Audiência pública ambiental: um instrumento democrático para a gestão compartilhada do risco ambiental

AutorLuiza Landerdahl Christmann
CargoMestranda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina
Páginas54-90

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1. Introdução

Vive-se atualmente em uma sociedade marcada pela incerteza científica, social, econômica, ambiental, entre outras esferas. No que se refere à questão ambiental, diante do fenômeno da irresponsabilidade organizada, tem-se em evidência a necessidade de definição de novos parâmetros de gestão do risco ambiental, que sejam mais eficientes na proteção do meio ambiente e reflitam o caráter difuso do bem ambiental - que sejam, portanto, democráticos. Nesse contexto, reconhecendo-se a danosidade da atuação antropogênica sobre o meio ambiente, foi estabelecida no sistema jurídico pátrio a obrigação de obtenção de licença

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ambiental para empreendimentos potencial ou efetivamente poluidores, mediante a elaboração de Estudo Prévio de Impacto Ambiental - exigência constitucional (artigo 225, § 1o, IV).

Nesse procedimento há possibilidade de realização de audiência pública ambiental, a fim de conferir à comunidade a oportunidade de conhecer as possíveis/prováveis consequências positivas e negativas da atividade objeto de licenciamento. Entretanto, nota-se que pouquíssimas audiências são realizadas em comparação com o número de licenças de operação concedidas, conforme foi possível observar através de levantamento (IBAMA. Sistema Informatizado de Licenciamento Ambiental Federal, 2009) realizado pela autora sobre o número de licenças de operação1 emitidas em 2007 e em 2008 que passaram pela realização de uma audiência pública. Conferindo comparativamente2, obteve-se uma média de 9,42% de audiências realizadas - índice extremamente baixo, que demonstra uma das facetas da inefetividade do uso deste instrumento.

Diante disso, formulou-se o seguinte problema: em que medida a informação ambiental e a educação ambiental são instrumentos aptos a possibilitar a formação de cidadãos conscientes que atuem com maior embasamento quando da tomada de decisão nas audiências públicas ambientais, realizando-se a gestão compartilhada dos riscos? Dessa forma, tem-se como objetivo geral a tentativa de responder tal questio-namento, alcançando a verdade parcial provisória possível; como objeti-vos específicos, tem-se a identificação das razões da busca pela consolidação de um Estado de Direito Ambiental e a identificação dos fundamentos adequados à informação e educação ambiental que tenha a

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capacidade de formar cidadãos participativos. Nessa linha, este trabalho se justifica pelo objetivo de visar contribuir modestamente com o meio acadêmico no estudo de alternativas que visem à efetividade da audiência pública ambiental, em razão da importância deste instrumento para a gestão compartilhada dos riscos ambientais.

Dessa forma, o presente trabalho estruturou-se em dois capítulos temáticos. O primeiro aborda o processo histórico que conduziu à formação da sociedade atual. A seguir, ressaltando a consequente necessidade de repensar o papel do Estado diante da crise ambiental, aborda a importância da participação popular como exigência para a gestão compartilhada dos riscos ambientais e, então, traz como instrumento para tal a audiência pública ambiental. O segundo capítulo passa a abordar a relevância da informação e da educação ambiental para a capacitação da comunidade, a fim de que a mesma se mostre hábil e consciente para deliberar no momento da tomada de decisão, visando à efetividade da audiência pública ambiental. Em termos de considerações finais, vislumbra-se a potencialidade da informação e da educação ambiental auxiliarem na busca pela efetividade da audiência pública ambiental, obtendo-se maior participação popular no domínio do meio ambiente e, em última instância, uma maior eficácia na gestão compartilhada dos riscos ambientais.

2. A sociedade de risco e a gestão compartilhada do risco

A realidade hodierna se configura como o resultado do avanço industrial ocorrido a partir do século XVII, o qual conduziu à formação da sociedade moderna, definida, inicialmente, como o "... estilo, costume de vida ou organização social que emergiram na Europa a partir do século XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influência" (GIDDENS, 1991, p. 11). Esse estilo de vida caracterizou-se pelo progressivo encurtamento das distâncias, através dos fenômenos de "esvaziamento do tempo" e "esvaziamento do espaço". O primeiro significou a padronização de sua contagem por meio do relógio mecâni-

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co, o que conduziu à uniformidade na organização social do tempo, sendo crível, por exemplo, a exatidão da jornada de trabalho. O segundo fenômeno constituiu a existência de relações entre pessoas - organizadas a partir de um mesmo calendário - em regiões distintas: "em condições de modernidade (...), os locais são completamente penetrados e moldados em termos de influências sociais bem distantes deles" (GIDDENS, 1991, p. 27).

No contexto desses fenômenos, a modernidade se estabeleceu a partir de quatro "dimensões institucionais", sendo a primeira delas o capitalismo. Este é definido como "... um sistema de produção de mercadorias, centrado sobre a relação entre a propriedade privada do capital e o trabalho assalariado..." (GIDDENS, 1991, p. 61), o qual é um aspecto central à economia moderna, determinando, entre outras consequências, a existência de duas classes sociais. O industrialismo "... é o uso de fontes inanimadas de energia material na produção de bens, combinado ao papel central da maquinaria no processo de produção" (GIDDENS, 1991, p. 61), conceito aplicável tanto à primeira (carvão e aço) como à segunda revolução industrial (eletricidade), possuindo efeitos em outros âmbitos da vida, como os transportes, as comunicações e a vida doméstica3.

Ainda, desenvolveu-se na modernidade a capacidade do poder de vigilância social do Estado sobre os particulares, referindo-se às ativi-dades da população na esfera política, de forma direta - através das escolas, locais de trabalho aberto ou prisões - e indireta, por meio do controle da informação. Por fim, tem-se o controle dos meios de violência pelo Estado, que passa a ser muito mais centralizado que em épocas

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anteriores: "o monopólio bem-sucedido dos meios de violência dentro de fronteiras territoriais precisas é específico do estado moderno" (GIDDENS, 1991, p. 64).

Além das quatro dimensões institucionais, a modernidade é marcada pela consagração de um novo tipo de relação entre o homem e a natureza - baseada no paradigma cartesiano4 e sua concepção meca-nicista de mundo, e consolidada pelo sistema de produção moderno -que permitiu ao homem usufruir dos bens naturais sem considerar as consequências. Assim, solidificou-se a visão dicotômica5 de mundo -que compreende os opostos como excludentes - de modo que homem passou a atuar acreditando em sua suposta superioridade: "a modernidade ocidental transformou a natureza em 'ambiente': simples cenário no centro do qual reina o homem, que se autoproclama 'dono e senhor'" (OST, 1995, p. 10).

Devido a esse paradigma, a ciência assumiu a missão de conferir certeza às ações humanas, aplicando o método da simplificação6, a fim de alcançar a unidade elementar, independentemente da seara de conhecimento em questão: ordenando operações de disjunção, redução e abstração, tal paradigma "quer separa o que está ligado (disjunção), quer unifica o que está disperso (redução)" (MORIN, 2001a p. 86). Com

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o tempo, no entanto, observou-se que a ciência não obteve sucesso no seu escopo: tantas mudanças tecnológicas afetaram as culturas, os padrões de consumo; ocorreu a revolução dos gêneros, tornou-se visível a turbulência do mercado financeiro e passou-se a sentir a reação da natureza a sua exploração desmedida (GIDDENS, 1991; CAPRA, 2006): diante de tanto desconhecimento a respeito dos efeitos que as ações humanas poderiam produzir, adentrou-se na sociedade de risco (BECK, 2002).

A sociedade de risco é marcada por riscos mundiais, de difícil percepção pelos indivíduos:"... Ia muerte actual de los bosques sucede globalmente, y en concreto como consecuencia implícita de la industriali-zación, con repercusiones sociales y políticas completamente diferentes" (BECK, 2002, p. 27). Portanto, sendo riscos específicos da modernidade, "...los riegos civilizatorios hoy se sustraen a Ia percepción y más bien residen en la esfera de las fórmulas químico-físicas (por ejemplo, los elementos tóxicos en los alimentos, Ia amenaza nuclear)" (BECK, 2002, p. 28). Por fim, possuem causas modernas porque "son producto global de Ia maquinaria dei progreso industrial..." (BECK, 2002, p. 28) e suas instituições, além de estarem associados às decisões humanas - e não mais a eventos naturais -justificadas com base na racionalidade científica industrial.

Então, tal realidade conduziu à ineficiência do controle institucional dos perigos em sua forma tradicional, em razão do que "... as instituições não apenas produzem, como também, legitimam os perigos que já não podem controlar..." (LEITE, 2004, p. 17). Diante disso, estabeleceu-se a racionalidade da irresponsabilidade organizada, a qual "... representa justamente a forma pela qual as instituições organizam os mecanismos de explicação e justificação dos riscos..." (LEITE, 2004, p. 22), de maneira a aumentar os graus de tolerabilidade da insegurança, legalizando e legitimando os efeitos colaterais dessas decisões baseadas na incerteza: tem-se a regularização dos organismos geneticamente modificados, a tolerância da...

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