O Estado Integral e a Simetrizacao das Classes Sociais em Pontes de Miranda: O Debate dos Anos 1930/The integral State and the symmetrization between social classes in Pontes de Miranda: The 1930's debate.

AutorBercovici, Gilberto

A Teoria da Integracao e os Fins do Estado

Em 1924, a pretexto do primeiro centenario da independencia, Vicente Licinio Cardoso publicou a coletanea A Margem da Historia da Republica, com contribuicoes de varios autores, muitos ate entao praticamente desconhecidos. O tom da maior parte destes textos era o de severas criticas ao regime republicano existente no Brasil e a Constituicao de 1891. Dentre os novos autores que publicaram na coletanea estava Oliveira Vianna, com o ensaio "O Idealismo da Constituicao", que daria origem ao celebre livro homonimo, publicado em 1927 e reeditado em 1939 (1). Outro destes novos autores era Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda, com o artigo "Preliminares da Revisao Constitucional", que inaugurou uma reflexao inovadora sobre a crise do Estado liberal e seus reflexos nas novas tecnicas constitucionais.

Partindo do pressuposto de que o individualismo juridico era insuficiente para lidar com os problemas contemporaneos, Pontes de Miranda afirmava que o direito publico deveria abranger tudo o que e publico, especialmente a chamada "questao social", que incluia a saude, o desemprego, a invalidez, a educacao e a solidariedade social (2). A sociedade, segundo Pontes de Miranda, seria um circulo social permanente, em constante processo de expansao e integracao social. O Estado nao equivaleria a sociedade, mas seria a realizacao dos fins da sociedade. A politica juridica deveria, assim, reintegrar o Estado na sua missao global (3).

A crise do Estado exigiria a invencao de uma nova estrutura, buscando a renovacao dos conteudos de integracao politica. O Estado deveria ser regenerado, com a democracia industrial, por meio da organizacao do trabalho e da industria. O Estado contemporaneo nao seria mais uma forma juridico-politica, vazia de substancia, mas ele buscaria uma unidade de fim, substancializando-se ao integrar a politica com os demais processos sociais, como a economia. O Estado e, assim, o coordenador das forcas sociais (4).

Pontes de Miranda utiliza-se da Teoria da Integracao, desenvolvida por Rudolf Smend em 1928, entendendo o processo integrativo do proprio Estado como o cerne da vida estatal. Em seu livro Constituicao e Direito Constitucional (Verfassung und Verfassungsrecht), publicado naquele ano, Rudolf Smend apresentou a Teoria da Integracao como alternativa ao positivismo juridico (5). Para Smend, a crise da Teoria Geral do Estado (6), causada pela linha formalista de Jellinek e Kelsen, so seria superada pela metodologia das ciencias do espirito, a partir da obra do filosofo Theodor Litt (7). Para tanto, o enfoque nao seria mais dado a partir do individuo ou do Estado, isoladamente, mas, num sistema de influencias mutuas, o modelo interpretativo deveria ser uma especie de fluxo circular e continuo, em que os seus membros (Estado, individuo, etc.) estivessem em constante inter-relacao entre si e com o todo social (8). De acordo com Smend, o objeto da Teoria do Estado e o Estado enquanto parte da realidade espiritual, que se caracteriza por um processo de atualizacao funcional, por um continuo processo de configuracao social (9). Esse processo de renovacao constante, que e o nucleo substancial da dinamica do Estado e a integracao. O Estado existe unicamente por causa e na medida em que se faz imerso neste processo de auto integracao (10).

Em sua Teoria da Integracao, Smend desenvolve uma Teoria da Constituicao, tornando a Constituicao o ponto de referencia, no lugar da tradicional Teoria Geral do Estado (11). Do conceito de Constituicao elaborado por Smend (12), pode-se perceber que o aspecto relevante, para ele, nao era o da normatividade da Constituicao, mas sua realidade integradora, permanente e continua. A Constituicao e uma ordem integradora, gracas aos seus valores materiais proprios. Alem disto, ao se constituir como um estimulo, ou limitacao, da dinamica constitucional, estrutura o Estado como poder de dominacao formal (13).

De acordo com Smend, para a compreensao da Constituicao, seria necessaria a inclusao, no texto escrito, das forcas sociais. A Constituicao deveria levar em conta todas as motivacoes sociais da dinamica politica, integrando-as progressivamente. Para Smend, o dinamismo politico-social nao poderia ser abarcado, na sua totalidade, pelos dispositivos constitucionais, mas pela elasticidade e capacidade transformadora e supletiva de sua interpretacao. E, nesta interpretacao, os principios constitucionais seriam fundamentais, pois definiriam o Estado como ente concreto, fixando suas caracteristicas territoriais e politicas (14).

Citando Theodor Litt e Rudolf Smend, Pontes de Miranda entende que a funcao principal do Estado seria dar o sentido da vida a cada momento, em um determinado circulo social. Esta realizacao de sentido seria sua substancia, nao apenas seu fim. A terminologia utilizada em varios momentos da sua obra tambem e de Smend, como as concepcoes de integracao funcional (eleicoes, votacoes), integracao pessoal e integracao material (a consecucao dos fins coletivos do Estado, ou seja, o dominio substancial da politica) (15).

A concepcao de Pontes de Miranda sobre o Estado e uma concepcao finalista. O Estado e uma comunidade teleologica, que satisfaz os interesses coletivos, totais ou parciais. Os fins do Estado precisam ser precisos, pois o Estado necessita de uma certa univocidade para poder se expandir e integrar. Manter a ordem publica nao e um fim do Estado. Fim do Estado e a solucao do problema economico e cultural de todos, ou seja, a diminuicao das desigualdades. So os fins justificam o Estado (16).

A importancia dada a teleologia estatal na obra de Pontes de Miranda o insere no debate sobre um dos problemas fundamentais da Teoria do Estado, a questao dos fins do Estado (17). O Estado, como toda instituicao humana, tem uma funcao objetiva que nem sempre esta de acordo com os fins subjetivos de cada um dos homens que o formam (18). Kelsen considerava os fins do Estado uma questao politica, que nao pertenceria a Teoria do Estado. Para ele, isso nao significaria a carencia de finalidade do Estado, mas que o Estado, enquanto sistema fechado, nao precisaria de uma fundamentacao ou justificacao perante uma instancia situada fora da ordem estatal, o que apenas restringiria o seu conteudo (19). A concepcao kelseniana parte de uma definicao puramente formal do Estado, que prescinde da ideia de fim, omitindo uma das caracteristicas essenciais do fenomeno estatal (20). Nao por acaso, Jellinek, inclusive, chegou a afirmar: "O Estado e uma unidade de fim" (21).

A determinacao do sentido do Estado e de crucial importancia para a sua compreensao. Sem uma referencia ao sentido do Estado, os conceitos da Teoria do Estado seriam vazios de significado, nao sendo possivel diferencia-lo, inclusive, de outras organizacoes sociais (22). A observacao dos fins do Estado e uma forma de controlar sua atividade politica, pois os fins nao afirmam tanto o que acontecera, mas o que nao deve ser feito. A atribuicao de fins ao Estado significa, praticamente, sua justificacao, que, para Hermann Heller, equivale a sua propria existencia: o poder estatal vive de sua justificacao (23).

O Estado defendido por Pontes de Miranda, com fins precisos e univocidade, coordenador do processo de integracao politica e por ele denominado de Estado Integral. O Estado Integral e, assim, o Estado que cobre toda a vida social, o Estado que utiliza conscientemente todas as forcas sociais a servico dos seus fins. O Estado Integral reconhece o individuo e os grupos sociais, mas, ao mesmo tempo, os coordena, integrando-os em seus fins. Deste modo, nao se anula o individuo, nem se dilui o Estado (24).

A questao seria como compatibilizar este Estado de fins precisos, univoco, com a democracia pluripartidaria. Segundo Pontes de Miranda, a politica partidaria impediria a verdadeira politica, que necessita da unicidade de plano. Afinal, as transacoes politico-partidarias levariam a multiplicidade de planos ou a inercia estatal. O plano e a adocao duradoura de conviccoes firmes. Para tanto, a teleologia e indispensavel, consistindo em uma orientacao fundamental que precisa ser decidida na constituicao contemporanea. A constituicao deve definir os ideais, determinar o fim do Estado. Ao realizar este fim, o Estado estara concretizando o processo de integracao da vontade politica (25): "Do que acima dissemos facil e extrair: o Estado que nao quer seguir a licao russa ou, de perto, a licao fascista, entregando a um so partido a direccao nacional, ve-se deante de problema que, ferido pela Constituicao alema, nao foi por ella resolvido. Os textos constitucionaes devem ser de tal maneira concebidos que as leis so sejam possiveis, os actos so permitidos e a propria justica so se exerca, respeitadas as directivas constitucionaes em todos os processos sociaes e estas directivas obedecam a plano scientificamente preestabelecido" (26).

Deste modo, para Pontes de Miranda, o grande desafio da tecnica constitucional seria encontrar uma formula que permitisse, com a pluralidade de partidos, a univocidade do Estado. O Estado intervencionista tenderia a univocidade. A constituicao deve garantir um governo capaz de governar e lhe atribuir um sentido. Sem a univocidade, perde-se a quase totalidade do esforco governativo (27). Portanto, ou o Estado pre-fixaria, constitucionalmente, o seu sentido, ou seria unipartidario. O liberalismo nao pode ser um sentido, pois consiste na abstencao, nao na atuacao do Estado. As novas tecnicas constitucionais, para estruturarem o Estado univoco, deveriam adotar e assegurar os ideais politicos no tempo. A democracia direta ou plebiscitaria e um instrumento que asseguraria a unidade, mas nao conseguiria manter essa unidade no decorrer do tempo. A garantia temporal dos fins do Estado so existiria, para Pontes de Miranda, com sua insercao na propria constituicao (28): "A Constituicao de hoje nao pode ser abstracta, vaga, simples formalismo asubstancial. Tem de ser...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT