Greve e interdito proibitório: incompatibilidade entre instrumento processual destinado à tutela da posse e o livre exercício de direito fundamental de titularidade dos trabalhadores

AutorAlberto Emiliano de Oliveira Neto
CargoProcurador do Trabalho e Mestre em Direito do Trabalho pela PUC/SP
Páginas66-90

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Introdução

O contrato de trabalho apresenta peculiaridades que o diferencia dos contratos civis. Certamente, as fragilidades que acometem ao trabalhador requerem tutela específica do ordenamento jurídico. Da mesma forma, o contrato de trabalho garante ao trabalhador condição diferenciada. Infelizmente, a condição de sujeito titular de direitos fundamentais muitas vezes decorre do contrato de trabalho. Quer dizer: a efetividade dos direitos fundamentais para certos segmentos da sociedade está diretamente ligada ao vínculo contratual trabalhista.

Igualmente, em uma leitura histórica dos movimentos associativos, é possível concluir que os trabalhadores há muito tempo descobriram as possibilidades de uma atuação em conjunto voltada aos seus interesses. Especificamente, o surgimento do movimento sindical decorre, dentre outros aspectos, da necessidade apurada pelos trabalhadores em unir suas forças em prol de um interesse comum, qual seja, melhores condições de trabalho.

Definitivamente, a união associativa dos trabalhadores é instrumento imprescindível e eficaz em prol da defesa efetiva de seus interesses. Os sindicatos de trabalhadores cumprem papel importante na efetivação dos direitos sociais dos trabalhadores.

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Nesse contexto, a paralisação das atividades laborais atua como ferramenta à disposição dos trabalhadores quando infrutífero o processo de negociação coletiva instaurado com o objetivo de garantir-lhes melhores condições de trabalho. A greve é medida necessária nas hipóteses em que o empregador se mostra relutante a reconhecer que o progresso da organização que dirige depende em grande parte da força de trabalho cedida pelos trabalhadores contratados.

Semelhantemente à liberdade sindical, o direito de greve percorreu longajornada marcada por lutas em prol de seu reconhecimento e efetivação. Em sua origem, a participação em movimentos coletivos de paralisação das atividades chegou a ser tipificado criminalmente, objetivando-se desencorajar a adesão dos trabalhadores. Felizmente, as democracias ocidentais alcançaram estágio em que a greve foi erigida ao status de direito fundamental de titularidade de todos os trabalhadores, em regra. Esse é o caso da República Federativa do Brasil, cuja Constituição Federal de 1988, em seu art. 9e, assegura especificamente o direito de greve.

Entretanto, a efetividade do direito fundamental em questão continua em constante ameaça. Vários são os ataques ao livre exercício do direito de greve nas últimas décadas, seja por conta de atuação dos empregadores, dos legisladores e até dos aplicadores do direito. Um dos instrumentos que vem atuado em detrimento ao livre exercício do direito em questão é o interdito proibitório. Trata-se de instrumento processual de caráter cautelar destinado à tutela do livre exercício da posse. De forma contraditória e equivocada, referido mecanismo vem sendo utilizado para obstar o livre exercício do direito de greve pelos trabalhadores.

O presente trabalho objetiva uma breve análise do conflito existente entre o direito de greve e o direito de posse a ser tutelado por meio do interdito proibitório para então demonstrar a inaplicabilidade de referido instrumento para questões relacionadas ao movimento paredista.

1. Direito de greve

A efetivação dos direitos dos trabalhadores requer a atuação efetiva frente ao poder econômico do empregador. Daí por que surge como indispensável a atuação coletiva objetivando melhores condições de trabalho. A união dos trabalhadores em prol dos seus interesses é a origem do movimento sindical, cujo fundamento jurídico reconhecido é o princípio da liberdade sindical.

Nessa busca por melhores condições de trabalho, os trabalhadores vislumbram a negociação coletiva como instrumento eficaz de interlocução

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com o empregador voltado à inserção de cláusulas ao contrato de trabalho. Parte-se do pressuposto de que as condições estabelecidas na legislação não são suficientes para proporcionar ao trabalhador as condições necessárias ao seu ofício, restando ao processo da negociação coletiva a tarefa de implementar ganhos efetivos aos interessados.

Entretanto, o processo de negociação coletiva nem sempre é capaz de proporcionar aos trabalhadores ganhos efetivos. Em muitas oportunidades, o polo mais forte da relação contratual trabalhista, o capital, adota postura intransigente frente ao postulado pelos trabalhadores, restando a esses, como último recurso, a paralisação do trabalho acordado contratualmente objetivando causar prejuízo ao empregador, bem como instá-lo a retornar ao processo de negociação. Importante transcrever a lição do Ministro do Tribunal Superior do Trabalho Mauricio Godinho Delgado a respeito1:

"A negociação coletiva, ao cumprir seus objetivos gerais e específicos, alcança uma situação de pacificação no meio econômico-profissional em que atua. Entretanto, no transcorrer de seu desenvolvimento ou como condição para fomentar seu início, podem os trabalhadores veicular instrumento direto de pressão e força, a greve, aparentemente contraditório à própria ideia de pacificação.

A greve é, de fato, mecanismo de autotutela de interesses; de certo modo, é exercício direto das próprias razões, acolhido pela ordem jurídica.

(...)

Embora proibida nos primeiros tempos do sindicalismo e do Direito Trabalho, assim como nas distintas experiências autoritárias viven-ciadas ao longo dos últimos dois séculos, a greve afirmou-se nas sociedades democráticas como inquestionável direito dos trabalhadores. Essa sua afirmação, em um quadro de restrição geral à autotutela, justifica-se do ponto de vista histórico e lógico. É que se trata de um dos principais mecanismos de pressão e convencimento possuído pelos obreiros, coletivamente considerados, em seu eventual enfrentamento à força empresarial, no contexto da negociação coletiva trabalhista."

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Para Amauri Mascaro Nascimento2, a greve é a "abstenção coletiva, combinada e pacífica do trabalho para a reivindicação de algo perante o empregador". José Carlos Arouca3, por sua vez, conceitua a greve como:

(...) instrumento de força da classe trabalhadora que se exerce através da suspensão do trabalho para forçar o empregador diretamente ou no seu conjunto a atender suas reivindicações, podendo, também, dirigir-se contra o Estado para os mesmos fins.

Ainda, o conceito de Mauricio Godinho Delgado4:

(...) a paralisação coletiva provisória, parcial ou total, das atividades dos trabalhadores em face de seus empregadores ou tomadores de serviços, com o objetivo de exerce-lhes pressão, visando a defesa ou conquista de interesses coletivos, ou com objetivos sociais mais amplos.

A greve, portanto, pode ser entendida como mecanismo coletivo de suspensão das atividades laborais organizada coletivamente pelos trabalhadores em prol de determinado interesse.

O direito de greve é reconhecido em instrumentos internacionais, tais como o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais5 (art. 8e, alínea d), a Convenção n. 98 da OIT6 (art. 2e, alínea b) e a Declaração Sociolaboral do Mercosul, art. 11.

Da mesma forma, o direito de greve é reconhecido em ordenamentos jurídicos de vários países. O legislador constitucional italiano, por exemplo, legou ao legislador ordinário as condições de exercício do direito de greve, sem, contudo, deixar de reconhecê-lo no âmbito da Constituição italiana em seu art. 407. A Constituição da Espanha, de 1978, por sua vez, além de assegurar o direito de greve, faz menção aos serviços essenciais:

Artículo 28 (...)

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  1. Se RECONOCE el derecho a la de los trabajadores huelga para la defesa de SUS intereses. Que regule la ley el ejercicio de este derecho esblecerá las garantías precisas para aseguar el mantenimiento de los servicios esenciales de la comunidad.

    Ainda, a Constituição da República Portuguesa, de 1974, em seu art. 57, assegura o direito de greve proíbe o lockout:

  2. É garantido o direito à greve.

  3. Compete aos trabalhadores definir o âmbito de interesses a defender através da greve, não podendo a lei limitar esse âmbito.

  4. A lei define as condições de prestação, durante a greve, de serviços necessários à segurança e manutenção de equipamentos e instalações, bem como de serviços mínimos indispensáveis para ocorrer à satisfação de necessidades sociais impreteríveis.

  5. É proibido o lockout.

    Especificamente, a Constituição Federal de 1988 assegura o direito de greve nos seguintes termos:

    Art. 9e É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender.

    § 1e A lei definirá os serviços ou atividades essenciais e disporá sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade.

    § 2- Os abusos cometidos sujeitam os responsáveis às penas da lei.

    A greve, portanto, é direito garantido, disciplinado e limitado pela lei, pelas cláusulas dos acordos coletivos e pela jurisprudência dos Tribunais8. Nessa linha, defende-se que o direito de greve goza do status de direito fundamental de titularidade dos trabalhadores a ser exercido coletivamente a partir da deliberação de assembleia convocada pelo sindicato da categoria ou pelos próprios trabalhadores interessados. Nessa linha, a lição de Mauricio Godinho Delgado, segundo qual a greve detém natureza jurídica de direito fundamental de caráter coletivo resultante da autonomia privada coletiva inerente às sociedades democráticas9.

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    Obviamente, não há que se falar em direito fundamental absoluto. Os direitos fundamentais, em geral, sofrem limitações. O direito de greve, especificamente, é regulado no âmbito infraconstitucional. Trata-se da Lei n. 7.783/1989, cujas limitações são óbvias, objetivando tutelar direitos e garantias...

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