Inexistência de relação de consumo entre o 'shopping center' e seus frequentadores

AutorLuiz Gastão Pães de Barros Leães
Páginas211-223

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1. Exposição e consulta

1.1 O Ministério Público do Estado de São Paulo moveu ação civil pública junto ao MM. Juízo da 5- Vara Cível da Comarca de Osasco contra B.S.P e A.O.P.S. S/C Ltda, objetivando a condenação das rés para o fim de indenizar os danos morais e patrimoniais sofridos pelas vítimas do trágico acidente ocorrido no O.P.S., situado à Rua xxx, Centro, em Osasco, Estado de São Paulo.

1.2 No dia 11 de junho de 1996, por volta das 12:15h, sucedeu violenta explosão, seguida de desabamento nas dependências do O.PS., vitimando centenas de pessoas, entre elas quarenta e duas mortas e outras tantas feridas, com graves mutilações. A explosão teria sido provocada por vazamento na tubulação de Gás Liquefeito de Petróleo (GLP), que vinha se acumulando no vão livre existente entre o piso e o solo do shopping.

1.3 A B.S.P, além de proprietária do imóvel onde está instalado o O.PS., é o seu empreendedor, havendo constituído a empresa A.O.P.S. S/C Ltda. para, em conjunto, administrar o empreendimento.

1.4 Atribuindo a estas a responsabilidade, "independentemente da existência de culpa", pelo fato do produto e do serviço, introduzida pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990, arts. 12 usque 17), porque, como empreendedores e como administradores do shopping, seriam "fornecedores", no sentido jurídico do termo, assim como revestiriam a qualidade de "consumidores" os seus usuários e frequentadores, o Ministério Público, após caracterizar os danos como decorrentes de produtos e serviços defeituosos, requereu a procedência do pedido indenizatório. Ainda nessa ordem de raciocínio, com fundamento no art. 28 do Código, requereu o Ministério Público inclusive a desconsideração da personalidade jurídica das rés, a fim de que os seus sócios respondessem também solidariamente pelos prejuízos sofridos pelas vítimas.

1.5 Como tese subsidiária, requereu também o Ministério Público a responsabilização das rés-pessoas jurídicas, com base nos arts. 1.056, 1.521-II, 1.527, 1.528 e 1.529 do Código Civil, por culpa presumida decorrente da responsabilidade contra-

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tual, pela guarda de coisa e pela ruína do prédio. Ainda como segunda tese subsidiária, o Ministério Público atribuiu às rés a responsabilidade pelo ocorrido em razão da conduta que reputa culposa de seus pre-postos e representantes legais.

1.6 Eis que, por sentença prolatada em 26 de maio de 1997, o MM. Juízo acolheu a argumentação do Ministério Público, com base nos fundamentos jurídicos acima sintetizados, julgando procedente o pedido para condenar todos os réus, nos termos do art. 95 do Código de Defesa do Consumidor a reparar os danos morais e patrimoniais experimentados pelas vítimas do acidente, ocorrido nas dependências do shopping, ressarcindo as mesmas com indenização cujo montante deveria ser apurado em liquidação de sentença de acordo com o art. 97 da citada Lei n. 8.078/90.

1.7 Ao assim decidir, o MM. Juízo acolheu, portanto, a tese da aplicação na espécie do Código de Defesa do Consumidor, com fundamento de que "não há dúvida" de que "há relação de consumo entre as co-rés, pessoas jurídicas, administradoras do centro comercial e as pessoas usuárias e frequentadoras do shopping", devendo ser o O.S.P. encarado como "fornecedor" de bens e serviços no mercado de consumo, já que "uma das preocupações essenciais desses centros comerciais é justamente propiciar o conforto e a comodidade dos consumidores", e as pessoas frequentadoras do shopping, vítimas do acidente, "consumidoras".

1.8 Tendo em vista que, como a própria sentença admite, "ausente a condição de consumidores, de plano estará afastada a legitimidade do Ministério Público para a propositura da ação", somos consultados se procede a alegação da autora do feito, agasalhada pelo MM. Juízo, quanto a existência de "relação de consumo" entre as pessoas proprietárias e administradoras do O.PS. e as vítimas do infausto acontecimento, para efeito da legislação especial. A resposta à consulta formulada exige que façamos um pormenorizado exame prévio sobre os conceitos acima ventilados.

2. As relações de consumo

2.1 Uma das figuras essenciais da experiência jurídica é representada pela chamada relação jurídica, cujo conceito foi formulado de maneira definitiva por Sa-vigny, no decorrer do século passado. Alguns juristas sustentam até que a ciência do Direito'somente adquiriu a sua maturidade nô instante em que a pandectista alemã estabeleceu, de maneira precisa, esse conceito. Jhering chegou a dizer que a relação jurídica está para a ciência do Direito assim como o alfabeto está para a palavra.1

2.2 Que devemos entender pela expressão relação jurídica) Os homens, visando à obtenção de finalidades diversas, entram em contato uns com os outros. Há, assim, uma infinidade de laços prendendo os homens entre si, mas nem todos são, evidentemente, de natureza jurídica. A relação jurídica é toda relação da vida social que, uma vez disciplinada pelo Direito, passa a ser geradora de efeitos jurídicos.

Quais são as relações sociais que passam a ter efeitos jurídicos? Há duas respostas. De acordo com uma primeira visão, as relações jurídicas seriam as relações sociais postas na realidade e apenas reconhecidas pelo Direito, com a finalidade de protegê-las. A outra é a concepção operacional, segundo a qual á ordem jurídica, mais do que o reconhecimento de algo já estabelecido pelo livre jogo dos interesses individuais, instaura modelos que atribuem às relações sociais consequências jurídicas.

2.3 Assim, poderíamos dizer que quando uma relação social se subsume ao modelo normativo instituído pelo legislador, essa realidade concreta, encarada pelo prisma do Direito, adquire a condição de relação jurídica e passa ter os efeitos jurídicos que lhe são pertinentes. Para que essa relação jurídica se instaure, é, pois, necessário que sejam preenchidos dois requisitos. Em

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primeiro lugar, que exista uma relação in-tersubjetiva, ou seja, um vínculo entre duas ou mais pessoas. Em segundo lugar, que esse nexo corresponda a uma hipótese normativa, de tal maneira que, em ocorrendo a hipótese no plano fáctico, derivem as consequências obrigatórias previstas em lei.2

2.4 Daí podermos concluir que, em toda relação jurídica, haverá, ao menos, sempre quatro elementos a considerar: sujeitos, objeto, fato jurídico e garantia. Sujeitos da relação jurídica são as pessoas entre as quais se estabelece o liame respectivo. São titulares do direito subjetivo e das posições passivas correspondentes, do dever e da sujeição. O objeto da relação jurídica é aquele bem sobre o qual recai tanto a exigência do credor quanto a obrigação do devedor. Não é, pois, o direito subjetivo, nem o correspondente dever jurídico. Estes formam o "conteúdo" da relação jurídica. Objeto da relação jurídica é o objeto do direito subjetivo do sujeito ativo, a que se contrapõe o dever do sujeito passivo. Pode ser objeto da relação jurídica tanto uma coisa, quanto uma prestação, como até mesmo a própria pessoa.

O fato jurídico é todo ato humano ou evento natural, previsto na lei como hipó-tese de fato, que faz com que a relação jurídica passe do plano dos arquétipos ou dos modelos para o plano da realidade concreta. Por fim, a garantia da relação jurídica, que é o conjunto de providências coercitivas posto à disposição do titular ativo de uma relação jurídica, caso tenha ele o seu direito subjetivo violado, ou ameaçado.

2.5 O fenómeno da produção e do consumo em massa tornou imperiosa a atribuição de juridicidade às chamadas relações de consumo. Até há pouco tempo, essa categoria da experiência social não era, como tal, reconhecida pela ordem jurídica, mesmo em se tratando de institutos que se plasmaram à luz da realidade da produção e da circulação de bens. O próprio conceito de consumo não aparecia nos textos legislativos senão de maneira episódica, como, por exemplo, na classificação dos bens quanto à sua destinação, prevista na lei civil (arts. 51 e 726). A partir da década de 60, multiplicaram-se, em vários países, os diplomas relativos ao consumo e à proteção do consumidor. A Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990, se inscreve nesse movimento.

2.6 A ordem jurídica reflete, como é sabido, os valores sociais dominantes, espelhando o sistema económico vigente. Os códigos oitocentistas, e os que os sucederam no século atual, talhados à sombra da ideologia liberal, consagraram o modelo produtivo baseado na propriedade privada e na liberdade de iniciativa. Esta, através do princípio da autonomia de vontade, permeia toda a matéria negociai; aquela assume o papel ao mesmo tempo de limite ao risco da iniciativa privada e de garantia das obrigações que dela derivam. Ambas essas noções foram concebidas levando em consideração relações jurídicas singulares, não atingindo as relações de massa, instauradas entre os centros produtores e o público consumidor. Daí a insuficiência das técnicas jurídicas para enfrentar o fenómeno da produção e do consumo em massa.

2.7 Para ilustrar, tomemos a compra e venda, qualificada como o instrumento o mais hábil para regular as relações de pro-

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dução-circulação-consumo. Trata-se de um contrato de troca económica, que se cinge à existência de duas partes - o vendedor e o comprador - que têm, por obrigações recíprocas, a entrega da coisa e o pagamento do preço. O modelo negociai está polarizado no sentido das operações individualizadas, não havendo previsão normativa para adequá-lo aos negócios em série.

A lei, tanto civil quanto comercial, admite, é verdade, uma grande liberdade de...

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