O Inquietante Fenômeno da Mutação Constitucional

AutorOriana Piske de Azevedo Magalhães Pinto
CargoJuíza de Direito do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco/UFPE
Páginas5-11

    O presente estudo tem por base as seguintes obras de Uadi Lammêgo Bulos " Mutação Constitucional (Capítulos III e IV) e Manual de Interpretação Constitucional (Capítulos II e III) " sendo que procuramos desenvolver tangenciamentos a partir de suas reflexões sobre esses temas. Mantivemos a sua sistemática dos capítulos expostos, e as suas expressões jurídicas, a fim de guardar coerência com as referidas obras, dada a sua especificidade e profundidade. O tema em apreço é de grande relevo para o Direito Constitucional e uma realidade inafastável nos Estados Constitucionais.

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As Constituições modificam-se não apenas pelos mecanismos previstos formalmente (revisão e emenda) como, também, pela via informal ou difusa, que resulta em alteração do seu conteúdo, significação e alcance, sem qualquer modificação na forma. Os processos formais de mudança da Carta Constitucional, por inúmeros fatores, decorrem de um processo lento e complexo. O próprio legislador constituinte estabeleceu cláusulas que não se sujeitam à mudança pelo poder constituinte derivado, como previsto no art. 60, § 4º da Constituição brasileira de 1988.

A experiência revela que "quanto mais difíceis se apresentem as técnicas de reforma, mais fortemente aparecerão os meios difusos de modificação constitucional, para a adaptação do Texto Maior às exigências prementes da sociedade."1 Com efeito, a Constituição possui uma estrutura dinâmica, prospectiva e, em constante aperfeiçoamento, relaciona-se com as demais estruturas sociais, econômicas, políticas e jurídicas, que se modificam ao longo do tempo. O tecido constitucional é permeado por fatos, valores e normas. Tais normas são abertas e, em decorrência, apresentam-se flexíveis, possibilitando ao órgão julgador examinar os fatos sociais cambiantes numa análise de valoração e interpretação conforme a Constituição naquele momento histórico.

1. Mutação constitucional

O dinamismo dos fatos sociais conduz a mudanças na realidade normativa do ordenamento jurídico. Bulos registra que, "ao lado desse dinamismo do ordenamento, alia-se a estabilidade das suas normas, mormente as constitucionais, por consubstanciarem a estrutura basilar do Estado"2. A ligação entre dinamismo e estabilidade encontrase no cerne da Constituição. Trata-se de um equilíbrio de forças decorrente da tensão entre o ordenamento jurídico e a estabilidade que se espera das normas.

O elemento dinâmico é fundamental para a ocorrência das mudanças informais nas Constituições, que diferem dos processos formais por não se revestirem dos requisitos previstos pelo legislador constituinte. As mutações constitucionais são decorrentes das modificações do sentido, significado e alcance de algum dispositivo do texto da Constituição, modificações essas que acontecem sem os processos de emenda ou revisão.

As leis constitucionais possuem uma inalterabilidade relativa, eis que podem sofrer modificações, independentemente das formalidades advindas do princípio da rigidez.

A doutrina alemã foi quem primeiro identificou o problema, ao perceber que a Constituição de 1871 sofria freqüentes mudanças concernentes ao funcionamento das instituições do Reich - mudanças sem processo de reformas constitucionais.

Para Karl Loewenstein, a reforma constitucional possui um significado formal e outro material, enquanto as mutações constitucionais não possuem tal significado por não afetarem o texto, que permanece incólume3.

1.1. Natureza e modalidades

As mutações constitucionais apresentam natureza informal, eis que são meios difusos que não seguem formalidades expressas e ocorrem de maneira espontânea, sem qualquer previsibilidade.

A Constituição pode sofrer o influxo da interpretação dos tribunais, dos usos e costumes, da construção judicial, dos grupos de pressão e de outros agentes, a despeito do texto da Constituição não ser modificado. As modificações difusas não possuem uma sistematização doutrinária uniforme no que concerne a suas modalidades.

Bulos destaca as quatro categorias de mutação constitucional elaboradas por Hsü Dau- Lin:

"1ª) mutação constitucional através de prática que não vulnera a Constituição; 2ª) mutação constitucional por impossibilidade do exercício de determinada atribuição constitucional; 3ª) mutação constitucional em decorrência de prática que viola preceitos da Carta Maior; 4ª ) mutação constitucional através da interpretação."4

Partindo da premissa que as mutações constitucionais são uma realidade modificadora do significado e do alcance das normas previstas na Constituição e considerando os dados oriundos da praxe constitucional, Bulos esboçou as seguintes modalidades de mutação constitucional:

"a) as mutações constitucionais operadas em virtude da interpretação constitucional, nas suas diversas modalidades e métodos;

  1. as mutações decorrentes das práticas constitucionais;

  2. as mutações através da construção constitucional; e

  3. as mutações constitucionais que contrariam a Constituição, é dizer, as mutações inconstitucionais."5

Há uma evidente correlação entre o princípio da rigidez constitucional e o inquietante fenômeno da mutação constitucional.

1.2. Mutabilidade e rigidez das Constituições

Mutabilidade é a qualidade do que pode ser modificado, alterado. A mutabilidade formal apresenta-se mediante a reforma constitucional, seja por emenda, seja por revisão. Por outro lado, a mutabilidade informal referese a um processo difuso.

O ponto nodal do presente estudo está em examinar o princípio da rigidez constitucional em face da mutabilidade informal da Constituição, panorama que remete a uma análise percuciente do ordenamento jurídico.

Se, de um lado, a Constituição guarda certa estabilidade, mediante o elemento estático, de outra quadra temos que a estabilidade não significa imutabilidade, eis que o texto constitucional atualiza-se na dinâmica diária e contínua, adaptando-se às exigências da sociedade. A própria eficácia e a essência constitucionais estão na observância dos fatores reais do poder.

A Constituição, no nosso entendimento, busca compor com os elementos estático e dinâmico, um sistema de pesos e contrapesos, equilibrando e adaptando a realidade cambiante. No elemento estático repousa a necessária segurança jurídica, visando preservar os direitos e garantias fundamentais da pessoa humana; já o elemento dinâmico permite a adequação da Carta Constitucional à evolução social.

Verificam-se no princípio da rigidez os seguintes aspectos: "a) dificultar o processo reformador da Constituição; b) assegurar a estabilidade constitucional; c) resguardar os direitos e garantias fundamentais, mantendo estruturas e competências, com vistas à proteção das instituições."6

Portanto, qualquer modificação formal da Constituição somente será possível mediante processos complexos, visando sua maior estabilidade.

A doutrina classifica as Constituições em rígidas e flexíveis. Se, de um lado, a Constituição pode ser rígida em determinados Estados, temos, também, que, em outros, ela poderá ser flexível, contrapondo-se à primeira categoria pela possibilidade de poder ser modificada sem qualquer processo formal complexo e dificultoso.

Algumas Constituições costumeiras possuem uma estabilidade autêntica oriunda da educação e formação política do seu povo, ao passo que outras " escritas sem essas condições " buscam criar, artificialmente, uma estabilidade técnica, ao aprovarem processos complexos e formais de reforma.

A rigidez e a flexibilidade são critérios classificatórios de grande utilidade para o exame da estrutura constitucional de um Estado. No que concerne ao Estado brasileiro, verifica-se que o art. 60, I, II e III da Carta Constitucional de 1988 estabelece os requisitos pelos quais poderá sofrer emenda, por intermédio de processos solenes, formais e mais exigentes que os processos comuns de elaboração de leis (ordinárias e complementares). Segundo o § 4º do referido art. 60, não poderão ser objeto de emenda a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes; e, os direitos e garantias individuais - visto que tais cláusulas representam o esteio do Estado Democrático Social Brasileiro.

Percebe-se que nos países de notória instabilidade política, como o Brasil, as cartas rígidas cumprem sua missão, servindo de freio para mudanças repentinas que podem alterar o equilíbrio social.

Bulos destaca os seguintes aspectos fundamentais da vida constitucional dos Estados, em face do princípio da rigidez: "a) a diferença entre poder constituinte originário e poderes constituídos; b) supremacia e hierarquia das normas constitucionais; c) inconstitucionalidade das leis e dos atos normativos; d) controle de constitucionalidade das leis e dos atos normativos; e e) indelegabilidade de competências constitucionais."7

Portanto, verifica-se que a supremacia da Constituição decorre do princípio da rigidez. Contudo, as flexíveis são, também, supremas, mas no aspecto substancial.

A supremacia formal tem por objetivo regular o modo de elaboração da norma inferior. Em decorrência, observa-se a necessidade de compatibilizar as normas com a Constituição, que, contudo, não está imune a vulnerações, tanto por parte do legislador ordinário, quanto por outras autoridades. Com efeito, esta é a razão fundante do controle de constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público, no sentido de preservar a Constituição.

Atualmente, nota-se que os limites entre as funções estatais de administrar e de julgar são demarcados, em última instância, pelos tribunais, e...

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