Hedging' com futuros de índices representativos de ações

AutorLuiz Gastão Paes de Barros Leães
Páginas215-232

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1. Exposição

1.1 Atuando como investidora Anexo IV, devidamente registrada na Comissão de Valores Mobiliários (CVM), a ML adquiriu; entre 16.12.1996 e 18.12.1996, ações integrantes do índice de Ações da Bolsa de Valores de São Paulo (IBOVESPA).

1.2 A Carteira Anexo IVé, tomo se sabe, mecanismo cambial que abre aos investidores estrangeiros a possibilidade de operar nas Bolsas de Valores do Brasil; mediante carteiras de ações administradas sob a responsabilidade de instituição financeira brasileira, correspondendo a cerca de 85% do fluxo de recursos do Exterior no mercado de capitais brasileiro. Tal mecanismo.foi introduzido por anexo à Resolução do Conselho Monetário Nacional (CMN) 1.289, de 20.3.1987, modificada pela Resolução CMN-1.832, de 31.5.1991, decorrendo daí a denominação pela qual é conhecida. O IBOVESPA, por sua vez, é um índice geral representativo de uma carteira de ações, reavaliada quadrimestralmente, que compreende cerca de 5 dezenas de ações, ordinárias e preferenciais, de mais de 40 companhias de mercado, transacio-nadas na fiolsa de Valores de São Paulo (BOVESPA).

1.3 Na mesma ocasião, e num passo preliminar, entre 10.12.1996 e 16.12.1996, a ML, atuando desta feita como investidor estrangeiro direto (ou seja, não mais através de carteira administrada por instituição financeira nacional), vendeu na Bolsa de Mercadorias & Futuros (BM&F) 10.475 contratos futuros IBOVESPA, inicialmente com vencimento aprazado para 6.12.1996, ao depois substituídos por contratos com vencimento para 7.2.1997. Os índices das Bolsas de Valores são também considerados pela legislação corno valores mobiliários (Decreto-lei. 2.286, de 23.7.1986, art. 3% razão pela qual são suscetíveis de negociação nos mercados bursáteis, à semelhança das ações que representam. O IBOVESPA é um índice de ações com curso também em Bolsas de Futuros, sendo regularmente negociado na BM&F.

1.4 Ambas as operações foram, portanto, levadas a efeito por um mesmo e único investidor estrangeiro, mediante a utilização de distintos veículos cambiais, com o objetivo nuclear de estabelecer um dispositivo dê proteção da posição à vista da ML em ações integrantes do IBOVESPA. Ao assumir, assim, no mercado futuro, posição vendida, igual e inversa àquela que manteria no mercado à vista, a ML estava

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simplesmente montando um negócio jurídico de "hedge", como forma de dar cobertura aos riscos decorrentes das oscilações de preço - prática largamente difundida no mercado, aqui e alhures.

1.5 Avizinhando-se a data de vencimento dos contratos futuros, em 7.2.1997, e almejando manter a sua posição à vista, a ML, no decorrer da semana que precedeu ao vencimento, transmitiu inúmeras ordens de compra de contratos futuros IBOVESPA Fev 7 e de venda de contratos futuros IBOVESPA Abril 7, visando a rolar a sua posição vendida nesse mercado. Não logrou êxito, contudo. Dado o volume excessivamente baixo de negócios na BM&F seja na data do vencimento dos contratos (uma quinta-feira de Carnaval), seja nos dias que a antecederam, a ML, no início do pregão do dia 13.2.1997, estava vendida em 10.255 contratos futuros, IBOVESPA Fev 7. Nessa data apenas conseguiu substituir 1.100 contratos, sendo os restantes 9.155 contratos futuros restantes levados a liquidação. A posição da ML no mercado futuro liquidado correspondia a R$ 239.200.000,00.

1.6 Ora, dada a impossibilidade da rolagem das posições a futuro, em termos economicamente viáveis, somente restava ao investidor ML optar pela venda da maioria das ações integrantes de sua carteira no mercado à vista, para fazer frente aos seus compromissos vencidos no mercado futuro, o que ocorreu na referida data. Da venda dessa carteira apurou-se a importância total de R$ 224.800.000,00, provocando a desconstituição do hedge, com um resultado financeiro negativo para a ML da ordem de R$ 1.313.545,39.

1.7 A venda da maioria das ações integrantes da carteira do investidor ML foi propositadamente realizada na última meia-hora do pregão da BOVESPA, em 13.2.1997, com a intermediação de oito corretoras distintas. Na época o valor de liquidação dos contratos futuros era determinado pelame-dia dos preços do mercado à vista praticados na última meia-hora do pregão. Assim, ao proceder à venda de suas posições à vista nesse período, a ML procurava minimizar a sua exposição ao chamado risco de base, ou seja, ao risco decorrente da diferença de preços no mercado futuro e no mercado à vista, que subsiste mesmo na data de vencimento do contrato futuro, quando esses preços atingem posições próximas ao ponto de convergência, mas ainda distanciadas, por dizerem respeito a bens que, embora correlacionados, não são idênticos, sendo influenciados por diferentes expectativas.

1.8 Essa operação representou 21,2% do volume total de venda no mercado à vista nesse dia, operada na BOVESPA. Influenciado pelo volume dessas vendas, o IBOVESPA, que ostentava uma oscilação positiva de 2,68% às 16h59min, apresentou um movimento de queda de 2,02% às 17h21min, em relação ao índice de abertura, seguido de posterior recuperação, para fechar o dia com uma variação positiva de 1,08%. Em virtude da flutuação de preços durante o período em que as ações foram alienadas, e o preço médio obtido na última meia-hora do pregão da BOVESPA, a ML não logrou obter plena consistência no encontro entre a sua posição à vista e a sua posição no mercado futuro, sofrendo um prejuízo de pouco mais de 1.3 milhões de Reais na liquidação do hedge.

1.9 A atuação da ML, acima descrita, não obstante ter obedecido a todas as disposições de lei, foi questionada, tendo a Comissão nomeada pela CVM para a apuração dos fatos no Inquérito Administrativo CVM-35/1998 concluído no sentido de que a oscilação verificada na cotação do IBOVESPA, em face da volumosa venda de ações na BOVESPA no período apontado, foi intencionalmente produzida com o intuito de beneficiar o investidor direto ML, que estava "vendido" no mercado de futuro de índice IBOVESPA na BM&F. Assim sendo, teria ocorrido, no caso, autêntica manipulação de preços, ilícito que é definido e sancionado pela legislação de mercado, mais especificamente pelo itens I e II, alínea "b", da Instrução CVM-8, de

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8.10.1979, in verbis: "Em virtude do exposto, restou-nos a inconteste convicção de que o investidor ML, ao vender maciçamente sua carteira à vista nos últimos minutos do pregão de 13.2.1997, agiu deliberada-mente para 'derrubar' o IBOVESPA no mercado à vista da BOVESPA e assim influenciar o índice de fechamento dos contratos futuros de índice IBOVESPA Fev 7 na BM&F, operando de maneira não condizente com a desejada transparência e equidade para o mercado de valores mobiliários, manipulando o mercado à vista em beneficio do investidor direto que operava no mercado futuro de índice IBOVESPA da BM&F, em infração ao disposto no inciso I, caracterizado na alínea 'b' do inciso II da Instrução CVM-8/1979".

1.10 Ora, é também nossa inconteste convicção que as negociações realizadas pelo investidor ML no dia 13.2.1997 obedeceram fielmente à boa prática de mercado e às regras legais aplicáveis à espécie. Em síntese, visava a ML apenas a liquidar uma operação de hedge validamente contratada, não configurando a transmissão de ordens substanciais de venda de ações no mercado à vista, por ela dada aos correto-res, "manipulação de preços", tendo a investidora agido de forma absolutamente condizente com a transparência e a equidade que se exigem de toda e qualquer atua-ção no mercado de valores mobiliários. Nesse sentido, a fim de justificar essa nossa conclusão, desdobraremos o presente parecer em três blocos sucessivos, sendo os dois primeiros de natureza propedêutica, destinados a demonstrar a legitimidade do negócio jurídico de hedging com futuros financeiros e a improcedência da caracterização do ilícito de manipulação de preços no processo de sua desmontagem, dedicando a seção final à análise das operações realizadas pela ML, acima descritas.

2. O negócio jurídico de "hedge"

2.1 Historicamente, as Bolsas surgiram com o duplo objetivo de aproximar compradores e vendedores, propiciando a formação objetiva e segura dos preços, mercê da cotação que se instaura em seus recintos e dos mecanismos de liquidação das operações que proporcionam. A nota distintiva, que marca o desenvolvimento das operações de Bolsa, reside, portanto, na busca crescente de instrumentos que ofereçam aos seus participantes proteçao contra os riscos do mercado. O mercado de futuros constitui o último passo nesse sentido, visto que sua função básica não é mais a circulação de riquezas com a preocupação ancilar de garantia, mas a própria busca de cobertura contra os riscos do mercado.

2.2 Com efeito, os mercados futuros surgiram como expediente de proteção de riscos, estruturando as suas operações como negócios jurídicos de hedge (literalmente, "cerca viva", ou seja, "proteção"). No hedge, para se proteger contra os riscos da oscilação de preços, os agentes económicos que atuam no mercado físico de determinada mercadoria assumem no mercado futuro uma posição igual e inversa àquela que mantêm no mercado à vista. Se os movimentos de preço se mantiverem paralelos entre si, os ganhos auferidos em um mercado compensam as perdas sofridas em outro, permitindo, assim, aos agentes a manutenção de sua remuneração normal.1

2.3 As operações de hedging (operações de cobertura) foram institucionalizadas inicialmente nas Bolsas de Mercadorias, e a partir da década de 70 nas Bolsas de Futuros, visto que o mercado organizado lhes subministra dois instrumentos que favorecem sua utilização: (a) o estabeleci-

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mento de "contratos padronizados e (b) a prestação de serviços de liquidação e garantia por parte de uma caixa de compensação e liquidação, a qual, como uma Clear-ing House, banca todas as operações...

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