Tributação sobre a prestação de serviços intelectuais

AutorJulio Cesar Pereira
CargoMestrando em Direito Econômico e Financeiro pela Universidade de São Paulo - USP. Advogado em São Paulo
Páginas110-126

Page 110

1. Descrição do cenário e delimitação do objeto

Diante da ventania provocada pelas novas regras do ordenamento jurídico brasileiro, é bastante árdua a tarefa de examinar os aspectos fiscais e previdenciá-rios que circundam a prestação de serviços intelectuais, sem que se avance sobre questões relativas ao Direito do Trabalho e, num plano mais geral, sobre problemas de ordem social no Brasil.

Desde o último bimestre de 2005, quando foi publicada a Lei n. 11.196, resultado de conversão da Medida Provisória n. 255, de 1.7.2005, muito se tem alardeado acerca das conseqüências diretas das alterações trazidas no bojo da referida lei no volume de arrecadação de impostos e contribuições, bem como se tem vaticinado gravíssimo impacto nas relações trabalhistas, decorrente de certo embuste designado de "pejorização do trabalhador".

Pela imersão na análise do tema, percebe-se, claramente, entre os contendores um pesadíssimo ranço de luta de classes, o que perturba a tarefa de sistematização das regras de direito positivo que, por si só, poderiam abrir uma picada em meio à nebulosidade. De um lado, os "vanguardistas",

Page 111

assim batizados por Nelson Mannrich,1 louvando as alterações legislativas como a panacéia geral, hasteiam a bandeira da "flexibilização das relações trabalhistas", enxergando invariavelmente nos direitos sociais um estorvo abominável. Do outro, os "conservadores" arvoram o próprio apocalipse, aludindo à chamada "precarização do trabalho", certos de que as inovações normativas visam legitimar a fraude trabalhista e precipitar, numa queda brusca, obrigações tributárias e previdenciárias.

O objetivo do presente trabalho é o de desmistificar tanto a panacéia quanto o apocalipse, propostas pelas duas pontas do cabo de guerra, buscando no próprio texto do direito positivo o real alcance e natureza das normas introduzidas pela Lei n. 11.196/2005, bem como os mecanismos possíveis de funcionamento dos quais decorrem os três regimes de tributação do prestador de serviços intelectuais.

2. O art 129 da Lei n. 11.196, de 21 de novembro de 2005

Após perder eficácia, por não ter sido aprovada a tempo pelo Congresso Nacional, a Medida Provisória n. 252, de 16.6.2005, afamada "MP do Bem", que trazia em seu bojo extenso rol de benesses relativas a diversos tributos, tais quais PIS, Cofins, CIDE, CSLL, IRPF, IRPJ, IPI, além de promover incentivos regionais e introduzir alterações no regime das micro-empresas e empresas de pequeno porte e no processo administrativo tributário federal, teve o seu conteúdo caduco enxertado na exígua muda de outra Medida Provisória, a MPn. 255, de 1.7.2005. Dessa forma, a MP n. 255, que originalmente possuía três artigos, por meio do Projeto de Lei de Conversão n. 28/2005, medrou, desatenta ao princípio da especificidade estatuído no § 6o, do art. 150, da Constituição Federal, dando origem aos cento e trinta disposi-tivos da frondosa Lei n. 11.196, de 21 de novembro de 2005.

Imediatamente um dos dispositivos chamou a atenção de todos. Falamos do art. 129, que tem provocado belicosos ataques, creia-se, de todas as direções. O artigo, resultado da forte pressão de empresas do setor de comunicação e informática, visa, em suma, regularizar a fiscalização da prestação de serviços intelectuais, conforme abaixo transcrito:

Art. 129. Para fins fiscais e previ-denciários, a prestação de serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural, em caráter personalíssimo ou não, com ou sem a designação de quaisquer obrigações a sócios ou empregados da sociedade prestadora de serviços, quando por esta realizada, se sujeita tão-somente à legislação aplicável às pessoas jurídicas, sem prejuízo da observância do disposto no art. 50 da Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002 -Código Civil.

Pela redação original da MP n. 255/2005 aprovada pelo Congresso Nacional, constava do artigo supracitado um parágrafo único que assim dispunha: "O disposto neste artigo não se aplica quando configurada relação de emprego entre o prestador de serviço e a pessoa jurídica contratante, em virtude de sentença judicial definitiva decorrente de reclamação trabalhista". O texto foi vetado pelo Presidente da República sob o fundamento de que as legislações tributária e previdenciária, para incidirem sobre o fato gerador cominado em lei, independem da existência de relação trabalhista entre o tomador do serviço e o prestador do serviço, e completa dizendo que a condicionante da ocorrência do fato gerador à existência de sentença judicial trabalhista definitiva não atende ao princípio da razoabilidade.2 A nosso ver, o veto priorizou a otimização da atividade dos fiscais, obstando a exigência

Page 112

de sentença judicial para que se considerasse ocorrida a incidência da norma tributária ou previdenciária.

A contratação de profissionais que prestam serviço intelectual sob a forma de pessoa jurídica sempre foi objeto de ressaibo por parte da Secretaria da Receita Federal (SRF) e do Instituto Nacional da Seguridade Social (INSS),3 unificados agora sob a designação de Secretaria da Receita Federal do Brasil, a partir da Lei n. 11.457/2007. A prestação de serviços intelectuais, especialmente aqueles efetua-dos pela chamada "pessoa jurídica de uma pessoa só", vinha sendo, historicamente, enxergada pelas autoridades fiscais como uma maneira de burlar o Estado-Adminis-tração, quanto à arrecadação de tributos, bem como uma maneira de camuflar eventuais vínculos empregatícios.

A partir do advento do art. 129, da Lei n. 11.196/2005, logo se ergueram inúmeras vozes, alardeando escabrosas versões interpretativas do dispositivo, cobrando suas benesses ou repudiando sua malignidade, conforme o ângulo de visão. Dentre as que têm gerado maiores controvérsias, podemos citar algumas: (a) as pessoas jurídicas prestadoras de serviços intelectuais não mais poderiam, sob qualquer pretexto, ser desconsideradas enquanto tais pelos fiscais da Receita Federal e do INSS para cobrança de tributos; (b) os profissionais liberais ao exercerem suas atividades de cunho intelectual serão considerados pessoas jurídicas, para fins fiscais e previden-ciários, como forma de desonerar o trabalho autônomo; (c) às empresas é concedida a prerrogativa de contratar livremente o profissional liberal sob o regime de pessoa jurídica; (d) o dispositivo visa legitimar fraudes trabalhistas e tributárias, beneficiando somente empregadores e profissionais de elevada capacidade contributiva.

Duas posições ilustram perfeitamente a dicotomia em que se postou a discussão acerca do art. 129, desvelando a paixão de vanguardistas e conservadores. Almir Paz-zianotto Pinto, ex-Ministro do Trabalho e ex-Presidente do Tribunal Superior do Trabalho, asseverando que o disposto no art. 129, da Lei n. 11.196/2005, não colide com o ordenamento jurídico, defende que a simplificação do sistema tributário deve ser concluída com a revisão moder-nizadora das leis trabalhistas, e que é indispensável àqueles que, por livre opção, se organizarem como pessoas jurídicas, a tranqüilidade da prestação de serviços, sem temerem a ingerência do Ministério do Trabalho ou do Ministério Público do Trabalho. Segundo Pazzianotto, estas instituições não conseguem reconhecer, na multifacetada economia contemporânea, outras formas de exercício de profissão, a não ser através do velho, complicado e inseguro contrato de trabalho.4

Em oposição categórica situa-se o Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho - ANA-MATRA, José Nilton Pandelot, ao defender que o art. 129, da Lei n. 11.196/2005, precariza o trabalho humano ao permitir a contratação de trabalhador que presta serviço pessoal, subordinado, não eventual e oneroso como pessoa jurídica, além de beneficiar o empregador em detrimento

Page 113

do empregado, pois pretende transferir para estes últimos a responsabilidade exclusiva de pagar a contribuição previdenciária e afastar a obrigação de pagar ao trabalhador os direitos típicos devidos em uma relação de emprego.5

Inócua seria a discussão a partir deste ponto, se não atentássemos para o fato de que os dois posicionamentos referem-se, em verdade, não a um trabalhador, mas a dois trabalhadores distintos. O princípio máximo da justiça norteia a interpretação que os dois juristas fazem do art. 129, baseados em realidades notoriamente diversas: (i) o trabalhador dos "vanguardistas" é, inegavelmente, o de elevados ganhos, para o qual o mascaramento da relação de emprego é irrelevante, já que angaria considerável redução tributária enquanto pessoa jurídica; (ii) o trabalhador dos "conservadores", por sua vez, é o de ganhos escassos, para quem é visceral a aplicação das normas de proteção do trabalho, e que, em geral, se submete à vontade do empregador, sujeitando-se à contratação em roupagem diversa daquela estabelecida na legislação trabalhista, isto é, travestindo-se de pessoa jurídica.

Diante dessas duas realidades, é mister tenhamos sempre rente às nossas ponderações a idéia de sistema normativo, trazendo para análise do problema normas da seara tributária, previdenciária, trabalhista, civil e comercial, mas nunca perdendo de vista, conforme lição de Paulo de Barros Carvalho, o caráter absoluto da unicidade do ordenamento jurídico.6 Consoante veremos, dadas todas as voltas necessárias do trajeto gerador...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT