Hospitalidade universal mitigada: políticas raciais e pensamento constitucional brasileiro/Universal hospitality mitigated: racial policies and the Brazilian constitutional thought.

AutorLima, Martonio Mont'Alverne Barreto

Introdução

A questão racial foi objeto de estudos com teor de cientificismo durante o século XIX na Europa. No Brasil, entre o final do século XIX e começo do século XX, as ideias de superioridade racial, determinismo biológico e geográfico formulavam debates que mobilizavam a intelectualidade. Discutiam-se o movimento abolicionista e as possíveis repercussões da abolição no contexto social, político e econômico brasileiro. Sobre estas, expoentes intelectuais formularam argumentos sobre eugenia.

O darwinismo social influenciou na desmobilização do movimento progressista e postergou a abolição. Essa e outras teorias raciais alinhavam-se aos interesses da elite e, por possuir como pano de fundo taxonomias científicas, eram vistas como plausíveis às condições degradantes vividas pelos negros no Brasil. Na importação desta "ciência", Raymundo Nina Rodrigues e Oliveira Viana, em seus respectivos tempos, se destacam na sua adaptação e incorporação ao contexto brasileiro, tornando-a política institucionalizada.

Com a necessidade de modernização, eclode a compreensão da inadiável ruptura com o sistema vigente. O âmbito econômico também veio a ser essencial para o sucesso da abolição. Ocorre que, os defensores mais assíduos do movimento abolicionista, convergiam com os mais conservadores da necessidade de um processo gradual do abolicionismo para amenizar alterações drásticas. Qual seria o futuro da Nação sem a mão de obra escrava e, principalmente, como se organizaria o País com antigos escravos, agora "à solta"? Uma das respostas foi a política de branqueamento e institucionalização do incentivo à imigração dos "indivíduos civilizados": brancos e europeus, em prol de uma Nação mais "pura".

Cor, raça e preconceito permaneceram elementos significativos no País, após a abolição, e ainda estão enraizados no sistema brasileiro, caracterizado de racismo estrutural. A estigmatização de negros é institucionalizada com a política de branqueamento, a qual objetivava, a extinção dos negros por meio de "degraus intergeracionais". É nesse contexto que se evidencia a correlação entre as políticas imigratórias brasileiras e o racismo, dada a adoção de parâmetros seletivos para admissão de fluxo imigratório no território nacional. O posicionamento do Brasil frente aos imigrantes varia de acordo com os contextos políticos e ideológicos. As Constituições, as normas infraconstitucionais e os atos normativos de cada período demonstram oscilações entre políticas restritivas ou incentivadoras de migração.

Frente a este contexto, formulou-se a pergunta de partida: como a seletividade das políticas imigratórias brasileiras influenciam na institucionalização do racismo? Parte-se do pressuposto que, assim como o teor racista era pano de fundo para o projeto de branqueamento institucionalizado pelo incentivo à imigração europeia, institucionalizam-se políticas de hospitalidade universal mitigada. A fim de responder à pergunta expressa, percorrer-se-á itinerário histórico, compreendido entre o período pré-abolicionista à atual Lei de Migração no 13.445, de 24 de maio de 2017, sob à égide de autores que influenciariam a formação do pensamento constitucional brasileiro em diálogo com outras literaturas internacionais e nacionais que versam sobre temáticas pertinentes ao estudo.

A partir do corte epistemológico do estudo, realizou-se análise da influência das políticas imigratórias na institucionalização do racismo com ênfase no pensamento constitucional brasileiro. Com vista a consecução desse objetivo ensejou-se: discutir a incorporação do racismo científico na sociedade e no Estado brasileiro, compreender os contextos das políticas imigratórias nos períodos constitucionais brasileiros, examinar as correlações entre as "imigrações seletivas" e a institucionalização de políticas raciais e identificar a existência de uma hospitalidade universal mitigada brasileira.

Optou-se por desenvolver um ensaio teórico, de cunho qualitativo, de abordagem sócio-histórica, o qual permite uma leitura analítica do fenômeno a partir do itinerário histórico, circunscrito ao exame do social que reflete e é refletido na historicidade. Trata-se de uma forma de análise da realidade, conferindo-lhe um posicionamento crítico-analítico-reflexivo com a intencionalidade de articular conceitos, fatos, concepções, por meio de problematização, argumentação e interpretação, num diálogo que incorpora informações documentais, com ênfase nos textos constitucionais e pensamentos correntes.

Na perspectiva epistêmico-compreensiva recorreu-se à base bibliográfica de autores que participaram do construto do pensamento constitucional brasileiro, convergentes com a temática. Ademais, estabeleceu-se diálogo com autores nacionais e internacionais que versam sobre os eixos temáticos: o fenômeno da imigração frente a (in)existência de uma hospitalidade universal brasileira; o racismo, com ênfase na face vinculada à institucionalização do estado e as vertentes do pensamento constitucional brasileiro.

Autores que contribuem para a construção de valores constitucionais em seu tempo ou a posteriori são evidenciados. José Bonifácio, Tobias Barreto e Joaquim Nabuco antecipavam valores constitucionais que já orbitavam os debates políticos e jurídicos que aludiam à abolição da escravidão. Evidencia-se, por exemplo, a defesa destes pela igualdade e liberdade relatada em "Da senzala à colônia" de Emília Viotti da Costa. O reconhecimento desses pensadores nacionais auxilia na contextualização e inserção temporal, ademais, a construção do pensamento constitucional brasileiro restringe a ideias progressistas. Oliveira Viana é intelectual relevante à formação desse pensamento, suas percepções sobre raças e imigração estão fundadas em teorias eugênicas e refletiram de forma incisiva na Era Vargas.

Registra-se que a contribuição teórica deste artigo se assenta na análise das políticas raciais do Brasil no que concerne ao regimento imigratório e suas repercussões no ordenamento jurídico e ordens constitucionais; suplantando, assim, à dimensão histórica descritiva ao avançar para uma reflexão crítica da institucionalização de políticas imigratórias que, subjetivamente ou expressamente, são indutoras do racismo estrutural. Ademais, políticas imigratórias seletivas ainda se fazem presente no Brasil. Admite-se avanços normativos, contudo, discursos e deliberações governamentais recentes convergem na contemporaneidade dessa seletividade; o que se nominou de hospitalidade universal mitigada como uma extensão interpretativa da filosofia criticista kantiana de hospitalidade universal desenvolvida na obra A paz perpétua.

  1. Racismo científico e abolição da escravatura: heranças entranhadas no Brasil

    A elite intelectual por meio de técnicas "científicas" constituiu a lógica racial no Brasil. Importando da Europa a teoria eugênica, a sociedade incorpora valores de hierarquia racial, fundamentais para produção da subjetividade do racismo e como prática de discursos formadores das relações de poder. As teorias que tinham como concepção o evolucionismo e o determinismo biológico, a partir do Darwinismo Social, no século XIX, classificavam os grupos de modo hierárquico. A expansão da lógica dominante pós-cientificismo reverbera diretamente no social e institucional, incialmente na Europa e, a partir de 1920, no Brasil, com destaque na política pública de branqueamento (MAIA e ZAMORA, 2018).

    Em via contrária, Pe. Antônio Vieira, antes da campanha abolicionista, defendia, no século XVII, tratamento humanitário aos escravos por meio do ideal bíblico de igualdade e condenava o tráfico negreiro e crueldades. Em um de seus sermões repreendeu atitudes dos senhores e da realeza, por não ser compatível com o catolicismo o pensamento de superioridade. Se quiserem que Deus não se ofenda com as atitudes e possa ouvi-los, é necessário que "desçam-se primeiro desse pensamento, que na maior alteza e altivo, reconheçam a todos por irmãos, e por iguais na nobreza como filhos do mesmo Pai: porque este e o foro em que Cristo nos igualou a todos, [...] sem diferença" (VIEIRA, 1993, p. 316).

    José Bonifácio, precursor do movimento abolicionista, defendia emancipação gradual do sistema escravocrata. Entre as etapas desse processo fora proposta a melhoria em mecanismo agrícola e a substituição de mão de obra escrava daqueles que já não estavam aptos aos trabalhos braçais. Bonifácio, por meio de projeto na assembleia constituinte para a elaboração da primeira constituição brasileira, em 1823, antecipou argumentos e medidas que seriam utilizados décadas depois em prol da abolição (COSTA, 2007). Muitos dos valores propostos por Bonifácio permearam os discursos do movimento abolicionista, influenciando o pensamento constitucional, com princípios expressos na Constituição Federal de 1988.

    Durante a calorosa campanha abolicionista, ainda era preciso contornar argumentos que justificam a escravidão do negro baseados na inferioridade racial. Essa falsa percepção disseminada, inclusive no âmbito científico, levou indivíduos ilustrados como "Sílvio Romero e Pereira Barreto, acreditarem na inferioridade racial do preto e chegavam a considerar benéfico o cativeiro, que assumia aos seus olhos aspecto civilizador" (COSTA, 2007, p. 413).

    Ainda sob a ótica de Emília Viotti da Costa (2007), a compreensão das raízes de marginalização de setores da população brasileira, remete às instituições democráticas e à ideologia liberal. A autora apresenta significativa contribuição para o pensamento constitucional brasileiro por meio da obra Da senzala à colônia, a utilização de fontes primárias dos múltiplos debates que ocorreram no período compreendido entre pré e pós-abolicionista colaboram na melhor apreensão do cenário nacional à época. Destaca-se a premissa: mesmo os que defendiam o abolicionismo não propunham algo emergente, pois um processo gradual evitaria um colapso; a abolição possui um significado limitado e há permanência dos valores escravistas...

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