A hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro

AutorValdinei Tomiatto
CargoProcurador do Banco Central do Brasil
Páginas13-20

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1. Introdução

Há de se dizer, inicialmente, como observa Antônio Augusto Cançado Trindade, que “resgatado o Brasil da préhistória da proteção internacional dos direitos humanos e inserido o país no movimento contemporâneo em prol da causa da proteção internacional, mediante a decisão de 1985 de adesão aos três tratados gerais de proteção dos direitos humanos, somam-se hoje novas vozes às dos que sempre defenderam aquela causa. À simpatia àquela causa, que têm externado os nossos círculos acadêmicos e algumas entidades de classe, há que agregar hoje o alentador florescimento de interesse pela matéria dentre os mais jovens em nossos círculos universitários, que certamente há de contribuir para a cristalização de nova mentalidade sobre a matéria entre nós”1.

Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino anotam que “o constitucionalismo moderno tem, na promulgação de um texto escrito contendo uma declaração dos Direitos Humanos e de cidadania, um dos seus momentos centrais de desenvolvimento e de conquista, que consagra as vitórias do cidadão sobre o poder”2, podendo-se dizer, então, que “o reconhecimento e a proteção dos direitos do homem são a base das constituições democráticas”3. J. J. Gomes Canotilho observa que “tal como são um elemento constitutivo do estado de direito, os direitos fundamentais são um elemento básico para a realização do princípio democrático”4.

A Constituição Federal de 1988 não dispunha expressamente, em sua redação original, sobre a hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos no sistema normativo, isto é, embora contivesse dispositivos que levassem à conclusão de qual era o posicionamento jurídico de tais tratados, não fazia referência explícita ao termo “tratados internacionais de direitos humanos”.

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Previu, no entanto, desde sua promulgação, que um dos princípios que regem a atuação do Brasil nas suas relações internacionais é o da prevalência dos direitos humanos: “Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: (...) II – prevalência dos direitos humanos”.

Nas palavras de Celso Lafer, “no art. 4º, a clara nota identificadora da passagem do regime autoritário para o Estado democrático de direito é o princípio que assevera a prevalência dos direitos humanos (art. 4º, II). Este princípio afirma uma visão do mundo – que permeia a Constituição de 1988 – na qual o exercício do poder não pode se limitar à perspectiva dos governantes, mas deve incorporar a perspectiva da cidadania”5.

Kildare Gonçalves Carvalho afirma que “o princípio da prevalência dos direito humanos situa o homem como destinatário do direito internacional” e diz que “assim, deve o Brasil tomar posição contrária aos Estados que desrespeitam os direitos humanos. A própria Constituição revela preocupação com os direitos humanos não só quando ressalta a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado (art. 1º, III), mas sobretudo quando declara, no art. 5º, § 2º, que ‘os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte’, admitindo, com isso, a obrigação de respeitar direitos fundamentais decorrentes de tratados internacionais”6.

Além da disposição do artigo 4º, inciso II, tínhamos o contido no § 2º do artigo 5º da CF/1988, que prescreve: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.”

Não é demais lembrar, ainda, a dignidade da pessoa humana7, que é colocada como fundamento de toda atividade estatal, como valor supremo da Constituição, ou seja, “o homem é o centro, sujeito, objeto, fundamento e fim de toda atividade pública”89.

Embora, como dito, não fizessem referência expressa a “tratados internacionais de direitos humanos”, estes dispositivos constitucionais bastariam como fundamento para que os tratados internacionais que versassem sobre direitos humanos fossem admitidos, sem maiores questionamentos, com status constitucional no ordenamento jurídico pátrio.

Mas o tema é antigo e tormentoso em nossa doutrina e jurisprudência. É de longa data que se discute sobre a matéria, surgindo várias posições doutrinárias e jurisprudenciais relativamente ao assunto.

Marcelo Novelino bem resume a controvérsia asseverando que “na jurisprudência anterior do Supremo Tribunal Federal, os tratados internacionais, independentemente de seu conteúdo, sempre tiveram o status de lei ordinária (CF, art. 102, III, b). Com o advento da Constituição de 1988, alguns internacionalistas, como Celso Lafer, Antônio Augusto Cançado Trindade e Flávia Piovesan, passaram a defender uma hierarquia constitucional para os tratados internacionais de direitos humanos, por força do disposto no § 2º do art. 5º. A tese de que a Constituição teria acolhido a sistemática da incorporação automática dos tratados internacionais de direitos humanos (‘concepção monista’), conferindo-lhes o mesmo status das normas constitucionais, teve grande repercussão no âmbito doutrinário e jurisprudencial, mas não havia convencido os ministros do STF, que mantiveram o posicionamento tradicionalmente adotado pela Corte”10.

Esclarece, ainda, que foi editado, em virtude da problemática que envolvia a hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos, o § 3º ao artigo 5º da Constituição Federal, dispondo que “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”11.

E prossegue dizendo que “quando a problemática parecia estar se encaminhando para uma solução definitiva, o STF alterou seu posicionamento tradicional. No julgamento do Recurso Extraordinário envolvendo a prisão civil do devedor-fiduciante (DL 911/1969), o Min. Gilmar Mendes defendeu uma hierarquia supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos aprovados pelo procedimento ordinário, situando-se entre a legislação ordinária e a Constituição. Esse entendimento acabou prevalecendo, restando vencidos, neste ponto, os ministros Celso de Mello, Cezar Peluso, Ellen Gracie e Eros Grau, que conferiam ao Pacto de San Jose qualificação constitucional. O ministro Marco Aurélio, relativamente a essa questão, se absteve de pronunciamento”12.

Assim, a partir dessa decisão do Supremo Tribunal Federal, os tratados internacionais passaram a ter três hierarquias diferentes de acordo com seu conteúdo e forma de aprovação: “I) tratados e convenções internacionais de direitos humanos, aprovados em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais (CF, art. 5º, § 3º); II) tratados e convenções internacionais de direitos humanos, aprovados pelo procedimento ordinário (CF, art. 47) terão status supralegal, situando-se abaixo da Constituição e acima da legislação ordinária; III) tratados e convenções internacionais que não versem sobre direitos humanos ingressarão no ordenamento jurídico brasileiro com força de lei ordinária”13.

Uadi Lammêgo Bulos14 enuncia as quatro correntes que se formaram, a partir da Constituição Federal de 1988, sobre o posicionamento dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro: corrente do status supraconstitucional dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos15; corrente do status supralegal dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos16; corrente do status de lei ordinária dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos17; e corrente do status constitucional dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos18.

Uadi Lammêgo Bulos também traz a posição do Supremo Tribunal Federal em relação ao tema, esclarecendo que “de 1977 a 2008, predominou na Corte Excelsa o entendimento majoritário de que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos incorporavam-se à ordem jurídica brasileira na qualidade de atos normativos infraconstitucionais, isto é, como leis ordinárias (STF, RTJ, 83:809). A partir de dezembro de 2008, a Corte alterou, completamente, a sua posição sobre o assunto. Hoje, a tese majoritária, predominante no Plenário do Supremo, é a seguinte: os tratados e convenções internacionais têm status supralegal, poisPage 15estão acima da legislação ordinária, situando-se, contudo, abaixo da Constituição da República (STF, HC 87.585-8/ TO, Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 3-12-2008; STF, Pleno, RE 466.343/SP, Rel. Min. César Peluso, j. 3-12- 2008; STF, Pleno, RE 349.703/RS, Rel. Min. Carlos Britto, j. 3-12-2008). Desse modo, prevalece, no Pretório Excelso, a tese defendida pelo ministro Gilmar Mendes, para quem os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, aos quais o Brasil aderiu, logram status supralegal. Mas esse entendimento não eleva os atos de direito das gentes ao posto de normas constitucionais, pois, na visão do ministro Gilmar, seria um risco para a segurança jurídica equiparar-se os textos dos tratados e convenções internacionais às normas da Carta Magna. A favor desse raciocínio se manifestaram os ministros Marco Aurélio, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Carlos Alberto Menezes Direito. Foram votos vencidos...

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