Formação e Evolução do Instituto da Responsabilidade Patrimonial Extracontratual do Estado

AutorGustavo Swain Kfouri
CargoAdvogado; Especialista em Direito Constitucional
Páginas1-23

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Introdução

Ser responsável1 significa responder por seus atos, do que, quem causa dano a alguém é obrigado a repará-lo.

Eduardo Sotto Kloss define que “quem diz direito diz, pois responsabilidade2”.

Abarcando o regime republicano a noção de institucionalização do direito, em que todas as autoridades são responsáveis, onde “não há sujeitos fora do direito”3, e, sendo o Estado sujeito de direitos, ainda mais, por dizer direitos, este é responsável.

Na atualidade, a aceitação da teoria da responsabilidade estatal não encontra oposição, apesar de, em países como os Unidos da América do Norte e Reino Unido, ter vigorado por vários anos a idéia da irresponsabilidade estatal.

Apesar da extensão da responsabilidade do Estado ser diferentemente considerada em diversos países, ao menos subjetivamente é amplamente recepcionada.

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Como exemplo, o artigo 28 da Constituição Italiana de 27.12.1947 foi assim redigido:

“os funcionários e agentes do estado e das pessoas coletivas de direito público são diretamente responsáveis, de harmonia com as leis penais, civis e administrativas, pelos atos praticados em violação dos direitos de outrem. nestes casos, a responsabilidade civil estende-se ao estado e às pessoas coletivas de direito público4”.

Nossa opinião é consoante com a recepção da “idéia de que a responsabilidade do Estado é uma conseqüência lógica e inevitável da noção de Estado de Direito5”.

A partir da submissão dos entes públicos, privados e indivíduos à mesma ordem jurídica, em decorrência da aceitação do princípio da igualdade de todos perante a lei, se concluirá, conseqüentemente, antijurídico o comportamento estatal que agrave desigualmente a situação de alguém perante o todo, mormente quanto se trata de atividade voltada a atender interesse geral da coletividade, objetivo último do Estado.

Noção de injusto deriva da concepção de que a todos é garantida a aplicação dos princípios inerentes ao Estado de Direito, do que decorre a responsabilidade do Estado pela ocorrência de dano resultante da violação da esfera jurídica protegida de outrem.

Adotando a linha de pensamento do jurista acima citado, entendemos lógica a conclusão acerca da dispensabilidade de regras expressas ou apelo à regras de direito privado para firmar-se a responsabilidade do Estado por danos que seus agentes, nessa qualidade, causem a terceiros, haja vista “que a própria noção de responsabilidade do ente estatal está intrinsecamente ligada à noção de Estado de Direito6”.

Para firmar esse entendimento aquele cita frase do Constitucionalista Americano Black, que conclui: “o ditame implícito da lei é tanto parte de seu conteúdo como o que nela vem expresso7”. Por essa razão a importância do estudo acerca dos princípios informadores na nova ordem instaurada a partir da Revolução Francesa, pois “também integra a lei, além do que conste em sua integralidade, aquilo que contém em seu espírito”.

Para a compreensão de que a Responsabilidade Patrimonial Extracontratual do Estado é corolário dos princípios que informam as garantias conferidas aos administrados,Page 4 pelo advento do Estado de Direito, trabalharemos com categorias racionais e dedutivas, a partir das noções históricas que viabilizaram a constituição de sua base teórica.

A seu turno, no tocante a modalidade de responsabilidade a ser tratada, considerou-se o enfoque a partir das relações extracontratuais, uma vez que as relações decorrentes de contratos administrativos detiveram formação e regulamentação diversas, já a partir de formado o direito administrativo como ramo autônomo.

1. Evolução Histórica
1.1. Formação do Direito Administrativo como Ramo Autônomo

Na idade média, período que antecede a formação do Estado Moderno e as democracias liberais, subsistiam as monarquias absolutas, em que todo poder pertencia ao soberano. Deste emanava vontade tida como lei, em face dos indivíduos - considerados meros destinatários da vontade “estatal” - que a elas se submetiam como servos ou vassalos.

A partir da idéia de que o Estado/Rei, detentor do poder soberano era inequívoco, a consciência coletiva aceitava a idéia de este que não poderia fazer-lhes mal; pelo que não se concebia a possibilidade do Estado causar dano aos súditos.

Estamos falando do período em que vigoravam as monarquias absolutas, fundadas no direito divido dos reis, em que ao soberano era dispensado um temor reverencial (quem contestaria Deus????). A representação do Estado se dava pela figura do soberano, quem encarnava o poder divino.

Tal concepção pode ser traduzida pela seguinte frase: “o que agrada ao Príncipe agrada a Deus”.

Dessa forma, o rei não poderia ser submetido aos Tribunais, pois, se sua palavra conferia a lei, seu sujeito era considerado em plano diverso da mesma. O plano em que se encontravam os súditos era ainda diverso. Pela mesma razão os seus atos eram colocados acima do ordenamento jurídico. O soberano/rei era irresponsável.

O pensamento é sintetizado na célebre frase de Laferrière: “o próprio da soberania era impor-se a todos sem compensação8”.

Outras fórmulas orientam qual fosse o espírito norteador da irresponsabilidade estatal face os atos cometidos em contrariedade ao direito dos súditos:

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“QUOD REGI PLACUIT LEX EST”

“LE ROI NE PEUT MAL FAIRE”

“THE KING CAN´T DO NO WRONG 9

No denominado estado de polícia, o direito público se esgotava em um único preceito jurídico, seja do exercício ilimitado do poder, do direito ilimitado para administrar.

Célebres cientistas políticos resumiam tais premissas:

“o que quer que faça o rei ele jamais se expõe à vergonha, no êxito ou na desgraça. vencedor ou vencido, suas decisões são sempre decisões de um rei” 10 .

Tais princípios orientavam a concepção da irresponsabilidade do rei, que não era submetido aos tribunais, detinha poderes ilimitados e seus atos eram elevados em relação ao patamar do ordenamento jurídico.

A primeira teoria que trata da imputabilidade do Estado é justamente a teoria da irresponsabilidade, que se origina com o período de formação do Direito Administrativo como ramo autônomo, que ocorre concomitantemente com a formação do conceito do Estado de Direito, já no Estado Moderno.

Disso alguns contrastes:

  1. mesmo sob a égide de tais monarquias, não se pode dizer que não existiam normas administrativas (pré-existiam normas administrativas esparsas, relativas ao funcionamento da administração pública; competência de seus órgãos; poderes do fisco; utilização, pelo povo, de algumas modalidades de bens públicos; servidão pública), pois onde havia Estado, mesmo que absoluto, existiam órgãos encarregados de funções administrativas; com a peculiaridade de tais normas estarem enquadradas no jus civile como todas as demais que hoje formam os outros ramos do direito;

  2. tais assertivas não representavam completa desproteção dos administrados perante comportamentos unilaterais do Estado, pois “admitia-se a responsabilização quando lei específicas o previssem expressamente (Lei 28 do Frutidor, Ano VIII – França, danos oriundos de obras públicas); também a responsabilidade por danos decorrentes da gestão do domínio privado do Estado, bem como os causados pelas coletividades públicas locais11”;

  3. “o princípio da irresponsabilidade era temperado em suas conseqüências gravosas aos particulares pela admissão da responsabilidade do funcionário, quando o ato lesivo pudesse ser sido causado por ato pessoal; destarte a ineficácia do dispositivo em decorrênciaPage 6 da parcela patrimonial diminuta a concorrer para a indenização, bem como pela garantia administrativa aos funcionários (art. 75 Constituição do ano VIII – 13 de dezembro de 1799), que estabelecia que as ações civis contra os funcionários perante os Tribunais Civis dependiam de prévia autorização do Conselho de Estado Francês, que raramente a concedia12”.

Importante observar que, mesmo após as conquistas do Estado Moderno, em que vigoraram as liberdades negativas, em garantia aos direitos individuais oponíveis, em alguns Estados, tais como os Estados Unidos da América no Norte e a Inglaterra – Direito Anglo Saxão – tais premissas continuaram a serem adotadas.

A formação do direito administrativo como ramo autônomo, já na fase do Estado Moderno, deu-se concomitantemente com o desenvolvimento do conceito de Estado de Direito, estruturado sobre os princípios da legalidade, igualdade e separação dos poderes.

Essa formação deu-se em conjunto com os demais ramos do direito público, tal como o direito constitucional; direito político por excelência.

Essas questões são evidenciadas de algumas obras de glosadores dos séculos XIII e XIV, em que se encontram o germe dos atuais dos direitos constitucional, administrativo e fiscal:

andrea bonello (1190 a 1275 d.c) – dedicava-se ao estudo dos três últimos livros do código de justiniano, que tinham sido deixados de lado pois se dedicavam a estruturas fiscais e administrativas de um império que já não mais existia;

publicação do parlamento de melfi (1231) – liber constitutionis, texto afeto a tais matérias, objeto do trabalho dos juristas;

bartolo de sassoferrato (1313-57) – lançamento das bases do estado moderno13 (grifo nosso).

O Poder como visto no moderno direito público, como algo instrumental, via necessária e indispensável, voltado a...

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