Imposi

AutorBorges, Rosa Maria Zaia

Introdução

Ao longo da história das mais variadas sociedades e de distintos povos, o poder tem sido utilizado, organizado e instrumentalizado como estratégia de hierarquização. Nesta dinâmica, são definidos os atores político-sociais que ocupam os espaços de forma irrestrita e detêm capacidade decisória e de negociação, situando-se em uma posição hegemônica. Tanto no colonialismo quanto nas relações de gênero este recurso se mostra imponente, servindo, cada vez mais, como articulação política e arma institucional de perpetuação das cadeias de opressão já estabelecidas no tecido social.

Uma circunstância que torna evidente esta arquitetura é a ocorrência do estupro no âmbito da conjugalidade. O ambiente familiar, em que pese ser associado a um espaço hígido e estruturado, muitas vezes, também é responsável pela relativização dos direitos das mulheres, aprisionando-as a uma realidade de submissão conjugal e doméstica. Sob uma narrativa forjada de deveres conjugais--estruturada, sobretudo, na concepção violenta de que o sustento dos afetos é unilateral, sendo competência exclusiva da mulher--a sociedade e o Estado (re)produzem o discurso de que o autor da violência não coincide com uma pessoa com quem se convive e/ou se nutre proximidade.

Ao Estado esta lógica é mais que conveniente, uma vez que facilita a desoneração de sua responsabilidade no enfrentamento desta problemática. Isso porque, por um lado, é propagado o pensamento totalizante de que o ambiente familiar não é cenário de violências--ocultando, portanto, as opressões vivenciadas neste espaço e tornando-as impassíveis de tutela jurídica. Por outro lado, o possível reconhecimento da ocorrência do estupro conjugal não consegue mobilizar suficientemente a proteção estatal porque se dissolve na retórica de que se trata de um assunto de "âmbito privado" e que, neste sentido, não deve sofrer qualquer intervenção jurídica.

No que tange à sociedade, percebe-se que a moral e os bons costumes assumem uma condição de atemporalidade no processo de valoração social dos arranjos familiares. (1) Este cenário torna-se possível devido a uma profunda raiz misógina que, entre uma e outra vestimenta, sobrevive a despeito dos substanciais avanços das lutas feministas. Cria-se, assim, um cenário em que a mulher encontra dificuldades na efetivação dos seus direitos, vislumbrando-se em uma posição marginalizada em detrimento do homem.

Face a esta problemática, a presente pesquisa pretende examinar como as relações de poder, responsáveis por situar o homem em posição hegemônica, mantêm-se e contribuem para a ocorrência do estupro conjugal. Ao ter por substrato a realidade vivida por mulheres e formular perguntas a partir destas experiências, este estudo busca desvincular-se da pretensa objetividade, universalidade e racionalidade investigativa próprias da epistemologia eurocêntrica, com o escopo de evidenciar perspectivas outras (HARDING, 2002).

Para tanto, questiona a importância e a potência do imbricamento entre as relações coloniais e as de gênero para o assentamento desta configuração social, valendo-se de critério metodológico decolonial - que prescinde de um protocolo metodológico propriamente dito--fundado em pesquisa qualitativa de cunho bibliográfico-documental, guiado por uma "descolonização epistemológica", em direção a uma "nova comunicação intercultural, a um intercâmbio de experiências e de significações, como a base de outra racionalidade que possa pretender, com legitimidade, alguma universalidade" (QUIJANO, 1992, p. 19-20).

À vista disso, em um primeiro momento são expostas as elementares que influíram na construção da categoria analítica gênero, explicitando-se o referencial teórico adotado na pesquisa. Ainda, é discutido o êxito do colonialismo em sua missão de invadir, apropriar-se de, aculturar e dominar povos, produzindo discursos subvertidos que persistem reafirmando uma lógica de inferioridade de determinados sujeitos na sociedade. Em um segundo momento, analisa-se como estes discursos repercutem na dominação de corpos femininos no âmbito conjugal, visando investigar a assimilação social e jurídica acerca deste fenômeno.

  1. Gênero e colonialismo - lugar comum de tensões

    Passados mais de duzentos anos desde que a terminologia gênero começou a ser construída, ainda no contexto da Revolução Francesa (1789-1799), persistem entre os estudiosos profundas dificuldades em se fixar o seu conceito. Partindo de um comportamento que contesta o destino biológico enquanto diretriz para a vida da mulher e do homem, o uso do termo gênero transita entre a expectativa de que seja possível abarcar todos os caracteres sociais, históricos, biológicos e culturais que correspondem aos indivíduos e a frustração de não conseguir fazê-lo, dada a universalidade que esta abrangência implicaria.

    Percorrendo a concepção prematura que pretende defini-lo através do reconhecimento de que a mulher não deriva de um conceito residual do que é "não ser homem" (BEAUVOIR, 1970, p. 10) e evoluindo em direção a um conceito que se aproxima das relações sociais e de poder (SCOTT, 2019, p. 67), a dificuldade em se obter a exata definição do termo acaba, por vezes, distraindo a verdadeira problemática que origina seu debate.

    Conforme elucida Scott, o cerne da grande discussão edificada sob a alcunha de gênero é a visível e atemporal desigualdade entre homens e mulheres nas mais diversas civilizações. No pensamento da autora, a incessante busca por uma definição concretiza um panorama que, muitas vezes, se esquece da necessidade basilar e prioritária de modificação das estruturas sociais que criam e alimentam as desigualdades, já que se concentra demasiadamente em um preciosismo conceitual. Por este motivo, a permanência de uma reforma a longo prazo que retire a mulher de uma posição inferiorizada socialmente acaba se tornando mais distante (SCOTT, 2012, p. 339-340).

    Ressalte-se, ainda, que a utilização do termo, como vem sendo feita, majoritariamente pretende se referir a mulheres. Isso se dá porque, com vistas a rechaçar o determinismo biológico e se preocupando com os pressupostos sociais atribuídos à palavra "mulher", as feministas da década de setenta começaram a referir "gênero" na centralidade de suas demandas políticas (SCOTT, 2012, p. 333).

    Tal modificação atende às concepções elementares do ideário ocidental moderno, quais sejam "a da base material da identidade e a da construção social do caráter humano" (NICHOLSON, 2000, p. 22), reforçando a "perspectiva culturalista" (MORAES, 2013, p. 100) associada à construção do gênero. Entretanto, observa-se que, ao dar concretude a esta modificação, o efeito foi o contrário do pretendido, posto que, com o decorrer do tempo, cada vez mais o termo se tornou impreciso, sendo incapaz de alcançar todas as variáveis que distinguem cada indivíduo.

    Em virtude disso, o presente estudo alicerça-se em um conceito de gênero que parte dos lugares sociais atribuídos a cada pessoa em razão do exercício de poder que não se origina na atualidade, mas nela parece se perpetuar.

    O "sistema colonial moderno de gênero", como denominou sua idealizadora Maria Lugones, explica que a estruturação hierárquica da sociedade deriva do período colonial, de modo que as forças impostas e a violência inerente a este momento histórico foram responsáveis por subjugar determinados indivíduos, inaugurando uma nova cadeia de opressão (LUGONES, 2008, p. 77).

    Nos dizeres de Quijano (2010), o colonialismo engendrou uma relação de dominação lastreada no exercício de uma autoridade política sob os povos dominados. Isso se deu por meio do controle do trabalho e da produção destes, de modo que fora fabricada uma concepção de modernidade que pouco se referia a supostos avanços históricos, mas sim associava um espaço hegemônico como significado deste conceito.

    O escopo utilizado foi uma narrativa falaciosa de troca e intersecção cultural que pretendia mascarar a violência do processo colonial. Encampando o discurso do expansionismo comercial europeu do século XV e da propagação das missões cristãs em uma denominada "missão civilizatória" (QUIJANO, 2010, p. 73), foi totalmente suprimida a manifestação voluntária de vontade dos povos que residiam nos territórios tomados.

    Gradativamente, as identidades originárias destes lugares foram subtraídas e substituídas em um processo forçoso de assimilação de hábitos e valores que elevavam a Europa ao "mais alto patamar de civilização" a ser seguido (MIGNOLO; WALSH, 2018, p. 194). Em razão disso, generalizou-se uma visão de mundo eurocêntrica que nada mais significou que o sucesso das medidas impostas pelos colonizadores, concretizando o que se chamou de colonialismo. (2)

    Em que pese a problemática do colonialismo já simbolizar múltiplas violências e instituir um sistema hierárquico na sociedade, a manipulação de conceitos, territórios, força de trabalho e produtos esconde a face mais grave deste período: a colonialidade. Conforme elucida Quijano (2010, p. 73), este termo marca a classificação racial/étnica da população do mundo como sustentáculo de um padrão de poder que opera em dimensões materiais e subjetivas da existência cotidiana e da escala societal.

    Isto quer dizer que, se o colonialismo é o processo de subjugação dos povos dominados por meio da subversão do discurso da "descoberta e conquista", a colonialidade é a forma pela qual este mecanismo de hierarquização se perpetua desde então. Na concepção de Edgardo Lander, reverbera na sociedade a "naturalização das relações sociais" (LANDER, 2005, p. 8), pelo que subsiste a crença de que as características da dita "sociedade moderna" derivam espontânea e naturalmente de seu próprio desenvolvimento histórico, enquanto que, na realidade, estas nada mais são que os reflexos deixados pelo processo de dominação.

    Esse binômio "agressividade do processo exploratório exposto e sutileza de sua perpetuação" explicita a necessidade de que a subsistência da colonialidade seja contornada. Com este...

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