A Teoria do Garantismo Penal em Questão: O Olhar Anti-Inquisitorial da Axiologia de Luigi Ferrajoli

AutorDébora de Souza de Almeida
CargoAdvogada. Mestranda em Ciências Criminais (PUC/RS). Especialista em Ciências Penais (PUC/RS)
Páginas28-35

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De "uma (mera) raciona-lidade instrumental"1 à salvaguarda dos direitos fundamentais. Através desse raciocínio, a teoria do garantismo penal visa imprimir ao direito um novo papel, contrapondo-se ao juspositivismo vigente, a fim de adequá-lo aos valores constitucionais. Nesta direção, ressalta a dicotomia entre a vigência e a validade da norma, uma vez que esta pode obedecer à forma, mas o seu conteúdo pode ser inválido por não acolher as garantias fundamentais, vinculando o julgador a uma análise crítica e não à mera aplicação da lei vigente2

Todavia, frisa-se que o Judiciário não possui responsabilidade exclusiva quanto ao êxito da teoria garantista, eis que no seu ofício de julgar depara-se com conflitos já instalados pela ineficiência na concretude dos direitos fundamentais e sociais. Nesta empreitada, deno-

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ta-se que os demais poderes e a própria sociedade são imprescindíveis na efetivação do sistema garantidor, seja na elaboração de leis condizentes com os ditames da Carta Magna, seja na prestação dos direitos sociais, pois como bem leciona Canotilho,

"Os direitos fundamentais vinculam as entidades públicas, não apenas de forma 'negativa' - impon-do-lhes uma proibição de agressão ou ingerência na esfera do direito fundamental -, mas também de forma 'positiva' - exigindo delas a criação e manutenção dos pressupostos de facto [sic] e de direito necessários à defesa ou satisfação do direito fundamental."3

Porém, no contexto brasileiro, em que há a persistência do Executivo na implementação de políticas públicas mediatistas, incapazes de aplacar situações de vulnerabilidade social, bem como do Legislativo na produção de uma legiferação penal que subjuga as garantias aos anseios escusos de clamor social, cumpre ao julgador, como elemento final e depurador da cadeia, refrear a violência dirigida aos direitos fundamentais, adequando suas decisões aos preceitos constitucionais.

Por este viés, ao apregoar a minimização da intervenção penal através do resguardo das garantias, a teoria de Ferrajoli evidencia-se avessa aos modelos dogmáticos e antipluralistas representados pela inquisição, pelo nacional-socialismo, pelo direito penal do inimigo e outros tantos marcados pelo paradigma da intolerância4, incluindo-se nessa atroz sistemática os componentes da criminologia da vida cotidiana e a previsão infra-constitucional da reincidência criminal.

2. Notas sobre a confusão entre abolicionismo e garantismo pessoa

No Brasil, tanto nas práticas dos agentes da cultura penal, quanto nas narrativas do senso comum, muito se confunde as diretivas apregoadas pela teoria garantista e pela doutrina abolicionista, resultando equivocada-mente por compreendê-las como sinônimas. Por esse prisma, no intuito de contribuir para o afastamento de pré-juízos inautênticos5 que conduzem à baixa aplicação6 dos postulados do garantismo penal, depreende-se que a identificação das características distintivas das referidas vertentes é de suma importância, eis que sua melhor compreensão pode propiciar uma revisão de práticas e posicionamentos.

Por este aspecto, enquanto a cadeia de silogismos esculpida por Ferrajoli mostra-se favorável à punição, desde que numa perspectiva de direito penal mínimo, conforme ilustrado nos persistentes questionamentos acerca do por que, de quando e de como proibir, julgar e punir7, o abolicionismo revela não reconhecer qualquer legitimidade dos artefa-tos penais, seja pelo fundamento ético-político por estes apresentados, seja pelos pequenos benefícios que trazem se comparados aos vultosos danos que acarretam8.

Nestes termos, ancorada nos estudos realizados pela Teoria da Reação Social9, a corrente abolicionista, cujos expoentes são Christie, Hulsman e Mathiesen, exara uma patente vontade de eliminação do sistema penal, alertando que os conflitos, incapazes de ser totalmente suprimidos do corpus social, devem ser remetidos para tratamento no âmbito cível ou administrativo, quando não resolvidos no plano informal-comunitário.

Christie, numa linha mais comedida, concorda que o sistema penal, com suas prisões que mais parecem gulags e campos de concentração, é um instrumento hábil para produção de dor, razão pela qual devem ser buscados meios alternativos de cunho privatista ou comunitário, pautado na mediação e na reparação do dano impresso pelo desvio, a fim de que a sanção penal seja relegada a ultima ratio10.

Mathiesen, por seu turno, influenciado pelos preceitos marxistas e calcado na eficácia inversa da prevenção especial positiva11, advoga pela progressiva abertura do seletivo sistema penal, bem como pela abolição da vultosa máquina carcerária, apontando que a maior parte dos que lá se encontram fora condenada por crimes contra o patrimônio.

Hulsman, numa implícita conjugação desses dois exames, comparece por derradeiro como o abolicionista mais radical, reivindicando em linhas gerais pela eliminação integral do que denomina de mal social12 em prol de meios informais ou comunitários menos danosos, como a resolução de conflitos na seara cível ou administrativa, com vistas a "dar vida às comunidades, às instituições e aos homens"13.

Todavia, embora reconheça os contributos da referida doutrina, que, centrada na perspectivas externa e seletiva do direito penal, estimulou pesquisas sobre as origens culturais e sociais do desvio, bem como acerca do re-lativismo histórico-político dos interesses penalmente tutelados, intensificando indagações sobre a legitimidade moral das doutrinas penais dominantes e, por conseguinte, impondo a estas a tarefa

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de elaborar justificativas positivas mais convincentes para este constructo arbitrário e artificial14, reflete Ferrajoli que

"El abolicionismo penal más allá de sus intenciones libertarias y humanitarias se configura por todo ello como una utopía regresiva que, bajo presupuestos ilusorios de una socie-dad buena o de un estado bueno, pre-senta modelos en realidad desregula-dos o autorregulados de vigilancia y castigo respecto a los cuales es el de-recho penal -con su complejo, difícil y precario sistema de garantías- el que constituye, histórica y axiológica-mente, una alternativa progresista.15

Inobstante, acrescenta que, igualmente, os vieses do substitu-cionismo penal não devem ser confundidos com a axiologia garantista e, tampouco, com o ideal abolicionista, tendo em vista que aqueles, ao apregoarem a substituição dos métodos penais atuais por tratamentos pedagógicos ou terapêuticos informais, incluindo, neste rol, novos instrumentos coercitivo-institu-cionais, restam por cristalizar, ainda que sob um discurso li-bertário-humanista, um claro perfilha-mento ao correlacionismo positivista16.

Nestes termos, fica nítido que as premissas da Teoria o Garantis-mo Penal demonstram-se explicitamente contrárias às apregoadas pela doutrina abolicionista, razão pela qual a preocupante confusão que as interliga não pode prosperar.

Dito isso, adentra-se ao necessário exame da axiologia garantista cunhada magistralmente por Luigi Ferrajoli.

3. O sistema garantista: a construção de Luigi Ferrajoli

Resumidamente, o sistema garantista de Ferrajoli, representado pela sigla SG, é composto por dez axiomas, conexos e não deriváveis, que dividem-se em garantias penais e processuais penais que, representadas por equações, visam limitar o arbítrio punitivo do Estado, tanto na cominação quanto na aplicação da pena.

Desse modo, são garantias penais: nulla poena sine crimine (A1), denominada como princípio da retributividade; nullum crimen sine lege (A2), intitulada como princípio da legalidade em sentido lato ou estrito; nulla lex (poenalis) sine necessitate (A3), chamada de princípio da necessidade ou economia do direito penal; nulla necessita sine iniu-ria (A4), traduzida pelo princípio da le-sividade ou ofensi-vidade do ato; nulla iniuria sine actione (A5), que corresponde à materialidade ou exterioridade da ação; e nulla ac-tio sine culpa (A6), que indica o princípio da culpabilidade ou responsabilidade pessoal.

As garantias processuais, por seu turno, são compostas pela nulla culpa sine iudicio (A7), que reveste o princípio da jurisdicio-nariedade em sentido lato ou estrito; pela nullum iudicium sine accusatione (A8), que denota o princípio acusatório ou da separação do juiz e acusação; pela nulla accusatio sine probatione (A9), que consiste no princípio do ônus da prova ou da verificação e, por fim, pela nulla probatio sine de-fensione (A10), que enuncia o princípio do contraditório, também conhecido como da defesa ou da falseabilidade17

O atendimento de tais axiomas, que, combinados, podem expressar até 75 teoremas18, revela o grau de garantismo de cada sistema, pois não basta que as garantias estejam previstas no texto constitucional, mas sim que sejam efetivadas, sendo inadmitida a interferência de qualquer legislação ordinária ou de cunho inquisitorial sobre os direitos fundamentais que delas decor-rem19.

3.1. As garantias penais e seus derivados

O princípio da retributividade é a primeira e mais singela garantia penal esposada por Ferrajoli. Traduzido pela máxima nulla poena sine crimine, indica que a pena só pode ser aplicada na ocorrência do seu pressuposto, isto é, o delito. Para tanto, a pena exerceria uma função retributiva e não preventiva, eis que, se optasse pela segunda alternativa, revelar-se-ia acolhedora de uma política inquisitorial e, portanto, antigarantista, haja vista que

"La garantía del carácter retribu-tivo de la pena -en virtud de la cual nadie puede ser castigado más que por lo que ha hecho (y no por lo que es)- sirve...

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