Indigenous land conflicts in Brazil: between risk and prevention/ Conflitos territoriais indigenas no Brasil: entre risco e prevencao.

AutorBragato, Fernanda Frizzo

Introducao

Desde a decada de 1980, o marco regulatorio indigenista brasileiro, latino-americano e global vem formalmente instituindo garantias de uma cidadania diferenciada aos povos indigenas, baseada no reconhecimento de suas especificidades culturais e no direito de conserva-las. No Brasil, com a Constituicao de 1988, os povos indigenas adquiriram tambem o direito a demarcacao das terras tradicionalmente ocupadas, rompendo com o modelo juridico assimilacionista. Apesar dos avancos legais em direcao ao reconhecimento de sua diferenca cultural, os conflitos entre indigenas e ocupantes de terras tem-se agravado nos ultimos anos e sido marcados por episodios de extrema violencia. Este cenario tem se agravado diante da morosidade na demarcacao das terras indigenas, aliado a crescente judicializacao e, em muitos casos, a anulacao de atos administrativos de demarcacao por parte do Poder Judiciario e, por fim, com as propostas de alteracao constitucional em curso no Congresso Nacional que, se implementadas, implicarao a supressao das garantias conquistadas pelos povos indigenas em 1988.

Entretanto, alem de ser signatario de diversos instrumentos internacionais (nivel interamericano e global) que protegem os direitos dos povos indigenas sobre seus territorios, sob a base do respeito a diversidade cultural, o Estado Brasileiro submete-se as resolucoes adotadas pela Assembleia Geral das Nacoes Unidas, dentre as quais a Res. 60/1. 2005 World Summit Outcome que estabelece a responsabilidade de cada Estado de proteger suas populacoes contra genocidio, crimes de guerra, limpeza etnica e crimes contra a humanidade, o qual se tornou o documento de maior autoridade sobre a doutrina da responsabilidade de proteger (R2P) (ROSENBERG, 2009).

O presente artigo objetiva avaliar o contexto do conflito territorial indigena brasileiro a luz do recente desenvolvimento da doutrina da responsabilidade de proteger (R2P). A R2P consiste em uma doutrina de prevencao que fornece um conjunto de ferramentas politicas para que os Estados possam agir quando configurados fatores de risco para crimes de atrocidade. Ela reconhece que a prevencao e a melhor forma de protecao porque os Estados-membro das Nacoes Unidas tem o compromisso primario com a responsabilidade de proteger suas populacoes, sobretudo as mais vulnerabilizadas. Ja que as populacoes indigenas sao extremamente vulneraveis e os conflitos envolvendo a ocupacao de seus territorios os tem expostos a violencia e privacao de direitos basicos, justifica-se a relevancia de se analisar a responsabilidade do Estado e de apontar os caminhos para uma atuacao que previna crimes de atrocidade ou cesse seu cometimento.

Para atingir os objetivos tracados, sao relatadas circunstancias e comportamentos que envolvem as disputas territoriais indigenas, coletadas por meio de noticias, relatorios, materias jornalisticas e jurisprudencia com a finalidade de avaliar a presenca de fatores de risco para ocorrencia de atrocidades, conforme delineados no "Framework of Analysis for Atrocity Crimes: a tool for prevention" (doravante chamado "Framework") (UN, 2014). Realizou-se, ainda, revisao bibliografica e pesquisa documental (legislacao e jurisprudencia) para problematizar as principais questoes teoricas que o artigo endereca: o marco normativo-jurisprudencial dos direitos territoriais indigenas e os fundamentos e os modos de operacao da responsabilidade de proteger.

Povos indigenas, territorio e marco regulatorio

De acordo com o IBGE (2016), existem no Brasil cerca de 900 mil indigenas, distribuidos em aproximadamente 240 diferentes povos (CEPAL, 2014). Segundo Yrigoyen (2009, p. 12), o direito internacional identifica como povos indigenas aqueles que descendem de povos pre-existentes aos Estados atuais (feito historico), conservam totalmente ou parcialmente as suas instituicoes sociais, politicas, culturais, ou modos de vida (vigencia atual), e que tem autoconsciencia da sua propria identidade (criterio subjetivo). O conceito coincide com o artigo 1,b, da Convencao no 169 da OIT (2011), ratificada pelo Estado Brasileiro em 19/04/2004, por meio do Decreto no 5.051.

Um dos aspectos considerados fundamentais para a sua expressao sociocultural e o territorio. Beltrao (2014) observa que o territorio e compreendido como a

base socio-espacial que, tradicionalmente, pertence a um grupo etnico e com a qual os membros do referido grupo mantem lacos de pertenca e a partir dela se expressam cultural e socialmente retirando ou nao deste territorio tudo, parte ou muito pouco do que e necessario para sua sobrevivencia, dada a situacao "colonial". A relacao de pertenca ao territorio nao e necessariamente empirica, pois alguns grupos perderam a base fisica em funcao do alargamento das fronteiras nacionais. Territorio constitui espacos indispensaveis ao exercicio de direitos identitarios desses grupos etnicos. Nas palavras de Beltrao (2014), trata-se de uma "concepcao ampla que diz respeito a vida, abrangendo nao apenas bens materiais, mas agregando a producao de ambiente cultural no qual sao desenvolvidas as formas de vida", sendo que a materializacao ou a base espacial do territorio e a terra. Entretanto, o reconhecimento da relacao diferenciada dos povos com suas terras e sua nocao de territorialidade a partir dos referenciais do pluralismo e do direito ao reconhecimento (LIPPEL, 2014, p. 106) so foi introduzido, no Brasil, com a Constituicao de 1988, e no direito internacional, a partir da Convencao no 169, da OIT.

Marco regulatorio indigenista brasileiro

Durante o periodo colonial brasileiro, vigoravam duas politicas indigenistas basicas: uma para os indios aldeados e considerados amigos e outra para os indios inimigos a quem se impunha a escravidao licita e a guerra justa (PERRONE-MOISES, 1992). Os colonizadores portugueses nao deixaram de reconhecer a existencia dos povos indigenas, mas com eles estabeleceram essa dupla relacao e, no concernente aos "amigos", empreendeu-se desde sempre uma politica integracionista, "seja pelo casamento, pela catequese ou pela integracao como "trabalhadores livres" (SOUZA FILHO, 1998). Essa politica integracionista para os indios nao hostis a relacao com os colonizadores continuou refletindo-se na legislacao dos seculos XIX e XX (SOUZA FILHO, 1992, p. 134 e sg.), mas como observa Cunha (1992, p. 135), no sec. XIX debates sobre a humanidade dos indios sao reintroduzidos pela forte influencia do racismo cientifico em voga, que termina por declarar sua primitividade. Em relacao as terras indigenas, observa Cunha (1992), citando Mendes Jr., que na Lei de Terras de 1850 elas nao eram consideradas devolutas, dada a caracteristica originaria de seu titulo, ou seja, decorrente do simples fato de seus titulares serem indios. Todavia, na pratica a legislacao foi sendo sistematicamente burlada por meio da utilizacao de diversos subterfugios que resultaram na espoliacao das terras indigenas (CUNHA, 1992, p. 146). No inicio do seculo XX, e criado o SPI (Servico de Protecao ao Indio) que, nas palavras de Lima (1992, p. 155), constituiu-se no "primeiro aparelho de poder governamentalizado instituido para gerir a relacao entre os povos indigenas, distintos grupos sociais e demais aparelhos de poder". Durante a gestao do SPI, que durou ate 1967, a intencao, baseada na ideia de transitoriedade do indio, foi transforma-los os indios em pequenos produtores rurais capazes de se auto-sustentarem. Nessa direcao, convergiu o Codigo Civil de 1916 que consagrou a capacidade civil relativa dos indios, condicionada ao seu grau de civilizacao (LIMA, 1992). O Estatuto do Indio (Lei 6.001/73), que se seguiu a extincao do SPI, continuou regulando a questao indigena sob o signo do assimilacionismo e a aplicar aos povos nativos o regime tutelar. Nesse contexto, a condicao de indigena era reconhecida como uma situacao transitoria, um estagio na caminhada civilizatoria, que poderia ir desde o estado de "isolados" ate o estado de "integrados" (ARRUDA, 2001), conforme o art. 4[degrees] da referida Lei.

Como observa Dantas (2014, p. 344), "o itinerario dessa historia e caracterizado pelo ocultamento e invisibilizacao da diversidade etnica e cultural, portanto, da negacao da pluralidade de povos e culturas configuradoras da sociedade complexa e multicultural".

Porem, com a promulgacao da Constituicao de 1988, altera-se profundamente o paradigma sob o qual viria a ser regulada a questao indigena no pais. Na Constituicao de 1988, "as terras tradicionalmente ocupadas pelos indios" foram mantidas entre os bens da Uniao (art. 20, XI), mas, diferentemente das anteriores, o texto tratou de reconhecer aos povos indigenas o direito a diferenca, ou seja, o direito de serem indigenas e de permanecerem como tais. O texto inovou ao estabelecer, no art. 231, nao apenas o direito sobre as terras que tradicionalmente ocupam, mas de afirmar que esse direito e de natureza originaria, ou seja, anteriores a formacao do proprio Estado brasileiro, existindo independentemente de qualquer reconhecimento oficial. No Brasil, territorio etnico nao deve ser confundido com terra indigena (BELTRAO, 2014). Terra indigena e a unidade territorial definida juridicamente e criada por meio de procedimentos administrativos, com vistas a garantir a determinado grupo um espaco geografico para uso e reproducao social (OLIVEIRA, 2012). Estes procedimentos administrativos encontram-se previstos no Decreto no 1.775, de 08/01/1996, e envolvem identificacao, delimitacao, demarcacao e registro destas terras.

O conceito de terras indigenas, mesmo que mais restrito que o conceito de territorio, e, de qualquer forma, um desafio ao modelo proprietario-civilista do direito brasileiro, em que a propriedade privada e um espaco excludente e marcado pela nota da individualidade (DUPRAT, 2012). O conceito de territorialidade e tao fundamental que partir dele os povos indigenas definem a sua identidade, razao pela qual, observa Lippel (2014, p. 106), "o fim...

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