O princípio da legalidade no direito penal brasileiro

AutorRommero Cometti Tironi
CargoBacharelando em Direito pela UFES – Universidade Federal do Espírito Santo
Páginas262-281

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1 Estado de Direito e princípio da legalidade

Estado de Direito é uma concepção imediatamente ligada ao princípio da legalidade. INOCÊNCIO MÁRTIRES COELHO remonta o conceito de Estado de Direito ao direito alemão, mencionando BÖCKENFÖRDE, o qual ressalta que o surgimento dessa expressão se deu na Alemanha. Seu significado não tem correspondente exato em outro idioma, significando, no âmbito da teoria do Estado do liberalismo alemão, dentro da qual foi cunhada a expressão, o Estado da razão, do entendimento, ou “[...] o Estado em que se governa seguno a vontade geral racional e somente se busca o que é melhor para todos”. O autor aponta, então, características essenciais do Estado de Direito: não é criação de Deus, estando a serviço dos interesses de todos os indivíduos; sua atividade cinge-se a garantir a liberdade, a segurança e a propriedade, assegurando a todos a possibilidade de desenvolvimento individual; e:1

[...] a organização do Estado e a regulação das suas atividades obedecem a princípios racionais, do que decorre em primeiro lugar o reconhecimento dos direitos básicos da cidadania, tais como a liberdade civil, a igualdade jurídica, a garantia da propriedade, a independência dos juízes, um governo responsável, o domínio da lei, a existência de representação popular e sua participação no Poder Legislativo (grifo nosso).

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Um Estado com o predicativo “de Direito” tem como principal característica, então, exatamente o domínio da lei. Daí a garantia de que ninguém será obrigado a fazer ou a deixar de fazer algo senão em virtude de lei (art. 5º, II, da Constituição). É exatamente esse o princípio da legalidade, sendo inclusive garantia individual.2

ZAGREBELSKY, citado por INOCÊNCIO COELHO, afirma categoricamente que, a lei não depende de legitimação material, ainda que possa vir a ser invalidada por inconstitucionalidade. Ela vale porque é lei, e não pelo conteúdo de sua prescrição3. Vemos que a afirmação é fruto da tamanha importância que é dada à lei no Estado de Direito. É claro que não podemos aderir cegamente à ideia de que a lei, sendo formalmente válida, sê-lo-á invariavelmente no âmbito jurídico. Hodiernamente temos que admitir uma legalidade comprometida com a Constituição, lei fundamental do moderno Estado de Direito.4 Vale a lembrança de que todas as Constituições brasileiras trouxeram o princípio da legalidade no sentido do Direito Penal em seu bojo.5

2 Princípios qualificadores da legalidade no Direito Penal

Trasladado especificamente para o âmbito do Direito penal, o princípio da legalidade assume feições peculiares. Sua aplicação é idêntica, tendo-se-o como verdadeira garantia do cidadão (art. 5º, XXXIX, CF),6 todavia vários outros princípios associam-se a ele. NUCCI aponta três significados principais de legalidade: o político, que o posiciona como garantia constitucionalPage 265 dos direitos fundamentais; o jurídico lato sensu, traduzido pelo art. 5º, II, da Constituição; e o jurídico stricto sensu, consoante o qual os tipos penais incriminadores apenas podem ser criados por leis em sentido estrito, produzidas pelo Poder Legislativo e em conformidade com o processo legislativo constitucionalmente disciplinado.7

Auxiliando-o, surge uma série de princípios, os quais não abordaremos aqui em sua totalidade, por não ser essa a pretensão deste estudo. Vale a menção de alguns deles, de suma importância para a eficiência da legalidade. Isso porque o legislador não está adstrito tão-somente ao princípio da legalidade para criar leis penais incriminadoras, mas também a uma gama de outros princípios.8 O princípio da intervenção mínima, por exemplo, designa a exclusividade da intervenção do Direito Penal para os casos de violação aos bens jurídicos mais importantes; é a criação da lei penal vinculada ao Direito Penal como ultima ratio. Esse princípio limita o poder incriminador do Estado, qualificando o princípio da legalidade, tornando-o mais benéfico ao cidadão.9 Complementando a intervenção mínima, temos o princípio da fragmentariedade. Diz esse princípio que o Direito Penal, apesar de proteger apenas os bens jurídicos mais importantes, somente deverá intervir em situações específicas, de grave violação a esses bens. “Fragmentariedade” porque importará ao Direito Penal apenas um “fragmento” das hipóteses de violação aos bens jurídicos mais importantes.10 Mencionemos também o princípio da taxatividade, segundo o qual a lei penal deverá ser categórica e o mais clara possível, garantindo maior segurança jurídica ao cidadão.11

Não podemos deixar de citar o princípio da proporcionalidade, também qualificador da legalidade. No momento de cominação das penas de cada crime (bem como na aplicação), deverá o legislador atender ao critério da proporcionalidade. Deverá o valor da pena corresponder razoavelmente à gravidade da conduta praticada pelo agente.12 Ademais, oPage 266 princípio da limitação das penas, garantido constitucionalmente (art. 5º, XLVII, CF), impede que uma lei penal imponha penas de morte, de caráter perpétuo, de trabalhos forçados, de banimento ou cruéis.13

O princípio da ofensividade, bem lembrado por LUIZ FLÁVIO GOMES, determina que uma conduta punível pelo Direito Penal não é só aquela que se subsume a uma descrição típica, senão aquela que efetivamente lesiona o bem jurídico protegido por aquele tipo penal (nullum crimen sine iniuria).14 Acompanhando o princípio da legalidade, temos também o da irretroatividade da lei penal (constitucional, apenas se permitindo a retroatividade se a lei for mais benéfica ao réu).15 São todos princípios voltados a beneficiar o cidadão, corroborando a intervenção mínima exigida pela natureza repressiva do Direito Penal.

Finalmente, os princípios da territorialidade e da extraterritorialidade contribuem também para uma maior segurança jurídica para os cidadãos. De nada adianta saber que para se ser obrigado a fazer ou a deixar de fazer algo deve haver uma lei dizendo que deve ser assim se não se sabe em que lugares será aplicada essa lei. Pelo princípio da territorialidade, é aplicada a lei brasileira a todo crime cometido no território brasileiro. Para efeitos de aplicação da lei penal no espaço, território é o espaço onde o Estado exerce sua soberania. Dessarte, compreende a área terrestre, limitada pelas fronteiras; os mares interiores, lagos e rios; o mar territorial e as ilhas marítimas; o espaço aéreo correspondente e as embarcações e aeronaves brasileiras, de natureza pública ou a serviço do governo brasileiro, onde quer que estejam, bem como aeronaves e embarcações brasileiras mercantes ou de propriedade privada que se encontrem no espaço aéreo correspondente ou em alto mar (art. 5º, § 1º, CP).16

O princípio da extraterritorialidade é aplicável em situações excepcionais. Serão punidos agentes que houverem praticados crimes no estrangeiro nas hipóteses previstas no art. 7º, I (extraterritorialidade incondicionada) e II (extraterritorialidade condicionada). Tomamos aPage 267 liberdade de não dispô-las aqui, por serem hipóteses e condições categóricas de aplicação da lei brasileira, sem maiores complicações.17

3 Origem

Muitos afirmam remontar à Magna Carta, de 1215, a primeira aparição do princípio da legalidade. Seu art. 39 assim dispunha:18

Art. 39. Nenhum homem livre será detido, nem preso, nem despojado de sua propriedade, de suas liberdades ou livres usos, nem posto fora da lei, nem exilado, nem perturbado de maneira alguma; e não poderemos, nem faremos pôr a mão sobre ele, a não ser em virtude de um juízo legal de seus pares e segundo as leis do País (grifo nosso).

Desenvolveram essas ideias John Locke19 e Montesquieu20, do final do século XVII ao início do século XVIII, propagando-se com os enciclopedistas, com os filósofos, entre outros.21

Por outro lado, foi com a Revolução Francesa que o princípio amoldou-se às exigências do Direito Penal, mais precisamente na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. Antes dela, o Bill of Rights e as Constituições das colônias inglesas na América do Norte já o haviam mencionado, com destaque para o Bill de Virgínia, como primeiro reconhecimento legislativo. O Congresso da Filadélfia, de 1774, erigiu-o à categoria de direito fundamental. Na Europa, o primeiro registro após a Magna Carta fora a Ordenança Penal Austríaca, de José II, a Josefina, do início de 1787. Logo após, ainda em 1787, nasceu a Constituição americana de 1787, fazendo menção expressa ao princípio.22 Quem trouxe oPage 268 princípio à América Latina foi FEUERBACH, sob o brocardo nullum crimen, nulla poena sine lege.23

Vale lembrar que esse princípio sempre foi expressamente previsto no Código Penal brasileiro (desde o Código do Império, de 1830, até Código de 1940, com a Reforma de 1984),24 o que não seria necessário, haja vista que a Carta Magna já dispõe nesse sentido. Atualmente, o Código Penal traz o princípio da legalidade (ou da anterioridade da lei penal25, como preferem alguns) no seu art. 1º.

Insta salientar que muitos autores diferenciam princípio da legalidade, princípio da reserva legal e princípio da anterioridade da lei penal. Consideramos equivalentes os três conceitos. Mesmo que se os considerem diversos, abordaremo-los como aspectos atinentes ao princípio da legalidade, apenas não mencionando o nomen juris pretendido por alguns autores.

4 Funções

Consoante o magistério de ROGÉRIO GRECO, o princípio da legalidade apresenta quatro funções fundamentais: proibir a retroatividade, a criação de crimes e de penas pelos costumes, o emprego de analogia na criação de crimes ou na fundamentação ou agravação de penas e as incriminações vagas e indeterminadas.26

Essa é apenas uma...

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