Governança corporativa e ações preferenciais - dilema do legislador brasileiro

AutorFernando Shayer
Páginas75-86

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O governo federal realizou recentemente alguns esforços no sentido de modernizar e desenvolver o mercado de capitais brasileiro. No início deste ano, entrou em vigor a Lei 10.303, que alterou, em alguns pontos significativamente, as leis das sociedades por ações e de mercado de capitais. A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) expediu as Instruções 358 e 361, que contêm regras mais rigorosas sobre a divulgação de fatos relevantes e ofertas públicas para a aquisição de ações. O Conselho Monetário Nacional, por, meio das Resoluções 2.829 e 2.850, autorizou que os fundos de pensão aumentassem a proporção de suas carteiras investida em ações listadas em segmentos da Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa) que sujeitam as companhias a regras mais rígidas de "governança corporativa", entendida, pela CVM, como "o conjunto de práticas que tem por finalidade otimizar o desempenho de uma companhia ao proteger todas as partes interessadas".1 O Conselho de Gestão da Previdência Complementar, por meio da Resolução 1, exigiu que as en-tidadés de previdência complementar prestassem contas aos seus participantes sobre sua atuação nas assembleias das companhias abertas em que investem. O Banco Nacional de Desenvolvimento Económico e Social (BNDES) tem pressionado empresas brasileiras a aderirem ao "Novo Mercado" da Bovespa, segmento com regras rígidas de governança corporativa, que proíbe a emissão de ações sem direito a voto.2 A CVM publicou uma cartilha contendo determinadas "recomendações sobre governança corporativa", em que pressionou as companhias a adotarem práticas de governança corporativa mais rígidas, incluindo-se a concessão de direito de voto a ações preferenciais em determinadas matérias importantes, tais como alteração do objeto social, redução do dividendo obrigatório, fusão, incorporação, cisão, e operações com partes relacionadas.3

Em linhas gerais, todos esses esforços visam dar mais proteção e garantias aos in-

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vestidores minoritários, dotando-lhes de um maior número de mecanismos para fiscalizarem e monitorarem as ações dos controladores, e receberem mais informações sobre as companhias.

A ideia é a de que ao se restringir os benefícios que os controladores podem auferir às custas dos minoritários e a diferença entre o nível de informação detida pelos controladores, de um lado, e os minoritários, de outro, aumentará a quantidade de investidores, e diminuirão os descontos feitos por tais investidores na aquisição das ações. Na literatura do mercado de capitais, menos benefícios privados de controle4 e assimetria informacional aumentam o número de investidores e a liquidez do mercado.5

Por trás desses esforços governamentais está a noção de que um governo consegue desenvolver um mercado de capitais por meio de leis e regulamentos (e em particular, por aqueles que ofereçam maior tutela aos investidores). Segundo António Kandyr, um dos deputados responsáveis pela condução do processo legislativo que levou à promulgação da Lei 10.303: "como condição necessária para se atingir um mercado de capitais pleno, a experiência, no âmbito internacional, tem demonstrado ser imprescindível que o poder legislativo cumpra a função de instituir mecanismos legais adequados para a proteção dos interesses daquele que investe sua poupança em atividade produtiva, tornando-se acionista de uma sociedade anónima. Aquele que atende a um apelo público para a capitalização de um empreendimento, confiando seus recursos a terceiros, de quem dependerá o sucesso de seu investimento, faz jus a que seus interesses tenham uma proteção minimamente adequada"6 (destaques nossos).

Como se verá na primeira seção deste trabalho, ainda que intuitiva, particularmente para aqueles que, como nós, residem num país de direito codificado, esta proposição teórica de causalidade entre leis e desenvolvimento financeiro é de difícil comprovação empírica.

Num passo adiante, o governo brasileiro também pressupõe que está fazendo as mudanças legais e regulamentares necessárias. Não basta mudar, é preciso mudar corretamente. A dificuldade aqui, logicamente, é maior, já que o sucesso ou fracasso das modificações depende, em larga medida, de se atingir um ponto de equilí-

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brio que, de um lado, estimule o controlador a manter a sua companhia aberta, no mercado, e, de outro, atraia o minoritário, coibindo eventuais oportunidades de apropriação indevida por parte do controlador.

Ao buscar esse ponto de equilíbrio, o governo deve levar em conta o contexto económico, social e político em que se insere, presentemente, o nosso mercado de capitais. A segunda seção deste trabalho aponta para os riscos desses contextos serem deixados de lado, e de se formular políticas governamentais baseadas num "ideal" de realidade, distante daquela que se verifica atualmente no Brasil. Ou seja, os riscos de se implementar políticas governamentais que funcionam, em outros mercados de capitais mais desenvolvidos, justamente porque tais contextos são muito diferentes dos nossos, especialmente no que diz respeito à política de juros e tributária.

Assim, o que se busca compreender é, até que medida, num país com altas taxas de juros e sistema tributário caótico como o Brasil, políticas rígidas de governança corporativa, tais como aquelas trazidas pelas leis e regulamentos mencionados anteriormente (as quais, ressalte-se, em muitos casos funcionam nos Estados Unidos e no Reino Unido, onde as taxas de juros são baixas e a política fiscal incentiva a produção e o crescimento) ajudarão o crescimento do nosso mercado.

Em particular, destaca-se, no curso desta análise, o caso das ações sem direito a voto, que se tornaram, recentemente, as grandes vilãs do mercado brasileiro. Nesse ponto, são apresentadas e discutidas algumas das diversas razões pelas quais, no momento económico e societário atual do Brasil, faz pouco sentido ao governo pressionar para que as companhias brasileiras deixem de emitir ações sem direito a voto.

Iniciemos, assim, essas discussões, investigando, de pronto, até que ponto um governo consegue desenvolver um mercado de capitais por meio de leis e regulamentos que ofereçam maior tutela legal aos minoritários, algo que tem sido denominado na literatura académica de "Teoria de Lei e Finanças".

1. Nexo de causalidade entre leis e desenvolvimento financeiro

A proposição teórica de que existe uma relação de causalidade entre leis (aqui referidas genericamente, para incluir outros tipos de regras obrigatórias emanadas do Estado) e desenvolvimento financeiro tem sido alvo de inúmeros testes empíricos e tem originado debates interessantes.

Uma primeira linha de trabalhos, conduzidos por Stigler (1964), Jarrell (1981) e Simon (1989),7 comparou dados específicos dos Estados Unidos, buscando determinar se as ações lançadas no mercado norte-americano após a promulgação da lei de mercado de capitais de 1933 (que proporcionou mais proteção aos acionistas minoritários) tiveram um desempenho melhor do que aquelas lançadas anteriormente a tal lei (descontado o desempenho global do mercado), e conclui que essa melhora não se verificou empiricamente.8 Bentson

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(1964)9 expandiu a análise para a lei de mercado de capitais de 1934, que trouxe exigências mais rígidas com relação à divulgação de informações pelas companhias abertas, concluindo que a lei de 1934 também não teve um impacto positivo mensurável no desempenho das ações negociadas na Bolsa de Valores de Nova Iorque.10

Uma segunda linha de trabalhos, mais recentes, utilizou, como amostra, dados comparativos de diferentes países. Diferentemente daqueles autores, La Porta, Lopes-de-Silanes, Shleifer e Vishny (1998)11 concluíram que pode ser comprovada empiricamente a existência de uma alta correlação entre maior tutela legal aos minoritários e diversas medidas de desenvolvimento financeiro. Pela conclusão, não é de se surpreender que os trabalhos tiveram grande . repercussão no mundo académico e também junto às autoridades de diversos países, inclusive o Brasil. António Kandyr, por exemplo, os citou na seguinte passagem: "estudos recentes demonstram que o nível de proteção legal dos investidores é umfa~ tor decisivo para. que as empresas tenham maior aptidão de captar recursos públicos, pois a ausência de instrumentos aptos a repelir a expropriação de acionistas minoritários e credores traz como consequência o desestímulo e o desinteresse do investidor (Raphael La Porta et alii, in Investor Pro-tection and Corporate Governance)"12 (destaques nossos).

Menos pela conclusão atingida, mas mais pelo método empregado pelos autores, esses trabalhos foram alvo de inúmeras críticas (como se Verá a seguir, não sem uma grande dose de razão)'. Em linhas gerais, os autores compararam dados atinentes às tutelas legais oferecidas aos minoritários em 49 diferentes países, agrupando-os de acordo com a origem do respectivo ordenamento jurídico, isto é, os de origem francesa, alemã, escandinava e de direito consue-tudinário (Estados Unidos, Reino Unido e Comunidade Britânica). Em seguida, os autores estabeleceram critérios para medir o nível de proteção aos minoritários em cada país. Os critérios escolhidos (aos quais denominaram "direitos anti-conselheiros", numa alusão ao conflito de interesse verificado entre administradores e acionistas) eram os seguintes:

  1. a possibilidade de o investidor enviar, pelo correio, uma procuração de voto para que alguém exercesse, em seu lugar, tal direito nas assembleias;

  2. a ausência de uma exigência legal para que as ações fossem depositadas antes de proferido o voto por meio de procuração;

  3. a existência dò mecanismo de voto múltiplo;

  4. a presença de mecanismos legais coibindo a opressão dos minoritários pelos conselheiros;

  5. a existência de um direito de preferência; e

  6. a verificação do direito de acionistas detendo 10%...

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