Os indios e a pesquisa dos juristas tradicionais.

AutorMoreira, João Vitor de Freitas

ARAUJO JUNIOR, Julio José. Direitos territoriais indígenas: uma interpretação intercultural. Rio de Janeiro: Processo, 389 p., 2018

Não é comum encontrar na vasta literatura jurídica uma obra que se dedique exclusivamente a pesquisar categorias do direito oficial em relação aos povos indígenas, tal como fez Julio José Araújo Junior em "Direitos territoriais indígenas: uma interpretação intercultural". Isso, contudo, não significa dizer que inexistam trabalhos dedicados à discutir e criticar o direito oficial quando se relaciona a "questão" indígena. Nesse contexto, o livro em questão chega ao cenário acadêmico para fazer companhia a autores de peso, como Manuela Carneiro da Cunha (1987; 1992), Mendes Jr. (1912) e Carlos Frederico Marés de Souza Filho (2018 [1998]). Notadamente, não nos parece que este texto tenha menor importância, até porque foi um finalista do Prêmio Jabuti em Direito de 2019.

O autor, atualmente, ocupa um cargo no Ministério Público Federal e acumula uma história de atuação nas mais variadas carreiras jurídicas. O que nos interessa, contudo, é que este livro é produto de uma dissertação de mestrado defendida em 2018 na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, sob a orientação do Prof. Dr. Daniel Sarmento. Trata-se, assim, de uma pesquisa científica em direito que tem como foco essencial os direitos territoriais indígenas lidos sob uma perspectiva intercultural. É provável que o interesse sobre essa temática, deixada à margem curricular das Faculdades de Direito, decorra da atuação do autor na Procuradoria da República no Amazonas, sobretudo devido ao episódio ocorrido em Humaitá-AM, relatado na introdução do texto.

No campo acadêmico, o conhecimento de Julio José Araujo Junior aparece em uma importante publicação coordenada pela Manuela Carneiro da Cunha e Samuel Barbosa (2018) após o seminário sobre Direitos dos Povos Indígenas em Disputa, ocorrido em 2015 na FD/USP-SP. Se um prelúdio ou não, o texto daquela publicação traz muitos assuntos a serem tratados na dissertação de mestrado, especificamente o enfrentamento de inúmeros teóricos contemporâneos que dificilmente se convergiriam não fosse o impressionante poder de síntese do autor. Inclusive, essa será uma marca ao longo de todo este trabalho.

A obra em questão se divide em cinco capítulos, sendo difícil identificar uma hipótese adequadamente delimitada nos termos de uma metodologia de pesquisa científica, embora o recorte da análise esteja claro desde o título. O que experenciamos ao longo da leitura são inúmeros objetivos específicos para alcançar a proposta teórica que o autor se colocou: apresentar uma interpretação intercultural. Para tanto, algumas premissas são estabilizadas como o fato de que "[...] o tratamento da matéria indígena carece de um enfoque paritário" (p. 5), ou que "[a] percepção que vigora acerca dos povos indígenas remete a ideias como primitivismo e infantilidade." (p. 3), donde é necessário "[...] descolonizar o estudo das propriedades [...]" (p. 7) para se retirar a posição marcada pela vulnerabilidade ainda persistente no cenário dos índios nesta terra (p. 3). Todas essas premissas, e muitas outras ao longo do texto, são verdadeiras e o autor não faz muito ao alocá-las no campo das suas análises, haja vista o paternalismo complacente do tratamento Estado-indígena que vigora nas ficções jurídicas. O destaque está justamente na tentativa de apresentar a proposta hermenêutica da interculturalidade em oposição à multiculturalidade como linguagem de tratamento dos direitos territoriais. Porém, o autor, é importante frisar desde logo, não se preocupa com a territorialidade ou territórios sociais (LITTLE, 2005) ou sobre as mais variadas formas que os povos nativos compreendem e produzem relações com o que nomeamos de "terra".

No primeiro capítulo, denominado "Os caminhos do multiculturalismo e seus limites", nosso autor inicia de forma muito interessante a configuração do seu diagnóstico sobre o multiculturalismo com Davi Kopenawa e a celebrada obra "A queda do céu: palavras de um xamã yanomami" (2015), mas tão logo os ensinamentos de Omama são deixados de lado e a discussão de filosofia política vem à tona. Os autores aqui começam a pulular e é onde encontramos o grande potencial do pesquisador: sua capacidade de relacionar variadas matrizes teóricas com um objetivo comum. Começando nos liberais igualitários, passando pelos comunitaristas e pelas teorias feministas, o autor desemboca no binômio bastante comum na filosofia política da primeira metade do século: reconhecimento vs. redistribuição. Figuras comuns da Immanent kritik e da teoria crítica são colocados em debate, cujo denominador comum está na construção do paradigma multicultural que eles, de alguma forma ou de outra, parecem contribuir. Segundo nosso autor, "o que se buscou foi mostrar como o multiculturalismo liberal, ao discutir a construção de modelos que permitam a convivência entre culturas, deixa clara a posição proeminente de certos valores e um certo desinteresse pelas cosmovisões de outros grupos" (p. 52). Por fim, recorre à hermenêutica diatópica de Raimon Panikkar ofertada na leitura de Boaventura de Sousa Santos (2003) e apresenta uma visão sobre a incompletude das culturas e a necessidade de se criar mecanismos de diálogos. Curioso é ver como esse raciocínio, que está disponível criticamente na literatura desde Rita Laura Segato (2006), é...

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