Os Indivíduos como Sujeitos do Direito Internacional

AutorAntônio Augusto Cançado Trindade
Ocupação do AutorJuiz da Corte Internacional de Justiça (Haia)
Páginas187-235
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Os Indivíduos como Sujeitos do Direito Internacional
Sumário:1I. Introdução: Breves Precisões Preliminares. II. O Indivíduo como Sujeito
do Direito das Gentes, no Pensamento dos Autores Clássicos. III. A E xclusão do
Indivíduo do Ordenamento Jurídico Internacional pelas Distorções d o Positivismo
Jurídico Estatal. IV. A Personalidade Jurídica do Indivíduo com o Resposta a uma
Necessidade da Comunidade Internacional. V. O Resgate do Indivíduo como Sujei-
to do Direito Internacional na Doutrina Jurídica do Século X X. VI. A Atribuição de
Deveres ao Indivíduo Diretamente pelo Direito Internacional. VI I. A Capacidade
Jurídica Internacional do Indivíduo. VII I. O Direito Subjetivo, os Direitos Humanos
e a Nova Dimensão da Titularidade Jurídica Internacional d o Ser Humano. IX. A
Subjetividade Internacional do Indivíduo como o Maior L egado do Pensamento
Jurídico do Século XX. X . Reflexões Finais: Novos Avanços da Subjetividade Inter-
nacional do Indivíduo no Século X XI.
I. Introdução: Breves Precisões Preliminares
Há muitos anos venho dedicando minhas reflexões ao importante tema da
personalidade e capacidade jurídicas do indivíduo como sujeito do Direito Inter-
nacional. Integra um capítulo fundamental do Direito Internacional, que tem pas-
sado por uma evolução considerável nas últimas décadas, a requerer assim uma
atenção bem maior e mais cuidadosa do que a que lhe tem sido dispensada até o
presente por grande parte da doutrina jurídica, aparentemente ainda apegada a
posições dogmático-ideológicas do passado. A consolidação da personalidade e
capacidade jurídicas do indivíduo como sujeito do Direito Internacional constitui,
como o tenho afirmado em sucessivos foros nacionais e internacionais, o legado
mais precioso do pensamento jurídico do século XX, e que tem logrado novos
avanços no século XXI.
1 O presente trabalho de pesquisa serviu de base às duas conferências magnas proferidas
pelo Autor, respectivamente, nos atos acadêm icos de lançamento de seu livro ”The Access
of Individuals to Internat ional Justice“ (Oxford, Oxford University Press, 2011), realizados,
em um primeiro momento, na Universidade de Paris (Sciences-Po), em Paris, França, aos
11 de maio de 2012, e, em um segundo momento, na Universidade de Cambridge, em
Cambridge, Reino Unido, aos 19 de maio de 2012.
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ANTÔNIO AUGUSTO CANÇADO TRINDADE
Ao retomar a presente temática, buscarei recapitular em resumo os pontos
principais de meus trabalhos anteriormente publicados sobre a matéria2, e abor-
dar novos desenvolvimentos, consoante o seguinte plano de exposição: examina-
rei, de início, a subjetividade internacional do indivíduo no pensamento dos au-
tores clássicos, e, a seguir, a exclusão do indivíduo do ordenamento jurídico
internacional pelo positivismo jurídico estatal, assim como o resgate do indivíduo
como sujeito do Direito Internacional na doutrina jurídica do século XX, e sua
projeção na atualidade.
Ressaltarei, em sequência, a atribuição de deveres ao indivíduo diretamente
pelo Direito Internacional, e a necessidade da legitimatio ad causam dos indivíduos no
Direito Internacional (subjetividade ativa). Passarei, em seguida, ao estudo da capa-
cidade jurídica internacional do indivíduo, concentrando-me nos fundamentos jurí-
dicos do acesso do ser humano aos tribunais internacionais de direitos humanos, e
sua participação direta no procedimento ante estes últimos, com atenção especial à
natureza jurídica e ao alcance do direito de petição individual. Por último, abordarei
os desenvolvimentos pertinentes recentes e mais notáveis nos sistemas internacio-
nais de proteção da pessoa humana, apresentando enfim m inhas reflexões derradei-
ras sobre a matéria.
Ao longo do presente estudo, referir-me-ei frequentemente aos conceitos de
personalidade e capacidade jurídicas no plano internacional. A título de introdução
à matéria, podemos, no presente contexto, entender por personalidade a aptidão
2 A.A. Cançado Trindade, “A Emancipação do Ser Huma no como Sujeito do Direito
Internacional e os Limites da Razão de Estado”, 6/7 Revista da Faculdade de Direito da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1998-1999) pp. 425-434; A.A. Cançado Trindade,
“El Acceso Directo de los Indiv iduos a los Tribunales Inter nacionales de Derechos Humanos”,
XXVII Curso de Derecho Internacional Organizado por el Comité Jur ídico Interamericano
– OEA (2000) pp. 243-283; A.A. Cançado Trindade, “Las Cláusulas Pétreas de la Protección
Internacional del Ser Humano: El Acceso Directo de los Individuos a la Just icia a Nivel
Internacional y la I ntangibilidad de la Jurisd icción Obligatoria de los Tribunales Internacionale s
de Derechos Humanos”, El Sistema Interamericano de Protección de los Derechos Humanos
en el Umbral del Siglo XXI – Memoria del Seminario (Nov. 1999), San José de Costa Rica,
Corte Interamericana de Derechos Humanos, 2001, pp. 3-68; A.A. Cançado Trindade, El
Acceso Directo del Individuo a los Tribunales Internacionales de Derechos Humanos,
Bilbao, Universidad de Deusto, 2001, pp. 17-96; A.A. Cançado Trindade, “A Consolidação da
Personalidade e da Capacid ade Jurídicas do Indivíduo como Sujeito do Direito Inter nacional”,
16 Anuario de l Instituto Hispano- Luso-Americano de Derecho Internacional – M adrid (2003)
pp. 237-288; A.A. Cançado Trindade, A Humani zação do Direito Internacional, Belo Horizonte/
Brasil, Edit. Del Rey, 2006, pp. 107-172; A.A. Cançado Trindade, “The Emancipation of the
Individual from His Own State – The Historical Recovery of the Human Person as Subject of
the Law of Nations”, in Human Rights, Democracy and the Rule of Law – Liber Amicorum L.
Wildhaber (eds. S. Breitenmoser et alii), Zürich/Baden-Baden, Dike/Nomos, 2007, pp. 151-
171; A.A. Cançado Trindade, Évolution du D roit international au droit des gens – L’accès des
particuliers à la just ice internationale: le regard d’un juge, Paris, Pédone, 2008, pp. 1-187.
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A HUMANIZAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL
para ser titular de direitos e deveres, e por capacidade a aptidão para exercê-los por
si mesmo (capacidade de exercício). Encontra-se, pois, a capacidade intimamente
vinculada à personalidade; no entanto, se por alguma situação ou circu nstância um
indivíduo não disponha de plena capacidade jurídica (para exercer seus direitos por
si próprio), nem por isso deixa de ser sujeito de direito. Com estas precisões prelimi-
nares em mente, passo ao exame deste tema recorrente no Direito Internacional, de
tanta significação e importâ ncia e de perene atualidade.
II. O Indivíduo como Sujeito do Direito das Gentes,
no Pensamento dos Autores Clássicos
Ao considerar a posição dos indivíduos no Direito Internacional, não há que
se perder de vista o pensamento dos chamados “fundadores” do direito das gentes.
Há que recordar a considerável importância, para o desenvolvimento do tema, so-
bretudo dos escritos dos teólogos espanhóis assim como da obra grociana. No perí-
odo inicial de formação do direito internacional era considerável a influência exerci-
da pelos ensinamentos dos grandes mestres, – o que é compreensível, dada a
necessidade de articulação e sistematização da matéria3. Mesmo em nossos dias, é
imprescindível ter presentes tais ensina mentos.
É amplamente reconhecida a contribuição dos teólogos espanhóis Francisco
de Vitoria e Francisco Suárez à formação do Direito Internacional. Na visão de Suá-
rez (autor do tratado De Legibus ac Deo Legislatore, 1612), o direito das gentes revela a
unidade e universalidade do gênero humano; os Estados têm necessidade de um
sistema jurídico que regule suas relações, como membros da sociedade universal4.
Foi, no entanto, o grande mestre de Salamanca, Francisco de Vitoria, quem deu uma
contribuição pioneira e decisiva para a noção de prevalência do Estado de Direito: foi
ele quem sustentou, com rara lucidez, em suas aclamadas Relecciones Teológicas (1538-
1539), que o ordenamento jurídico obriga a todos – tanto governados como gover-
nantes, – e, nesta mesma linha de pensamento, a comunidade internacional (totus
orbis) prima sobre o a rbítrio de cada Estado individual5.
3 A.A. Cançado Trindade, Princípios do Direito Internacional Contemporâneo, Brasília,
Editora Universidade de Brasília, 1981, pp. 20-21. Para um relato da formação da doutrina
clássica, cf., inter alia, e.g., P. Guggenheim, Traité de droit international public, vol. I,
Genève, Georg, 1967, pp. 13-32; A. Verdross, Derecho Internacional Público, 5ª. ed.,
Madrid, Aguilar, 1969 (reimpr.), pp. 47-62; Ch. de Visscher, Théories et réalités en Droit
international public, 4ª. ed. rev., Paris, Pédone, 1970, pp. 18-32; L. Le Fur, «La théorie
du droit naturel depuis le XVIIe. siècle et la doctrine moderne», 18 Recueil des Cours de
l’Académie de Droit Internat ional de La Haye (1927) pp. 297-399.
4 Cf. Association Internationale Vitoria-Suarez, Vitoria et Suarez – Contr ibution des
Théologiens au Droit Inte rnational Moderne, Paris, Pédone, 1939, pp. 169-170.
5 Cf. Francisco de Vitoria, Relecciones – del Estado, de los Indios, y del Derecho de la
Guerra, México, Porrú a, 1985, pp. 1-101; A. Gómez Robledo, op. cit. infra n. (11), pp. 30-39.
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