Habeas Corpus para animais: admissibilidade do HC .Suíça

AutorFernando Bezerra de Oliveira Lima
CargoBacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia
Páginas225-262

Ver nota 1

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Introdução

Desde o ano passado, uma ação judicial incomoda o imaginário jurídico nacional devido à projeção que alcançou pela corajosa atitude dos seus impetrantes. Um grupo de defensores e ativistas do Direito Animal impetrou um habeas corpus em favor da chimpanzé "Suíça" que se encontrava privada de sua liberdade de locomoção, relegada ao sufoco

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de uma cela que não atendia ao mínimo esperado de apreço pela sua dignidade, no zoológico de Salvador.

A questão da jurisdicionalização dos animais ainda é bastante polêmica, principalmente, porque raríssimas foram as hipóteses em que se intentaram ações no âmbito jurídico nacional, nas quais figurasse na demanda a premissa da proteção aos direitos animais.

Sem dúvida, os operadores do direito ainda não se encontram abertos ao novo microssistema jurídico que se afigura e hesitam em admitir que animais são sujeitos de direito e podem gozar da tutela jurisdicional para afirmá-los. O objetivo deste artigo será, portanto, dissecar esse novo paradigma que tanto incomoda o direito ortodoxo.

Para tanto, enfrentaremos questões processuais, quais sejam os pressupostos processuais e as condições da ação que se apresentam como um dos maiores entraves à admissibilidade desse habeas corpus "Suíça". Procuraremos deixar claro o quão possível é o pedido em face de inexistir qualquer vedação no ordenamento pátrio, quão útil é a medida para a proteção da liberdade dos animais e efetivação do comando constitucional que proíbe as práticas que submetam os animais à crueldade, bem como a plena subsunção dos animais no rol dos capazes de ser parte por lhes ser garantida a titularidade de direitos.

A aceitação da exordial do habeas corpus "Suíça" já significou, por si própria, uma atitude avançada do meio jurídico,2pois impôs à comunidade acadêmica a necessidade de debater as premissas nas quais está assentado o direito tradicional,3bem como tornou-se um precedente inédito e importante ao admitir que ações versando sobre direitos animais

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possam tramitar plenamente em instâncias judiciárias por preencherem os pressupostos processuais e as condições da ação.4Ademais, a decisão do juiz que funcionou no polêmico processo tornou-se referência, já que admitiu os animais no rol dos sujeitos de direito.

O douto magistrado ao receber a petição inicial do famoso habeas corpus impetrado em favor da chimpanzé "Suíça", sensatamente, preferiu incitar a atitude dialógica a curvar-se pusilânime aos ditames do Direito Tradicional e sintetizou sua manifestação na magistral sentença que por ora transcrevemos um trecho:

Tenho a certeza que, com a aceitação do debate, consegui despertar a atenção de juristas de todo o país, tornando o tema motivo de amplas discussões, mesmo porque é sabido que o Direito Processual Penal não é estático, e sim sujeito a constantes mutações, onde novas decisões têm que se adaptar aos tempos hodiernos. Acredito que mesmo com a morte de "Suíça", o assunto ainda irá perdurar em debates contínuos, principalmente nas salas de aula dos cursos de Direito, eis que houve diversas manifestações de colegas, advogados, estudantes e entidades outras, cada um deles dando opiniões e querendo fazer prevalecer seu ponto de vista. É certo que o tema não se esgota neste "writ", continuará induvidosamente, provocando polêmica. Enfim. Pode, ou não pode, um primata ser equiparado a um ser humano? Será possível um animal ser

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liberado de uma jaula através de uma ordem de

Habeas Corpus5Destarte, o oferecimento de um instrumento que proporcione aos animais a fruição plena de uma das mais básicas expressões dos seres vivos, a liberdade de locomoção, representa a primeira manifestação de que o sistema jurídico está modificando sua postura perante as criaturas vivas.6Do contrário, seres vivos impossibilitados de gozar plenamente sua liberdade de ir e vir por ação abusiva ou ilegal alheia, sem que tenham reconhecida sua condição de habilitados na ordem legal para titularizar direitos e, em conseqüência lógica, ter e poder valer-se de meios à sua proteção, acabam por relegados a um patamar de indignidade.

1. Conceito de "alguém" na norma do artigo 5º, LXVIII

O habeas corpus é o remédio constitucional concebido para a proteção do direito líquido e certo à liberdade de locomoção. Serve então ao resguardo da primeira expressão (mais básica) do direito à liberdade: ir e vir (movimentação e permanência).

Contudo, a prescrição constitucional não limita sua impetração apenas à disposição dos seres humanos. Não há na norma positiva

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qualquer restrição ao manejo deste instrumento em favor de animais quando estes encontrem-se cerceados em sua liberdade de locomoção por ato abusivo ou ilegal. Dessa forma, em face da ausência de vedação à luz do direito positivo não enxergamos qualquer óbice que desautorize esta medida, a não ser que empunhemos a faceta de um Direito apenas imaginado a serviço dos homens cujas interpretações exclusivistas alimentam e embasam situações de agressão e desrespeito aos animais.

A norma constitucional prevista no art. 5º, LXVIII faz remissão ao conceito de "alguém" como elemento de legitimação para se fazer valer do instrumento do habeas corpus.7Assim, só está autorizado à condição de legitimado ao pólo ativo de um habeas corpus quem se encaixar na definição "alguém".

Os impetrantes do famoso habeas corpus "Suíça" valeram-se do recurso à hermenêutica extensiva8para alicerçar o fundamento jurídico para reivindicação deste writ. Dessa forma, pleiteiaram a ampliação do sentido da palavra "alguém" inserta na disposição autorizadora do manejo deste remédio heróico para abarcar os chimpanzés e, conseqüentemente, os demais animais.9Ademais, não podemos esquecer que a hermenêutica constitucional deve servir ao razoável, ao proporcional, o que significa que forçar uma interpretação excludente para os direitos fundamentais é olvidar e repudiar o próprio sistema jurídico. A abordagem do termo "alguém" revelada pela norma constitucional consagradora do writ habeas corpus

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não fez qualquer acepção de pessoas, não podendo ser o dispositivo constitucional interpretado de forma restritiva, notadamente quando se trata de direitos e garantias fundamentais.

Neste caso, não se está a defender uma interpretação fora dos limites da norma, ao contrário, apenas propugnamos uma interpretação mais consentânea aos ditames da disposição legal. Assim, entendemos que a utilização da espécie hermenêutica extensiva não ofende a mens legis, em sentido oposto, a torna mais adequada ao contexto em que será aplicada. Ademais, como leciona o professor Tércio Sampaio, a hermenêutica extensiva não significa impor sentidos que não estivessem incluídos ao conteúdo da norma, mas apenas resgatar um sentido que sempre esteve ínsito à prescrição normativa, entretanto nunca o fora explicitado.10Nessa mesma direção entende Norberto Bobbio quando propugna que com a interpretação extensiva busca-se uma redefinição de um termo constante da literal disposição apresentando-lhe um novo sentido, embora a prescrição normativa conserve-se a mesma.11Heron Santana, comentando a intenção dos impetrantes deste habeas corpus, entende que o termo "alguém", não obstante sua aplicação, normalmente, restrinja-se aos seres humanos, poderia ser aplicada aos animais mais próximos da espécie humana na escala evolutiva.12Dessa forma, a análise semântica e etmológica do termo "alguém"13nos remete ao vocábulo "pessoa" que nos impõe os sinônimos "ser moral ou jurídico" e "indivíduo". "Ser moral ou jurídico" é noção cujo conceito

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será depreendido pela filosofia moral e jurídica, qual seja todo aquele que esteja integrado ao âmbito de consideração moral e jurídica. "Indivíduo", por sua vez, apresenta-se como exemplar de uma espécie qualquer, orgânica ou inorgânica,14acatando, assim, uma definição ainda mais ampla para abarcar uma expressão dentre a qual a noção de animais plenamente se amolda.

O postulado de que "na norma não há palavras inúteis" serve-nos a confirmar nossa perspectiva, haja vista se o texto literal não impõe restrições à utilização deste remédio constitucional em favor de animais, ao contrário avaliza porque a terminologia que a letra legal utiliza engloba a noção de animais, então, autorizado se está para o manejo desta garantia em benefício destas criaturas. Para nós, esta questão resta, então, superada.

2. Pressupostos processuais
2. 1 Capacidade de ser parte

Analogicamente, guardadas as devidas proporções obviamente, a capacidade de ser parte seria o equivalente processual da capacidade de direito no âmbito dos direitos substanciais. Ou seja, é a aptidão genérica para figurar como sujeito de uma relação jurídica processual.15É a faculdade de ser parte em uma demanda, a possibilidade de provocar uma relação processual que se refira a si em algum dos seus pólos.

A habilitação para ser susceptível desta atribuição passa por todos aqueles que detenham capacidade jurídica material, ou seja figurem enquanto sujeito de direito. Assim, não é atributo apenas acatável aos que gozem da condição de personalidade jurídica, porquanto alcança qualquer ente capaz de direitos e obrigações na ordem jurídica.16Basta que o direito outorgue-lhe certa gama de direitos subjetivos, ou até

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mesmo processuais, para que a chancela da capacidade de ser parte já se conforme. Nesse sentido, a lição de Marcos Bernardes de Mello:

Soa de um ilogismo...

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