Gênero, raça e classe no Brasil: os efeitos do racismo estrutural e institucional na vida da população negra durante a pandemia da covid-19/Gender, race and class in Brazil: the effects of structural and institutional racism on the lives of the black population during the covid-19 pandemic.

Autordos Santos, Fernanda Barros

A pesquisa em tela visa avaliar os impactos da covid-19 no cenário brasileiro para a população negra. Para tanto, se debruça sobre os índices oficiais da desigualdade socioeconômica e os atos governamentais empreendidos ao longo do período pandêmico. Com ênfase para as populações historicamente marginalizadas do acesso a bens e poder, segundo a raça, classe, gênero e as diferenças macrorregionais. Paralelamente, procura averiguar o fundo público suscitado pelo Ministério da Saúde direcionado à salvaguarda da vida dos brasileiros e a conduta do Poder Executivo nesse período.

Hipóteses do estudo

* A pandemia causada pela covid-19 teria aprofundado a desigualdade racial no país e seus "efeitos seriam desiguais de acordo com a cor/raça, classe, gênero e origem regional",

* As ações e inações do Poder Executivo e do Ministério da Saúde teriam corroborado para o aumento da mortalidade pela covid-19 no Brasil, iniciada em 2020.

Discussão e método

Trata-se de estudo qualitativo com análise de fontes bibliográficas e documentais, para observar as ações do Governo Federal para a mitigação dos efeitos da pandemia quanto ao trabalho, renda, saúde e insegurança alimentar. Para tanto, a pesquisa se debruçou sobre as homepages de ministérios setoriais, no período de 2018-2021. Em simetria, a pesquisa acomodou fontes primárias e secundárias vinculadas aos dados fomentados pela Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios (PNAD) contínua (2018-2020), Dieese e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) de (2019-2021). Em correspondência, buscou desfiar as portarias, discursos e decretos governamentais (2019-2020) verificados no portal do Legislativo e Executivo Federal. Seguida pela revisão de literatura no tocante aos índices socioeconômicos e, em atenção, às necessidades materiais de sobrevivência da classe trabalhadora e os atos institucionais aplicados. Vis à vis a literatura do feminismo negro, com ênfase para o sexismo, racismo e classicismo, com vistas ao debate no seio das disparidades sociais afuniladas com a pandemia da covid-19. Partindo do conceito da interseccionalidade visa capturar os efeitos estruturais e dinâmicos da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Sobretudo quando observadas as diferentes agendas identitárias na pós-modernidade (Hall,2006), bem como o conjunto de demandas de políticas públicas desenhadas da relação entre movimentos sociais identitários e Estado, o feminismo negro nos permite refletir sobre as sociedades patriarcais, classistas, sexistas, racistas e heteronormativas (Davis, 2011). Em simetria, Akotirene (2019) defende que o pensamento interseccional explica a matriz de opressão cishetorossexista, etária e divisora do trabalho. Segundo a autora, é a interseccionalidade que dá a instrumentalidade teórico-metodológica à inseparabilidade estrutural do racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado produtores de avenidas identitárias em que mulheres não-brancas são atingidas pelo cruzamento e sobreposição de gênero, raça e classe. Portanto, Oyewùmí (2020) sustenta a necessidade de reflexão sobre como outras formas de opressão e desigualdade estão presentes na sociedade, cruzando-se com as opressões de gênero. Sendo, desse modo, crucial questionar em que medida o marcador "gênero", em primeiro plano, pode revelar ou ocultar outras formas de opressão.

Em suma, ao acomodarmos o feminismo negro, segundo Crenshaw (2002), a partir da interseccionalidade captamos as consequências estruturais e dinâmicas da correlação entre dois ou mais eixos de subordinação. O pensamento interseccional analisa como as opressões geradas pelo racismo, o patriarcalismo, classe social e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras identidades. De modo análogo, Akotirene (2019) analisa que a interseccionalidade instrumentaliza as feministas negras no cerne da criticidade política e compreensão das identidades subalternas impostas a preconceitos, subordinações de gênero, de classe e raça e às opressões estruturantes da matriz colonial moderna. Tendo em vista o legado da escravidão para os descendentes e suas consequencias para as populações indígenas e africanas no Brasil, com ênfase para o racismo à brasileira (GONZALEZ,2016).

Introdução

Haja vista o fenômeno epidêmico causado pelo vírus covid-19, em 26 de fevereiro de 2020 foi declarada emergência de saúde pública, em 3 de fevereiro de 2020, em São Paulo (OLIVEIRA et al, 2020). Sendo assim, os estados que ocupavam, na segunda quinzena de maio de 2020, os primeiros lugares no ranking de casos de covid-19 foram: São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará, Amazonas e Pará. Assim como, no mesmo período, regiões e bairros com índices de letalidade acima da média nacional 5,7%. A exemplo de São Paulo, cujo bairro de Brasilândia, bairro com concentração de população pobre negra expressiva, concentrando mais de 50% da população residente negra e a segunda maior quantidade de favelas, registrou, no final de maio de 2020, 4.943 casos de COVID-19 confirmados e a maioria das mortes: 209 óbitos entre confirmados e suspeitos (OLIVEIRA et al, 2020, p.5). Em patamar diametralmente oposto, no extremo oposto da cidade, os bairros centrais e da zona sul da cidade, com população branca mais expressiva, apresentavam as menores taxas de contaminação e óbito. De acordo com Oliveira et al (2020), os territórios mais negros da cidade são marcados pela distribuição desigual de leitos de UTI: 60% estão no centro. Em comparação, segundo as pesquisadoras, Fortaleza e Ceará concentraram 21.389 casos e 2.120 óbitos até o final do mês de maio de 2020. E os locais de extrema vulnerabilidade, e que dependem do Sistema Único de Saúde (SUS), são os mais afetados pela pandemia (OLIVEIRA et al, 2020, p.6).

Em agosto de 2020 foram 3.089 casos de infecção pelo coronavírus e 119 mil mortos, segundo Ministério da Saúde (BRASIL, 2020). Segundo a Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), em meados de abril, a quantidade de óbitos relacionados à população negra quintuplicou. Os dados fornecidos pelo Governo Federal foram de pouco mais de 180 para mais de 930. Outrossim, a instituição revelou que a quantidade de brasileiros negros hospitalizados por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) causada por coronavírus aumentou para 5,5 vezes. Em perspectiva comparada, o aumento de mortes de pacientes brancos foi bem menor, nas mesmas duas semanas, o número chegou a pouco mais que o triplo. O número de brasileiros brancos hospitalizados aumentou em proporção parecida. As pesquisas preliminares indicaram a explosão de casos de negros que são hospitalizados ou morrem por Covid-19. Principalmente descortinaram as desigualdades raciais no Brasil: entre negros, há uma morte a cada três hospitalizados por SRAG causada pelo coronavírus; já entre brancos, há uma morte a cada 4,4 hospitalizações (ENESP, 2020). Cerca de 80% da população negra brasileira depende do sistema Único de Saúde (Instituto Polis, 2020).

Neste sentido, o recorte quanto à raça e cor apresenta particularidades associadas ao racismo estrutural, institucional e ambiental que aprofundam as ilações concernentes à raça e à classe no Brasil. Ou seja, as desigualdades raciais e socioeconômicas expuseram as vicissitudes relacionadas aos serviços sociais básicos, cujo atendimento à saúde se tornou condição sine qua non para sobrevivência da comunidade negra e pobre. De acordo com os Dados do "Painel de Monitoramento Covid-19" elaborado pela Clínica da Família Zilda Arns (2020), na Comunidade do Alemão, Rio de Janeiro, em 28 de Abril de 2020, foram 1.187 casos suspeitos do novo coronavírus e apenas 15 casos diagnosticados, o que demonstra o enorme gargalo de testagem nessa localidade. Convém atentar para o fenômeno da subnotificação e ausência de testagem em massa, no início da covid-19, pelo governo brasileiro. Causando consequências graves às populações pobres e negras. Segundo Góes et al (2020), a população negra apresenta os piores índices de autoavaliação de saúde quando comparados aos brancos. Em outros termos, Dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) constatou que a população negra apresenta prevalências maiores de hipertensão 44,2% e diabetes 12,7%, quando comparada à população branca 22,1% e 6,2%, respectivamente, superando a prevalência nacional de ambas comorbidades (Brasil, 2017). O mesmo acontece em relação à doença cardíaca 7,0%, à asma 8% e às doenças negligenciadas, a exemplo da tuberculose (Brasil, 2017). Em linhas gerais, as pesquisadoras destacam uma maior prevalência da doença falciforme na população negra do país em relação aos não-negros (Góes et al, 2020,p.4). Em síntese, esse cenário ilustra que a população negra apresenta risco adicional frente à pandemia pelo Sars-CoV-2, com comorbidades graves. Além destes agravos, fazem parte do grupo de risco para Covid-19, assim como indivíduos com idade acima de 60 anos, portadores de doenças imunossupressoras e hematopoéticas e pacientes em cuidados intensivos World Health Organization (WHO, 2020). Corroborando aos dados acima, as comunidades quilombolas inseridas nas regiões com maior número de mortes por covid-19 (2020) foram: Norte, Sudeste e Nordeste, sendo 4.703 casos confirmados e 170 óbitos. No perfil das mortes a grande maioria eram homens, com mais de 60 anos de idade (ARRUTI, 2021).

A Organização das Nações Unidas já apontava, em 2001, que a população negra era SUS dependente. Ou seja, a organização internacional identificou que além da renda e do local de residência, as variáveis gênero e raça são essenciais na demarcação do perfil epidemiológico da população. Em confluência ao dado apontado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 67% da população negra do Brasil era dependente do SUS (ONU, 2001, p.5).

  1. A distribuição socioeconômica da população negra no mercado de trabalho anterior a pandemia covid-19

    No que tange ao diagnóstico socioeconômico, de acordo com IBGE (2019)...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT