O art. 285-A do CPC: Uma abordagem crítica. Análise da resolução liminar do mérito em ações repetitivas

AutorSamia Mounzer
Páginas44-78

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I Introdução

O presente trabalho1 tem por objetivo analisar as questões polêmicas decorrentes do art. 285-A do Código de Processo Civil, inserido pela Lei 11.277/2006, que trata da resolução liminar do mérito em ações repetitivas.

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O advento do dispositivo em debate ocorreu no bojo das últimas reformas, sobretudo processuais, que caminham no sentido da jurisprudencialização de nosso ordenamento jurídico, tais como: (i) ampliação dos poderes dos relatores de recursos (art. 557, caput e §1º-A, trazidos ao CPC pela Lei 9.756/98); (ii) súmula vinculante do STF (art. 103-A da CRFB, trazido pela Emenda Constitucional n. 45/2004); (iii) súmula impeditiva de recurso (art. 518, §1º, acrescentado ao CPC pela Lei 11.276/2006); (iv) recurso extraordinário repetitivo (art. 543-B, acrescentado ao CPC pela Lei 11.418/2006); (v) recurso especial repetitivo (art. 543-C, inserido ao CPC pela Lei 11.672/2008) e (vi) eficácia transcendente dos motivos determinantes do recurso extraordinário, pela qual o Supremo Tribunal Federal concede ao fundamento – e não apenas ao dispositivo – de um Recurso Extraordinário eficácia erga omnes.

Nesse contexto, que envolve a assinatura do Pacto Republicano, logo após a Reforma do Judiciário, operada pela Emenda Constitucional n. 45/2004, verifica-se o esforço pela aprovação de leis e realização de mecanismos que proporcionem maior acesso à justiça, bem como celeridade à tramitação do processo, a fim de dar maior racionalidade e efetividade à Justiça brasileira.

O art. 285-A do CPC, ao inovar quanto à possibilidade de o magistrado proferir sentença de total improcedência sem a citação do réu — o que a doutrina também chama de resolução liminar do mérito — provocou reações diversas entre os membros da comunidade jurídica.

Neste escrito, analisam-se os pressupostos para a aplicação do art. 285-A do CPC, as aparentes controvérsias a seu respeito, sua constitucionalidade, sua relação com o movimento de jurisprudencialização de nosso ordenamento jurídico e seu papel no aprimoramento da prestação jurisdicional.

II Do precedente jurisprudencial

Fredie Didier Jr., Paula Braga e Rafael Oliveira2 definem precedente como “a decisão judicial tomada à luz de um caso concreto, cujo núcleo essencial pode servir como diretriz para o julgamento posterior de casos análogos”.

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Ao classificarem os precedentes judiciais, distinguem-nos quanto ao seu conteúdo e aos seus efeitos. Quanto ao conteúdo, os precedentes subdividem-se em declarativos e criativos. O declarativo é aquele que se limita a reconhecer e a aplicar uma norma jurídica previamente existente; já o criativo, conforme o próprio nome sugere, cria e aplica uma norma jurídica, ocorrendo quando o magistrado precisa suprir lacuna legislativa ou quando se depara com cláusulas gerais.

O art. 285-A trata, portanto, do precedente classificado como declarativo, eis que se baseia em processo anterior para dar solução ao caso concreto, a exemplo do art. 557, §1º, do CPC, e das súmulas vinculantes do STF, previstas no art. 103-A da CRFB.

Quantos aos efeitos, Fredie Didier Jr., Paula Braga e Rafael Oliveira classificam-nos como vinculantes/obrigatórios ou persuasivos, sendo estes apenas seguidos quando o magistrado está convencido de sua correção, enquanto aqueles são dotados de autoridade vinculante aplicada a julgados que em situações análogas lhe forem supervenientes.

Nos países que adotam o sistema da common law, o precedente vinculante/obrigatório é a regra, graduando-se, ainda em relativamente obrigatórios e absolutamente obrigatórios. Já nos países que adotam o sistema da civil law, como o Brasil, a regra são os precedentes de efeito persuasivo.

Por estas razões, foi nos países de origem anglo-saxônica que a teoria dos precedentes judiciais foi mais desenvolvida. Contudo, Fredie Didier Jr., Paula Braga e Rafael Oliveira3 salientam que o precedente é uma realidade inerente a qualquer sistema jurídico, localizando-se a diferença na abrangência de eficácia que possui.

Patrícia Perrone Campos Mello descreve a construção do precedente no direito inglês:

“Diante da inexistência na Inglaterra de um corpo de direito substancial, como já aludido, este seria formulado pouco a pouco pelos Tribunais Reais, através de decisões proferidas em juízo.

(...)

A regra de direito inglesa constitui, por sua vez, um princípio extraído de uma decisão judicial concreta, por indução e passível de aplicação a situações idênticas. Ela emerge do problema, sóPage 47 pode ser aprendida tendo em vista seus fatos relevantes e é capaz de conferir, de imediato, solução a um caso.”4

Ao examinar o desenvolvimento do sistema da Civil Law, a autora prossegue:

“O civil law concebe a regra de direito como um comando normativo geral, abstrato, enunciado, em parte, com base em considerações sobre justiça, moral e política, e, em parte como fruto de uma reflexão sistemática empreendida a partir da prática.

(...)

Entretanto, seus caracteres de generalidade e de abstração fazem com que seu significado final dependa da maneira como é aplicada pelos juízes.”5

Levando-se em consideração o destaque que o estudo dos precedentes e sua aplicação vêm tomando, é de inegável relevância debruçarmo-nos sobre o tema, “seja pela indiscutível força persuasiva que têm os precedentes judiciais na solução de casos concretos, seja pela crescente força vinculativa que lhes vem dando o legislador brasileiro”6.

Nesta esteira, Fredie Didier Jr., Paula Braga e Rafael Oliveira7 elencam vasta gama exemplificativa da influência da teoria dos precedentes judiciais em nosso ordenamento. Além da possibilidade de resolução liminar de causas repetitivas (art. 285-A do CPC), enumeram a adoção da súmula vinculante (art. 103-A da CRFB e Lei 11.417/2006); a admissibilidade do incidente de uniformização da jurisprudência (arts. 476 a 479 do CPC); o valor atribuído aos enunciados consagrados nas súmulas dos tribunais (arts. 475, §3º, 518 §1º, 544, §3º e 557, todos do CPC); os embargos de divergência (art. 536 do CPC) e o recurso especial fundado em divergência (art. 105, inciso III, alínea “c”, da CRFB), ambos com a finalidade de uniformizar a jurisprudência; a repercussão geral noPage 48 recurso extraordinário (543-B do CPC, acrescentado pela Lei 11.418/2006, que regulamenta o art. 102 da CRFB)8.

III Da jurisprudência como fonte de Direito

Tal debate nos leva ao seguinte questionamento: seria a jurisprudência fonte de direito? De acordo com Tercio Sampaio Ferraz Jr., a jurisprudência, não obstante seu relevante papel na constituição do Direito, é apenas fonte interpretativa da lei, não alcançando, portanto, o status de fonte de direito9.

No entanto, conforme observam Fredie Didier Jr., Paula Braga e Rafael Oliveira10, o entendimento que vem sendo consolidado é no sentido de que a jurisprudência venha sendo admitida como fonte de direito. A atividade criativa da função jurisdicional tem se tornado cada vez mais presente tanto na adequação constitucional ao caso concreto quanto nas ocasiões em que o magistrado se depara com conceitos jurídicos indeterminados e cláusulas gerais.

Segundo esta visão, a atividade do magistrado vai além de uma mera técnica de interpretação e aplicação do Direito, mas há verdadeira técnica de criação11 do Direito. É este aspecto que concede à jurisprudência a condição de fonte do Direito, o que, em última análise, torna o juiz legislador12.

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É pertinente, a este respeito, consignar a crítica recorrente que se lança ao tema, de que haveria caráter antidemocrático quando a criatividade é exercida no âmbito do controle judiciário das leis. Mauro Cappelletti, em sua abordagem acerca da legitimação democrática do direito jurisprudencial, desconstrói tal crítica sob o argumento de que aos tribunais também concerne a proteção da democracia e dos direitos do homem, e de que o processo jurisdicional é “o mais participatório de todos os processos da atividade pública”13.

No estudo da força vinculativa dos precedentes judiciais é a ratio decidendi dos julgados anteriores que opera a vinculação das partes à decisão do objeto litigioso, ao contrário do que ocorre da solução de um caso concreto, em particular, de onde se extrai uma regra de direito que, se julgada da mesma forma reiteradas vezes pode ser generalizada a ponto de adquirir efeito de caráter vinculante.

Quanto ao confronto e aplicação do precedente, muito dificilmente haverá identidade absoluta entre as circunstâncias de fato que ensejaram o julgamento dos casos que deram origem ao precedente e do caso em julgamento. Por esta razão, e conforme veremos a seguir, reafirma-se o caráter de excepcionalidade da aplicação do art. 285-A do CPC.

No mesmo sentido, destaca Luiz Guilherme Marinoni que a força vinculante incide tão-somente sobre a questão de direito e não sobre a apreciação dos fatos concretos. O objetivo da força vinculante é dar força às reiteradas análises jurídicas feitas pelos tribunais, uma vez que “decidir de forma contrária à súmula apenas obriga à interposição de recurso, consumindo mais tempo e despesas, seja da administração da justiça, seja do próprio cidadão”14.

Ao ver do referido autor, a decisão em desconformidade com o entendimento fixado pelos tribunais superiores constitui ato de falta de compromisso com o Poder Judiciário além de atentar contra o direito constitucional à razoável duração do...

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