Hans Kelsen e a interpretação jurídica

AutorAdrian Sgarbi
Páginas278 - 292

Page 278

Palavras-Chave

Hans Kelsen; Interpretação do Direito; Teoria Pura do Direito.

Abstract

One of the most powerful statements in Kelsen's writings is that the act of applying law and the act of creating law are inseparable in the socalled interpretation of legal authority or authentic interpretation. However, this position did not prevent the author from conceptualizing a "legal knowledge" interpretation, the purpose of which is not only to create law, but also to explain the different possible meanings of legal texts; rather, he strengthened the need for this distinction. With "authentic interpretation" on the one hand and one of the facets of what he calls "nonauthentic interpretation" on the other, legal science can only be consentaneous when it is supplying an "interpretative framework" rather than designating a specific meaning. In the present study, these and other issues relating to legal interpretation are set out within the overall framework of the pure theory of law.

Key Words

Hans Kelsen; Interpretation of Law; Pure Theory of Law.

1. Introdução

O * propósito deste ensaio é a exposição temática da interpretação jurídica em Kelsen. Sabese que, no capítulo VIII do livro Teoria Pura do Direito, versão de 1960, Hans Kelsen dedica à interpretação jurídica um número reduzido de páginas.

Contudo, não foi apenas em 1960 que Kelsen se ocupou da interpretação no direito. Na realidade, embora a questão não sejaPage 279tratada em 1911 (“Problemas Fundamentais de Direito Público”) e 1925 (“Teoria Geral do Estado”), no ano de 1934 publica a primeira versão do livro Teoria Pura do Direito, em que reproduz artigo datado do início do mesmo ano e intitulado, justamente, “Sobre a Teoria da Interpretação Jurídica”. Em 1953, publicase a versão francesa da obra, a conhecida “versão intermediária” da Teoria Pura1 , em que a abordagem é mantida praticamente intocada. Apenas a referida versão de 1960 apresenta novidades, razão pela qual parece estar justificada a atenção que a ela prestaremos, salvo indicação expressa. De todo modo, acrescentese a informação que o livro Teoria Geral das Normas, publicação póstuma, ano de 1979, não contém nenhuma teoria da interpretação jurídica, apenas poucas alusões praticamente restritas a notas.

Para evitarmos alguns problemas indesejáveis, advertimos ao nosso leitor que nos ocuparemos centralmente da “atividade” interpretativa. Essa advertência é necessária, porque, como não se desconhece, a expressão “interpretação jurídica” sofre de ambigüidade processo-produto. Tanto se pode, com ela, designar o “ato” de interpretar (processo) como, também, o “resultado” do ato interpretativo (produto). No mais, por razões de facilitação expositiva, ligeiras alterações foram feitas em relação à cadência de desdobramentos, caso se as compare com o seqüencial promovido por Kelsen.

2. O sentido da atividade interpretativa

Segundo Kelsen, “A interpretação é uma operação mental que acompanha o processo de aplicação do Direito no seu progredir de um escalão superior para um escalão inferior”(KELSEN,1960, p. 387). É através desse processo intelectual que se fixa o sentido da “norma”.

Apesar desse conceito parecer bastante amplo, há forte caráter restritivo nessas palavras de Kelsen. Com vistas a demonstrarmos o quanto se afirma, partiremos de um quadro geral (item 2) até alcançarmos, finalmente, esse particular (item 5).

3. Quadro geral

É freqüente nas construções teóricas de Kelsen a advertência de que a teoria pura é uma teoria do direito em geral, não de um direito positivo em específico.

Page 280

Dessa forma, sem estar interessado em dizer como as normas de um ordenamento jurídico devem ser interpretadas, Kelsen procura o lugar que a atividade interpretativa ocupa no âmbito do direito. Com essa finalidade, afirma que a atividade interpretativa é desenvolvida por dois grupos de sujeitos “interpretantes”: os órgãos de aplicação normativa; e os “particulares”, sejam eles os destinatários em sentido amplo das normas ou os juristas.

Assim, enquanto os “órgãos de aplicação” normativa realizam a interpretação que Kelsen designa de “autêntica”, os particulares realizam a interpretação que denomina de “nãoautêntica”. Como interpretação nãoautêntica, figura a interpretação “científica” (isto é, “acadêmica”). Três são os pontos iniciais de compreensão: a) os “sujeitos” da atividade interpretativa; b) a “função” interpretativa desempenhada; e c) o “objeto” da interpretação.

3. 1 Os “sujeitos” da atividade interpretativa

Como consta do quadro anterior, Kelsen distingue os processos interpretativos em “autênticos” e “nãoautênticos”. A essa classificação, relaciona os sujeitos da atividade interpretativa. Portanto:

(1) Os sujeitos da interpretação jurídica que realizam a interpretação “autêntica” são os “órgãos” encarregados “burocraticamente” da tarefa de “aplicar” o direito;

(2) Por outro lado, os sujeitos da interpretação “nãoautêntica” são tanto os destinatários não especializados afetados pelas normas jurídicas, quanto os juristas.

Como órgão de aplicação jurídica, Kelsen reconhece o órgão legislativo (órgão que aplica a constituição e as normas superiores), o órgão judicial (porquanto estes aplicam as normas gerais com o objetivo de ditarem as normas individuais, isto é, as sentenças); e as instâncias administrativas (que ditam as resoluções administrativas, fazendo cumprir as sentenças).

No que diz respeito aos particulares, pontua a presença dos destinatários, por estes terem de interpretar os materiais jurídicos para observarem as normas, sempre, com vistas a evitarem a sanção; já os juristas são retratados como atores “técnicos” que, como tais, podem exercer funções distintas: ou bem praticam ciência ou política jurídica, a depender da postura assumida diante do conjunto normativo.

Page 281

3. 2 “Função” interpretativa

A “função” que podem desempenhar os sujeitos da interpretação são duas: função “política” ou função “científica”. Como o propósito maior da teoria pura é «...garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto [...]”(KELSEN, 1960, p.1), o que interessa a Kelsen é a interpretação “científica”.

Por interpretação “científica” Kelsen denomina a interpretação que evidencia, descritivamente, o campo de possibilidades semânticas da norma. Como o papel da ciência é “descrever”, isso o induz a excluir dessa etiqueta toda interpretação que implique em algum processo de escolha dentre os sentidos pensáveis de um material jurídico. Kelsen, desse modo, relaciona o ato de “escolha” de um dos “sentidos” da norma à valoração, e, por conseguinte, à política jurídica. Conseqüência disso é que a distinção entre a interpretação realizada pela “autoridade jurídica” e a realizada pela “ciência jurídica” devese ao fato da primeira ser sempre técnica e obrigatória juridicamente, ao passo que a segunda não tem efetividade jurídica, não vincula, é conhecimento puro (KELSEN, 1953a, p25).

Sendo assim, por “interpretação científica”, nosso autor reconhece a interpretação que explicita ou apresenta uma “moldura interpretativa”, um leque de possibilidades de sentido, e, não, a defesa de um sentido normativo em particular. Exatamente porque ao fornecerem as possibilidades interpretativas há descrição, uma interpretação...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT