente se o contraditório participativo foi
observado, dentre as demais garantias esparsas ao longo da Constituição, cuja
observância fica evidente ao longo de uma fundamentação atenciosa.
Entretanto, esta ilustre garantia processual, na atual sociedade complexa de
massas3, recebe a imposição de inúmeros óbices ao seu pleno desenvolvimento e
observância. Fator que é intensificado pelo acolhimento no ordenamento brasileiro da
perspectiva quantitativa de eficiência processual, o que remete o sistema à contração do
acesso a justiça, deixando órfãos cidadãos que apenas dispõem do Poder Judiciário para
socorrer-se na lesão, ou ameaça de lesão, ao seu direito fundamental.
Por fim, objetiva-se chamar a atenção para a grandiosidade desta garantia, que
serve de instrumento para a aferição da observância das demais e que está ameaçada de
perder-se diante da pressa constante em que vive a sociedade, focada em números e não
na qualidade e peculiaridades da justiça a ser realizada no caso concreto.
2. O dever de fundamentar as decisões judiciais e sua evolução
2WANBIER, Teresa Arruda Alvim. A influência do contraditório na co nvicção do juiz:
fundamentação de sentença e de acórdão. In Revista de Processo. Revista dos Tribunais: São Paulo, nº
168, fevereiro/2009, p. 55.
3 BAPTISTA DA SILVA, Ovídio. Democracia Moderna e Processo civil. In: GRINOVER, Ada
Pellegrini; DINAMARCO, Cândido; WATANABE, Kazuo (Org.). Participaçã o e P rocesso. São Paulo:
Ed. RT, 1988: O autor observa que há na sociedade contemporânea uma ―confusão de valores‖. ―A
origem desta crise de valores que submerge a civilização ocidental está intimamente ligada a e stas
concepções políticas e a um fenômeno sem precedente na história humana, que é a chamada ‗civilização
de massa‘‖. E continua a analisar a influência da sociedade contemporânea sobr e a eficiência do processo:
―Esta busca incontida de justiça [nas sociedad es de massa], que se reflete no Direito processual através de
um fenômeno q ue se convencionou chamar de ‗efetividade‘ do processo, ou ‗efetividade‘ do direito,
agrava-se em virtude de uma outra contingência peculiar à sociedade moderna,altamente complexa e
moralmente desorientada, que é a crescente dependência dos esquemas e estruturas jurídicas a que o
homem moderno está sujeito. Perdidas as referencias comportamentais baseadas nos padrões religiosos e
éticos, a ‗sociedade afluente‘ vê-se obrigada a orientar-se, cada vez mais, por meio dos preceitos
jurídicos ‖
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Não é necessário fazer uma digressão histórica sobre o dever de fundamentar as
decisões judiciais, tampouco discutir os reflexos de sua ausência ou insuficiência.
Analisar-se-á apenas, a evolução da motivação das decisões judiciais até o nível
constitucional, simultaneamente à evolução do Estado.
A evolução do Direito é pautada e inspirada pela evolução da sociedade. Existe
uma relação íntima e circular entre a sociedade e o Direito, ambos influenciando-se
respectivamente. Consequentemente, o Direito reflete as ideologias, anseios, e
preocupações desta sociedade4, sempre e independentemente do período histórico
analisado.
O dever de fundamentar as decisões judiciais não é recente, nem tem origem na
Constituição Federal de 1988, ao contrário, existia antes mesmo de o Brasil configurar-
se como Estado soberano, pois enquanto colônia regulava-se conforme as leis
portuguesas da época5, o Código Filipino, que já previa tal dever, regulado por normas
infraconstitucionais.
Apesar da emancipação política do Brasil, as normas processuais relativas a
fundamentação das decisões judiciais não se afastaram das de Portugal6, que aqui
produziam efeitos e mantinham sua a natureza infraconstitucional, por meio de uma
portaria de 31 de março de 1824. Assim, desde que não contrariassem a independência e
soberania brasileiras, as normas portuguesas continuariam a ser aplicadas7.
O Regulamento 737 de 1850 pôs termo a dependência legislativa do Brasil em
relação a Portugal, pois foi a primeira norma, genuinamente nacional, a determinar a
obrigatoriedade da fundamentação das decisões judiciais, prevendo no artigo 232 que
4CAPPELLETTI, Mauro. Problemas de Reforma do Processo Civil nas Sociedades Conte mporâneas,
In: Revista de Processo, RT-SP, nº 65, ano 17, janeiro-março/92, p. 127/143: Nesta obra é importante a
seguinte afirmação: ―Quero aqui sublinhar uma constatação: se é verdade, consoante já disse Franz Klein
há quase um século, que o direito processual é um espelho da cultura d a época, isso se torna ainda mais
evidente no campo das provas.‖ E continua: ―Direi lo go – antecipando u ma elabo ração posterior que
aqui, novamente, o processo se revela como espelho da cultura de uma época.‖
5 NOJIRI, Sérgio. O dever de fundamentar as decisões judiciais. 2ª Ed., São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2000, páginas 27 e 28. (Coleção estudos de direito de proce sso de Enrico Tullio Liebman; 16)
6 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A motivação das decisões judiciais como garantia inerente ao
Estado de Direito. Temas de Dir eito Processua l, 2ª série, 2ª Ed. São Paulo: Saraiva 1988, p.83. Ensina
que o Código Filipino, que estatuiu a Ordenação do Livro, III, Título LXVI, § 7º, assim dispunha: ―E para
as p artes saberem se lhes convé m ap elar, ou agravar das sentenças definitivas, ou vir com embargos a
elas, e os Juízes de mor alçada entenderem melhor os fundamen tos, por que os juízes inferiores se movem
a condenar, ou absolver, mandamos que todos os nossos desembargadores ,e quaisquer outros Julgadores,
ora sejam letrados, ora o não sejam, declar em especificadamente em suas sentenças definitivas, assi m na
primeira instancia, como no caso da apelação, ou agravo, ou revista, as causas, em que se fundaram a
condenar, ou absolver, ou a confirmar, ou revogar‖. Destaque-se que ficava sujeito a paga mento de
multa, em benefício da parte, o juiz que infringisse tal preceito.
7 MARQUES, José Frederico. Manual de Dire ito Processual Civil. 13. Ed. São Paulo: Saraiva 1990. vol
I, página 52.

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