Imutabilidade das decisões: os limites objetivos da coisa julgada

AutorThaís Amoroso Paschoal
Páginas185-208

Thaís Amoroso Paschoal. Formada em Direito pela Universidade Estadual de Londrina em 2004. Pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Estadual de Londrina em 2005. Mestranda em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná. Advogada do escritório Arruda Alvim Wambier, em Curitiba, desde 2004.

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1 Introdução

A garantia constitucional da coisa julgada, disciplinada no artigo 5º, inciso XXXVI da Constituição Federal, tem por fundamento precípuo a segurança jurídica, de modo a garantir às partes a certeza na imutabilidade da sentença de mérito que deu solução à relação controvertida levada à apreciação do Poder Judiciário. Ao mesmo tempo, garante a estabilidade do sistema processual, cuja efetividade se coaduna com a proibição da perpetuação dos litígios no tempo.

Definida como a imutabilidade que reveste as sentenças de mérito, a coisa julgada levanta controvérsias que vão desde seu conceito e natureza jurídica, até a delimitação de seu exato alcance, tanto subjetiva como objetivamente, de modo a estabelecer o que em concreto é atingido pela imutabilidade decorrente da coisa julgada.

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Os limites objetivos da coisa julgada são estabelecidos a partir do artigo 468 do Código de Processo Civil, que determina sua incidência sobre a lide e as questões decididas. Integrante do Código de Processo Civil que resultou do projeto Buzaid, referido artigo revestiu-se dos conceitos atribuídos por este jurista aos institutos processuais. Assim é que, considerando a lide como objeto do processo, acabou por firmar em tal dispositivo o estabelecimento dos limites objetivos da coisa julgada a partir da lide. Todavia, diante da nova perspectiva doutrinária a respeito do objeto do processo, nascida, sobretudo com a doutrina alemã, a idéia de lide como objeto do processo não persistiu.

À determinação dos limites objetivos da coisa julgada, assim, torna-se imprescindível a investigação acerca do objeto do processo, já que é sobre ele que incide a autoridade da coisa julgada. Imprescindível, ainda, a análise dos conceitos de demanda, lide e pretensão, importantes para a compreensão do objeto do processo e para a definição dos limites objetivos da coisa julgada.

Mediante tais considerações, possível será a determinação do correto alcance da autoridade da coisa julgada, tal como posta no sistema processual brasileiro, já que determinar os limites objetivos da coisa julgada significa definir o alcance da imutabilidade dela decorrente, ou seja, definir o que, dentro de determinada demanda e nos limites da lide posta, se reveste da autoridade de coisa julgada.

2 Da coisa julgada – aspectos gerais

A coisa julgada é expressamente garantida pela Constituição Federal, que estabelece, em seu artigo 5º, inciso XXXVI, que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. A finalidade de tal proteção é a necessidade de estabilidade das decisões judiciais, o que resulta na garantia de certeza nas relações jurídicas trazidas ao apreço do Poder Judiciário. A coisa julgada, portanto, tem como fundamento a impossibilidade de perpetuação dos litígios no tempo e a conseqüente segurança advinda da irrevogabilidade das Sentenças de mérito.

Reconhecendo na certeza das relações jurídicas advinda da coisa julgada sua finalidade máxima, Ferreira Filho explica que “o estado anormal do litígio deve ser substituído, o mais rápido possível, por uma definição irrevogável dos direitos” (1991, p. 69).

A imunização do conteúdo da sentença pela autoridade da coisa julgada, dessa forma, garante a necessária paz social, decorrente da certeza nas relações jurídicas trazidas à apreciação do Poder Judiciário. Ainda sobre a finalidade da coisa julgada, Dinamarco (2003) afirma que

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Pelo que significa na vida das pessoas em suas relações com os bens da vida ou com outras pessoas, a coisa julgada material tem por substrato ético-político o valor da segurança jurídica, que universalmente se proclama como indispensável à paz entre os homens ou grupos (p. 303).

Como exigência social, portanto, a coisa julgada tem como função precípua garantir a segurança jurídica, proporcionando às partes a certeza de irrevogabilidade da sentença proferida, lhes assegurado a fruição definitiva do bem objeto do litígio.

Ressaltando o caráter de irrevogabilidade que a coisa julgada atribui às sentenças, Baptista da Silva (2001) a define como

a virtude própria de certas sentenças judiciais, que as faz imunes às futuras controvérsias, impedindo que se modifique, ou discuta, num processo subseqüente, aquilo que o juiz tiver declarado como sendo “a lei do caso concreto” (p. 484).

A autoridade da coisa julgada, portanto, opera não somente no sentido de impedir novo julgamento sobre a mesma lide, mas também solidificando o próprio direito material objeto do conflito de interesses levado à apreciação do Poder Judiciário.

Significando a imutabilidade da sentença que solucionou definitivamente determinada lide, a coisa julgada impede a propositura de nova ação fundada nos mesmos elementos, ou seja, mesmas partes, pedido e causa de pedir, impedindo ao mesmo tempo, e conseqüentemente, novo julgamento em sentido contrário à primeira decisão, não podendo ser subtraído das partes litigantes, dessa forma, o direito obtido com o seu trânsito em julgado.

3 Do objeto do processo no direito brasileiro

O objeto do processo, a Streitgegestand do direito alemão, é o que tradicionalmente se chama de res in iudicium deducta, ou seja, aquilo que é deduzido em juízo mediante a iniciativa do autor, sobre o qual ocorrerá o pronunciamento judicial. Neste sentido, a doutrina firmou o entendimento de que o objeto do processo é identificado com o mérito da causa. É o que afirma Dinamarco (1986): “o objeto do processo é, em outras palavras, o mérito da causa [...] a busca do objeto do processo outra coisa não é, senão a busca do conceito de mérito” (p. 188).

Todavia, a conceituação do objeto do processo no sistema processual brasileiro tem sido tarefa bastante tormentosa, sobretudo pela falta de homogeneidade do próprio Código de Processo Civil no trato da matéria. Já na Exposição de MotivosPage 188 do Código de Processo Civil, Alfredo Buzaid estabelece, dentre as justificativas terminológicas do Código, o conceito de mérito relacionado à idéia de lide carneluttiana, considerando-a, assim, o objeto do processo. A doutrina contemporânea, entretanto, apresenta entendimento diverso, considerando o objeto do processo como a pretensão, a Anspruch do direito alemão, e não a lide, como entendia Buzaid.

De qualquer forma, deve-se considerar o objeto do processo como o mérito da causa. Segundo Dinamarco, “o mérito da causa (ou objeto do processo) reside em algo que é trazido de fora, que dá motivo à formação do processo e que dependerá de um pronunciamento do juiz” (1986, p. 188). É o objeto do processo, assim, o instrumento que impulsiona o processo e sobre o qual incidirá o pronunciamento judicial.

Dessa forma, faz-se necessária a análise dos conceitos que gravitam em torno do objeto do processo, como a demanda, justamente por ser esta o instrumento que coloca o objeto do processo diante da apreciação do Poder Judiciário, tendo, destarte, a apreciação dos limites da demanda, fundamental importância para a definição dos limites da coisa julgada. Ainda, a idéia de lide, entendida inicialmente como objeto do processo, fundamental para a delimitação dos limites objetivos da coisa julgada.

3. 1 Da demanda no sistema processual brasileiro
3.1. 1 A relevância da demanda na fixação do objeto do processo

A demanda é o instrumento pelo qual o autor posiciona sua pretensão diante do Poder Judiciário, de modo a, exercendo o direito subjetivo de ação do qual é titular, pleitear a devida tutela jurisdicional cabível ao caso apresentado. É a demanda, assim, nas palavras Dinamarco, “o veículo de algo externo ao processo e anterior a ele, algo que é trazido ao juiz em busca do remédio que o demandante quer” (1986, p. 195). A demanda, dessa forma, apresenta ao Poder Judiciário o objeto do processo, sobre o qual se pronunciará a decisão judicial e sobre o qual opera a autoridade da coisa julgada.

Neste sentido, pois, uma análise do objeto do processo deverá necessariamente ser precedida de um estudo dos limites da demanda, o que implica a apreciação das questões que envolvem a idéia de pretensão e pedido, e sua relação com o objeto do processo.

Mediante tais considerações, possível será a determinação do correto alcance da autoridade da coisa julgada, tal como posta no sistema processual brasileiro, já que determinar os limites objetivos da coisa julgada significa definir o alcance da imutabilidade dela decorrente, ou seja, definir o que, dentro de determinada demanda e nos limites da lide posta, se reveste da autoridade de coisa julgada.

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Com vistas a tal objetivo, busca-se inicialmente a análise da demanda enquanto veículo condutor da pretensão do autor. Tornar-se-á possível, assim, aferir o alcance exato da autoridade da coisa julgada, que recai, como se verá, sobre o objeto do processo, trazido a juízo por...

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