Gender privileges and access to academic discourse in the field of criminal Sciences/Privilegios de genero e acesso ao discurso academico no campo das ciencias criminais.

AutorGindri, Eduarda Toscani
CargoTexto en portugues - Ensayo

Introducao

A partir da problematizacao provocada pela epistemologia feminista, o presente estudo visa a discutir a construcao de espacos de fala e discussao da criminologia critica no Brasil, bem como do direito penal e do direito processual penal sob uma otica da construcao de genero. Para tanto, ira comparar a composicao de genero das pessoas que ocupam os espacos de privilegio como palestrantes em eventos de criminologia, direito penal e processo penal de abrangencia nacional ou internacional realizados no Brasil. Alem disso, para compreender o campo de modo geral, o trabalho investiga tambem essa composicao nos grupos de trabalho relacionados as ciencias criminais nos eventos do Instituto de Pesquisa Direito e Movimentos Sociais (IPDMS), da Associacao Brasileira de Sociologia do Direito (ABRASD), e do Conselho Nacional de Pesquisa em Direito (CONPEDI), O objetivo geral e comparar as duas amostras para verificar se ha paridade.

O trabalho e realizado atraves de uma primeira fase de pesquisa exploratoria da literatura cientifica nacional e internacional a respeito da critica feminista a ciencia e, especificamente as ciencias criminais, a partir de um debate epistemologico que identifica consequencias profundas nao somente da masculinizacao dos espacos de privilegio na ciencia, mas tambem da adocao de um ideal positivista de ciencia, mesmo na chamada critica juridica. Em um segundo momento, e realizada a analise de conteudo da programacao e anais de 19 eventos cuja composicao e construida a partir da selecao de trabalhos pelo sistema double blind review, realizados entre os anos de 2012 e 2016. Alem disso, analisamos o conteudo da programacao de eventos cuja participacao e dada por convites para a realizacao de palestras, participacao em paineis, mesas ou realizacao de conferencias. A analise e dada pela verificacao da composicao de genero desses eventos, bem como as tematicas cruzadas com a divisao por genero. Por isso, a analise e quanti-qualitativa.

1 Dialogos entre criminologia e epistemologia feminista: reconstruir lugares e producoes de conhecimento

O campo da epistemologia feminista (1) tem unido esforcos na critica a producao de conhecimento moderno, dividindo, dentre as suas variadas nuances, o objetivo de problematizar o lugar da mulher na ciencia e na pratica intelectual. Na historia ocidental, Schiebinger destaca que a historia das mulheres na ciencia nao e linear, mas marcada por regressos e progressos de acordo com as condicoes sociais e culturais (SCHIEBINGER, 2001). Segundo a autora, a "generizacao da ciencia" foi um processo acentuado no final do seculo XVI11, quando as mulheres foram obrigadas a deixar as instituicoes cientificas, o que so aconteceu atraves de uma serie de prescricoes sociais que prepararam o terreno para que essa exclusao fosse tomada como justa e legitima. Nesse conjunto, a autora chama de teoria da complementaridade o discurso legitimador para a ausencia feminina que declarava que as desigualdades eram naturais e a uniao entre homem e mulher (numa heterossexualidade compulsoria) era a uniao de opostos complementares (SCHIEBINGER, 2001), na qual cada um assumia papeis sociais opostos. Essa retorica designava para a mulher o cuidado da familia e da casa, portanto, o espaco privado, e o dominio do publico era designado ao masculino, no qual localizavam-se a ciencia, a politica, as atividades do Estado.

Dentro desse esquema, a feminilidade veio a representar um conjunto de qualidades antiteticas ao ethos da ciencia. As virtudes ideais da feminilidade--requeridas para as alegrias da vida domestica --eram retratadas como falhas pessoais das mulheres no mundo da ciencia. Um numero crescente de anatomistas e homens de ciencia defendia que o trabalho criativo nas ciencias jaz alem das capacidades naturais das mulheres: as mulheres, voltadas como eram ao imediato e pratico, eram incapazes de discernir o abstrato e universal (SCHIEBINGER, 2001, p. 143).

Construiu-se a nocao de que as mulheres "eram repositorios para tudo o que nao era cientifico: numa era cientifica as mulheres deviam ser religiosas; numa era secular elas deviam ser as guardias da moral; numa sociedade contratual elas deviam fornecer os lacos do amor" (SCHIEBINGER, 2001, p. 144). O ingresso das mulheres nas carreiras cientificas modernas tem maior evidencia a partir dos movimentos das decadas de 1870 e 1880, o que nao significa que estiveram fora de toda a producao cientifica e intelectual ate esse periodo. Alem disso, aquela foi uma abertura que privilegiava mulheres de origem europeia, brancas e de classes altas das sociedades. Como ressalta hooks (1995), nos contextos marcados pelo racismo, pelo sexismo e pela estrutura de classe, a opcao por carreiras cientificas ou intelectuais era muito mais distante das realidades das mulheres negras. Isso tanto em razao dos obstaculos impostos pela vida material, da dupla e tripla jornada, ou da associacao a uma imagem vinculada a estereotipos:

O sexismo e o racismo atuando juntos perpetuam uma iconografia de representacao da negra que imprime na consciencia cultural coletiva a ideia de que ela esta neste planeta principalmente para servir aos outros. Desde a escravidao ate hoje, o corpo da negra tem sido visto pelos ocidentais como o simbolo quintessencial de uma presenca feminina natural organica mais proxima da natureza animalistica e primitiva (hooks, 1995, p. 468).

As decadas de 1960 e 1970 sao expressivas pelo aumento das mulheres nas academias, preocupadas em entender os mecanismos de producao das desigualdades estruturais na sociedade. Foi nesse periodo que autoras americanas articularam a palavra genero com um significado em oposicao ao determinismo biologico que ligava normativas e expetativas sociais diferentes para cada corpo sexuado (SCOTT, 1995). Para Scott, o termo foi proposto por autoras que defendiam que a pesquisa sobre as mulheres nao so abordaria novos temas, mas tambem iria mexer no paradigma das disciplinas, propor uma reavaliacao critica do trabalho cientifico, o que dependeria de uma articulacao complexa dessa categoria, em esforcos no sentido de articula-la com as categorias de classe social e raca, e de ultrapassar as formulacoes meramente descritivas (SCOTT, 1995).

A conceituacao do genero, no entanto, nao e estavel nas discussoes feministas, ja que cada pensadora foca em determinados aspectos dessa categoria. Adotando a nocao de genero em Harding, cinco aspectos sao ressaltados (HARDING, 2008): a) masculinidade e feminilidade nao possuem essencias, nao estao ligadas de maneiras universais as diferencas sexuais e nao sao sinonimos de homem e mulher; b) as relacoes entre os generos sao hierarquicas, sendo que o masculino e mais valorizado; c) o genero e uma propriedade dos individuos, da estrutura social e das estruturas simbolicas; d) as relacoes cientificas de genero nao sao estaticas, pois as mudancas sociais vao alterando a compreensao das exploracoes nas relacoes de genero; e e) "o genero e uma lente teorica, metodologica analitica, atraves da qual alguem pode examinar instituicoes, suas culturas, suas praticas, incluindo as afirmacoes e crencas das pessoas em culturas especificas" (HARDING, 2008, p. 114).

Harding (2008) acredita que ha uma potencia no conceito de genero para que sirva como lente analitica na compreensao nao apenas de identidades ou individuos, mas de instituicoes e de construcoes valorativas. Schiebinger (2001), assim como Harding (2008), entende que e possivel estudar o genero na ciencia como uma instituicao:

O genero no estilo de ciencia e significativo, porque a longa exclusao legal das mulheres das instituicoes cientificas foi escorada por um elaborado codigo de comportamentos e atividades, tao apropriadamente masculinos ou femininos. Suposicoes absurdas que cercam a questao do genero na ciencia ajudam nocoes absurdas nao formuladas sobre quem e cientista e do que trata a ciencia e como essas nocoes historicamente colidiram com expectativas sobre mulheres. Compreender o genero no mundo profissional da ciencia pode ajudar a cultivar novos comportamentos e a solidificar boas relacoes entre os sexos no interior de universidades, industrias, governo e vida domestica (SCHIEBINGER, 2001, p. 141).

Para Harding (2008), o conhecimento moderno afirmou-se como racional e objetivo, que era autonomo, possivel, universal e independente dos valores pessoais e das relacoes de poder, optando por um ideal de objetividade atemporal, estatica, inerte, que rejeitava que o sujeito pesquisador tivesse relacoes com a ciencia (BANDEIRA, 2008). Harding conclui que a visao da ciencia moderna considera dois mundos: um que vale a pena ser compreendido pelos pressupostos de uma teoria totalizadora, e outro de subjetividade, emocoes, valores, inconsciente, musica, poesia, da ameaca iminente a racionalidade cientifica (HARDING, 1993). E nesse segundo mundo que o sistema de poder de genero situa o ideal de feminino e designa para aqueles e aquelas cujos corpos sao "nao masculinos" ou fora da norma. Para Harding, no "exame da critica feminista a ciencia, devemos, portanto, refletir sobre tudo o que a ciencia nao faz, as razoes das exclusoes, como elas conformam a ciencia precisamente atraves das ausencias, quer sejam elas reconhecidas ou nao" (HARDING, 1993, p. 12-13).

Esse segundo mundo e tambem o mundo dos colonizados. Sob a perspectiva decolonial, a construcao do conhecimento na modernidade e produto de uma sistematica repressao de imaginarios, saberes, simbolos, modos de conhecer e produzir conhecimento que nao serviram para a dominacao. Assim, foi "seguida pela imposicao do uso dos proprios padroes de expressao dos dominantes [...] as quais serviram nao somente para impedir a producao cultural dos dominantes, mas tambem como meios muito eficazes de controle social e cultural" (QUIJANO, 1992, p. 2).

Para Grosfoguel, a exclusao das mulheres da producao do conhecimento e um elemento do processo de consolidacao do privilegio epistemico...

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