Instrumentos para o Enfrentamento de Crises Econômicas

AutorDavi Furtado Meirelles
Ocupação do AutorDesembargador Federal do Trabalho do TRT da 2ª Região (SP)
Páginas106-121
VII
Instrumentos para o
Enfrentamento de Crises Econômicas
P ode-se armar que a livre negociação é uma realidade no sistema brasileiro de relações de trabalho. E os instru-
mentos normativos resultantes dessa liberdade negocial detêm reconhecimento positivado na própria Constituição
Federal. Todavia, em nome do princípio protetivo do trabalhador, como parte mais frágil na relação de trabalho, o
Judiciário Trabalhista não tem sido muito receptivo a alguns ajustes que ousam prevalecer sobre a lei.
Já se vericou neste estudo que o direito à negociação coletiva é resultante da autonomia da vontade privada, que
visa promover a melhoria da condição social do trabalhador. Pois bem, essa liberdade (autonomia) alcança os direitos
disponíveis, ou de indisponibilidade relativa, o que implicaria atestar que os limites à negociação coletiva estariam
relacionados às normas de ordem pública e aos direitos indisponíveis, entendendo como tais, aqueles que não podem
ser renunciados num processo negocial.
Nessa situação já se pode vericar um campo fértil de atuação da negociação coletiva. Porém, mesmo aqui, as
partes integrantes do processo negocial têm enfrentado inúmeras diculdades judiciais, o que pode levar a um certo
desestímulo à prática da negociação coletiva.
Ainda que alguns casos isolados tenham alcançado resultados satisfatórios para os dois lados, promovendo os
ajustes necessários no momento em que mais se necessitava da negociação, nem sempre o negociado é reconhecido
como prevalecente sobre o legislado.
A seguir, situações que já ocorreram e propostas que surgiram ao longo dos últimos anos, e que poderão se repetir
ou se incrementar, serão abordadas e analisadas. Todas elas foram utilizadas ou pensadas para o enfrentamento de crises
econômicas, entendendo-se como tais aquelas que levam à diminuição do processo produtivo, à redução nos ganhos com
os lucros e resultados obtidos em momento anterior, causando instabilidade nas relações de trabalho. Crises econômicas
que podem ocorrer em âmbito nacional, regional, setorial ou, ainda, localizadas em determinadas empresas.
1. Convenções coletivas setoriais
Pela Teoria da Recepção, pode-se armar que o inciso XXVI do art. 7o da Carta Republicana(429) recepcionou
todo o Título VI da CLT (arts. 611 a 625), com a redação dada pelo Decreto-lei n. 229/1967, cuja autoria é creditada a
Arnaldo Lopes Süssekind, segundo Almir Pazzianotto(430).
Trata a convenção coletiva de um acordo de caráter normativo, cuja titularidade compete às entidades sindicais
econômicas e prossionais, segundo a alínea “b” do art. 513 celetizado(431).
Pelo sistema legislativo brasileiro, levando em consideração o modelo sindical aqui adotado, a convenção coletiva
seria um instrumento normativo apto a regular condições de trabalho no âmbito das respectivas categorias prossionais
e econômicas convenentes, sempre respeitando essa simetria. Com a impossibilidade de interferência do Estado na
(429) Art. 7o São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
XXVI – reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho;
(430) Validade e alcance das negociações coletivas. In: Migalhas, 12 jun. 2017 (fonte: ).
(431) Art. 513 – São prerrogativas dos sindicatos:
b) celebrar convenções coletivas de trabalho;
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NEGOCIAÇÃO COLETIVA EM TEMPOS DE CRISE
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organização sindical, consubstanciada na diretriz do inciso I do art. 8o constitucional(432), tem-se que, desde 1988, é
possível estabelecer convenções coletivas de trabalho intercategoriais(433).
Essa nova perspectiva facilita a resolução de situações de crises que envolvem um determinado setor da economia,
ou mesmo mais de uma cadeia produtiva, onde sindicatos de categorias diversas são atingidos.
Foi o que aconteceu no exemplo já mencionado no Capítulo anterior, com a formação das câmaras setoriais no
Governo Itamar Franco. Vale relembrar alguns aspectos, complementados com outros.
Juntamente com a crise política que levou ao impeachment do Presidente Fernando Collor de Melo, o Brasil
passava por um período de recessão econômica, desencadeada pela abertura desenfreada do país para a chegada de
produtos importados, com preços subsidiados, o que levou a um desequilíbrio no mercado concorrente com as próprias
empresas brasileiras, que se viram na contingência de promover dispensas coletivas para evitar o fechamento das suas
unidades produtoras.
Aquele nal de 1992 e início de 1993 representaram um período de descrença nas relações de trabalho, mas foi o
grande momento de armação dos sindicatos realmente sérios, comprometidos com os destinos do país. A formação
das chamadas câmaras setoriais representou a primeira experiência de pactos sociais(434) que deram certo no Brasil.
Em cada setor mais atingido da economia nacional formou-se um espaço de negociação tripartite, com repre-
sentação dos órgãos governamentais pertinentes(435), além das entidades sindicais representativas das empresas e dos
trabalhadores, independente do grau de atuação. Ou seja, podiam participar sindicatos, federações, confederações e, até
mesmo, as centrais sindicais de trabalhadores. O requisito válido de participação era ser detentor de representatividade.
Assim, surgiram a Câmara Setorial da Construção Civil, a Câmara Setorial do Comércio, a Câmara Setorial da
Indústria de Calçados, a Câmara Setorial da Indústria Química, a Câmara Setorial Automotiva, a Câmara Setorial do Turismo,
dentre outras, onde os ministérios correspondentes participavam, em conjunto com as entidades sindicais envolvidas.
As convenções coletivas ali rmadas, depois adaptadas para cada realidade local através de novas convenções
coletivas ou por acordos coletivos localizados nas empresas, poderiam agrupar mais de uma categoria interessada. O
eixo central desses ajustes era o mesmo: o governo federal reduzia as alíquotas do IPI e do ICMS por um determinado
período; o setor empresarial, no mesmo lapso temporal, promovia a diminuição do preço dos produtos, se comprometia
com a manutenção dos postos de trabalho e, a partir do reaquecimento econômico, aumentar a sua produtividade e o
investimento no seu próprio negócio; aos trabalhadores, além da manutenção do nível de emprego, restou a garantia
de que os salários seriam recompostos com o repasse da inação, sem aumento real por igual período.
O único ponto discordante, que acabou fora do acordo global, foi que as empresas queriam obter uma cláusula de
paz, impedindo os sindicatos de promover movimentos grevistas durante a vigência das convenções coletivas. As entidades
sindicais prossionais não concordaram com a proposta, sob o argumento de que alguns setores, ou determinadas
empresas, poderiam não cumprir as premissas básicas do acordo, com o que, o direito de greve seria um instrumento
necessário nesses casos.
Como se pode observar, foram muitos os setores econômicos envolvidos nesse amplo ambiente de negociação.
Outros setores que não participaram naquele primeiro momento, depois tiveram oportunidade de aderir. A título
exemplicativo, o acordo que foi celebrado junto à Câmara Setorial Automotiva(436) teve a participação do Ministério
(432) Art. 8o É livre a associação prossional ou sindical, observado o seguinte:
I – a lei não poderá exigir autorização do Estado para a fundação de sindicato, ressalvado o registro no órgão competente, vedadas ao Poder
Público a interferência e a intervenção na organização sindical;
(433) c.f. SIQUEIRA NETO, José Francisco. Contrato coletivo de trabalho — Perspectiva de rompimento com a legalidade repressiva, p. 131.
(434) Os pactos sociais foi uma experiência surgida na Espanha Pós-Franquista, conforme abordado no item 3 do Capítulo IV deste trabalho.
(435) Participavam os Ministérios da Fazenda; da Indústria, do Comércio e do Turismo; do Planejamento, Coordenação e Orçamento; do Trabalho
e da Ciência e Tecnologia, além de outros que tivessem interesse diretamente envolvido.
(436) Escolhemos a Câmara Setorial Automotiva como exemplo devido a nossa participação na assessoria jurídica naquele momento, como advogado
do então Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema. E os dados elencados nesse acordo nacional constam dos anexos
da nossa obra Negociação coletiva no local de trabalho: a experiência dos metalúrgicos do ABC.
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