Introdução ao direito insurgente negro: antecedentes teóricos, bases epistêmicas e usos políticos táticos/Introduction to black insurgent law: theoretical background, epistemic bases and tactical political uses.

AutorOliveira, Eduardo Maurente

Introdução

Na atualidade, a concepção sistêmica do racismo, abreviada pelo termo racismo estrutural, vem obtendo prestígio tanto na literatura especializada quanto no debate público. O grande valor dessa perspectiva está no diagnóstico de que o racismo não é uma violência anormal ou excepcional da nossa sociedade, mas se manifesta em sua normalidade, ou seja, o racismo é muito mais uma regra social do que uma exceção.

Desse modo, a desigualdade racial não está presente apenas nos atos de violência explícitos, como nos casos que ganham repercussão midiática, mas também em todos os âmbitos da sociedade, como nas relações interpessoais, na divisão racial do trabalho e até mesmo na estética. Como sintetiza Silvio de Almeida, o racismo é estrutural porque "é um elemento que integra a organização econômica e política da sociedade" (1 ) (ALMEIDA, 2019, p. 20-21).

Ainda que haja críticas relevantes sobre a perspectiva predominantemente sistêmica do racismo, (2) não parece haver controvérsias quanto a sua existência. Em outros termos, se há debates sobre a forma com que tal dimensão age na sociedade, não há argumentos sólidos que defendam sua inexistência. Assim sendo, não há mais espaço para reflexões que neguem ou silenciem o caráter sistêmico do racismo.

Nesse cenário, a influência analítica da dimensão estrutural do racismo--que aqui se prefere consolidar em torno da ideia de totalidade, conjugada com o reconhecimento das várias especificidades que qualquer totalidade comporta--também pode ser verificada no campo do direito, fato que tem resultado em um crescimento significativo de trabalhos jurídicos nessa seara. Tais estudos versam sobre os mais variados temas, sendo que um dos eixos centrais de pesquisa são as propostas de uso político do direito para o combate ao racismo estrutural, o que aqui se chama de antirracismo jurídico. (3)

No entanto, observa-se que em muitos momentos tais propostas indicam, de maneira imediata e simplista, o uso do direito para o combate ao racismo estrutural como se fosse um empreendimento transparente. Essa conexão automática significa, no fundo, uma falta de domínio e compreensão sobre a dimensão sistêmica do racismo.

Ora, como o próprio direito está contido na estrutura racista da sociedade e cumpre um papel fundamental para sua reprodução, a atitude de uma teoria preocupada com esse contexto desfavorável deve se voltar muito mais para a incerteza sobre a capacidade do direito no combate ao racismo, do que para sua crença irrefletida. Diante disso, defende-se no presente artigo que uma elaboração coerente sobre o papel do sistema jurídico na luta pela igualdade racial deve partir, inicialmente, de uma crítica antirracista do próprio direito para, em seguida, propor uma intervenção positiva de atuação. Para abordar a noção de "crítica", utiliza-se como referência o modelo defendido por Ricardo Pazello (2014).

Conforme esse âmbito de discussões, uma crítica social apresenta três momentos: a denúncia, a mediação transformadora e o anúncio (PAZELLO, 2014, p. 331). Os elementos da denúncia e do anúncio representam os dois polos opostos da crítica, ou seja, um polo negativo que acusa a realidade e um polo positivo que propõe o horizonte a ser perseguido. Por fim, o elemento da mediação transformadora é justamente o elo que conjuga esses dois extremos. Logo, compreende-se que esse modelo analítico é bastante sugestivo para uma sólida crítica antirracista ao direito, pois, ao mesmo tempo em que se fundamenta no questionamento negativo sobre o direito, não perde de vista sua compulsoriedade cuja existência não pode ser desprezada para fins de construção concreta do que é anunciado pelo horizonte utópico.

Diante disso, pode-se apontar para os elementos da crítica antirracista ao direito:

i) Denúncia: o momento da crítica, da negatividade e da denúncia do papel do sistema jurídico na reprodução do racismo, ou seja, a crítica ao racismo jurídico;

ii) Mediação transformadora: é a mediação necessária entre a denúncia negativa e o anúncio positivo de libertação. É o papel do direito na luta antirracista, ainda que não desconsiderados seus limites intrínsecos. No presente artigo, é o próprio direito insurgente negro e seus usos políticos em busca de contribuições para a completa abolição do racismo;

iii) Anúncio: o momento positivo, de anúncio da libertação utópica. No caso, corresponde ao horizonte revolucionário a ser perseguido pela luta antirracista, ou seja, a completa abolição do racismo e da divisão racial da sociedade; por conseguinte, de todas as formas sociais que garantem tal estrutura social.

Ante o exposto, o presente trabalho tem por objetivo central a introdução de uma teoria crítica antirracista do direito (4) que possa servir de contribuição, com seus novos diálogos e prismas, para a luta antirracista no campo jurídico. Para tanto, a primeira seção irá resgatar, em linhas gerais, as diferentes correntes do antirracismo jurídico encontradas na literatura nacional, observando de que maneira cada uma delas está em harmonia ou desarmonia com a crítica jurídica defendida anteriormente. Após apresentar as lacunas teóricas de cada corrente, serão indicadas as bases epistêmicas da teoria crítica antirracista do direito aqui proposta: o direito insurgente negro. Ao trazer o giro descolonial e a crítica marxista em interseccionalidade com a questão racial, serão sublinhados os usos políticos táticos do direito insurgente negro realizados por movimentos populares negros e suas demais organizações. Assim, título de conclusão, defender-se-á o direito insurgente negro, uma proposta de antirracismo jurídico a ser testada para fins de combate à dimensão estrutural de racismo.

As reflexões aqui trazidas, as quais incorporam um caráter reivindicatório-participativo, propõem uma agenda política de ação pela mudança social, mais especificamente a indicação de como a crítica jurídica pode auxiliar no combate ao racismo estrutural da sociedade capitalista dependente. Para tanto, chave de leitura do materialismo histórico se conjuga com uma mirada crítica latino-americana, o que denota o horizonte em que se insere a presente pesquisa. Trata-se, assim, de um texto introdutório que faz convergir agendas de pesquisa--de pesquisadores com influências recíprocas--em torno da questão racial e da crítica jurídica.

  1. Antecedentes teóricos: as diferentes correntes do antirracismo jurídico e suas lacunas

    No cenário dos debates sobre a aplicação do direito para a promoção da igualdade racial, observa-se o mais variado conjunto de propostas do que aqui se denomina de antirracismo jurídico. Com o intuito de apresentar os contornos fundamentais desse debate de modo didático, sugere-se a classificação desse campo jurídico em dois grandes eixos: um de natureza normativista e outro de natureza crítica. Por outro lado, este último campo se subdivide em dois: a crítica política e a crítica epistêmica. (5)

    Nesse sentido, o denominado direito antidiscriminatório (MOREIRA, 2020), ou direito da antidiscriminação (RIOS, 2008), contempla o campo do direito que abarca o antirracismo jurídico normativista. Partindo do estudo da aplicação de normas jurídicas e baseado no constitucionalismo contemporâneo, Adilson Moreira define o direito antidiscriminatório, quanto a sua natureza específica, como o "campo jurídico composto por uma série de normas que pretendem reduzir ou eliminar disparidades significativas entre grupos" (MOREIRA, 2020, p. 53).

    De maneira autoevidente, essa corrente é fundada no pressuposto implícito de que o direito positivo representa um instrumento eficiente para a promoção da igualdade racial. Assim, ressalta o autor:

    Se, por um lado, muitas instituições estatais estão frequentemente engajadas no tratamento desvantajoso e arbitrário de minorias, por outro, elas também podem promover a inclusão na medida em que operam de acordo com os princípios que permeiam a ordem constitucional, entre eles, a construção de uma democracia substantiva. (MOREIRA, 2020, p. 54) Percebe-se, com isso, que o argumento normativista em favor do potencial transformador do direito é de certo modo simplista: se o estado pode discriminar, ele também pode incluir. Essa crença quase absoluta no sistema jurídico só pode ser gerada por uma teoria que não questiona o papel sistemático do direito na reprodução do racismo. Tal característica é um traço típico daquilo que Pazello (2014, p. 492) chama de "legalismo de esquerda", ou seja, a convicção acrítica de que o sistema jurídico e suas normas são suficientes para o combate às violências estruturais da sociedade.

    Diante disso, o antirracismo jurídico normativista representa a dogmática jurídica antirracista que não ultrapassa o caráter aparente do direito. Esse pensamento, de forte cunho positivista, tem fundamento filosófico no Idealismo, ou seja, parte da ideia para explicar a realidade (LUDWIG, 2021). Apesar de todos os seus méritos, essa característica está explícita no pensamento de Moreira (2020), quando destaca ideias tais quais as de democracia substantiva e princípios constitucionais, apresentadas como as bases para o seu antirracismo jurídico. Em suma, é possível concluir que essa corrente não revela uma crítica antirracista ao direito e, por isso, é a menos adequada ao combate ao racismo estrutural. Isso se deve por:

    i) em seus fundamentos não fica demonstrada uma denúncia explícita da maneira como o direito reproduz o racismo (racismo jurídico) nem a denúncia ao direito como forma essencial de uma sociedade capitalista-racista-patriarcal;

    ii) também não indica de que forma essas normas antidiscriminatórias serão efetivadas (mediação transformadora), sugerindo apenas que suas existências já seriam suficientes por si só;

    iii) igualmente defende a crença em uma intervenção simplista, baseada na ideia de que o direito auxilia na luta antirracista e que as normas antidiscriminatórias seriam exemplos inequívocos disso.

    Em sentido diverso, a corrente do antirracismo...

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