Razão e função judicial na Hermenêutica jurídica

AutorAlexandre Araújo Costa
CargoDoutorando e professor de Direito da UnB
O Caso

No Brasil, o Código Penal define que a prática consentida de aborto é um crime que sujeita a abortante a pena de 1 a 3 anos de reclusão e o eventual executor do aborto a pena de 1 a 4 anos de reclusão. Já a simples retirada de um embrião morto não é um ato ilícito, na medida em que a caracterização do aborto exige a ocorrência de uma intervenção que resulte na morte de um feto vivo. Não há, contudo, nenhuma regra específica acerca dos fetos que estão em desenvolvimento, mas que não têm qualquer possibilidade de permanecer vivos após serem dados à luz.

Entre os fetos cuja vida extra-uterina é inviável, uma situação especialmente gritante é a dos anencéfalos, os quais têm uma má-formação congênita que gera a ausência total ou parcial do encéfalo, uma parte do cérebro sem a qual a vida é impossível. É preciso enfrentar, nesse caso, uma questão relevante: comete aborto um médico que realiza procedimento cirúrgico voltado para retirar do útero de uma gestante um feto anencefálico?

Essa é uma questão jurídica delicada, pois envolve decisões moralmente complexas e emocionalmente desgastantes. É também uma questão socialmente relevante, pois abrange tanto a possibilidade de punição dessa prática cirúrgica quanto o acesso de gestantes de futuros natimortos a esse tipo de procedimento médico. Além disso, trata-se de uma questão jurídica muito difícil, na medida em que envolve conceitos tão relevantes quanto fluidos, tais como morte, vida e dignidade humana.

Por fim, essa questão está na ordem do dia porque a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde ingressou no STF com uma ação (ADPF n. 54), solicitando a declaração de que seria inconstitucional considerar como aborto a antecipação terapêutica do parto no caso de fetos anencefálicos.

O pedido feito nessa é inusual, pois o autor não solicitou que o Tribunal declarasse a inconstitucionalidade de uma norma expressa, mas apenas que declarasse ser inconstitucional uma determinada forma de interpretar o Código Penal. Portanto, essa ação não busca retirar do ordenamento jurídico um dispositivo legal, mas impedir que ele seja aplicado para punir determinadas condutas, mediante a declaração de que é incompatível com o sistema constitucional a interpretação que considera aborto a cirurgia que retira o feto anencefálico do ventre da gestante. Em suma, a referida ação é um pedido para que o STF declare ser inconstitucional considerar o feto anencefálico como vivo.

Esse é um julgamento que envolve uma série de questões controvertidas, entre as quais duas merecem ser destacadas. A primeira delas é a definição acerca da possibilidade de o STF, por via interpretativa, criar uma excludente de punibilidade. Será que, agindo assim, o STF cumpriria a sua função judicial, ou extrapolaria ele suas competências? A segunda é a de se é possível inferir da constituição a inviabilidade de se tratar o anencéfalo como se fosse um feto vivo. Será que a interpretação que reconhece no anencéfalo um feto vivo é realmente incompatível com o ordenamento jurídico brasileiro?

Modelo de inferência racional: o juiz como aplicador

Para enfrentar esses problemas, a primeira coisa a se ter em mente é que uma decisão somente pode ser juridicamente válida quando ela é fundada no ordenamento jurídico positivo. Isso não quer dizer que a letra da lei ofereça soluções simples para todos os casos, pois não se poderia exigir do legislador a capacidade de prever todas as situações e elaborar regras objetivas para cada uma delas. Porém, é preciso que os juízes decidam os processos que lhe são submetidos de acordo com o próprio ordenamento, e não de acordo com suas preferências pessoais.

É claro que, em um caso complicado como o apresentado, cada um de nós tem uma opinião pessoal acerca de como seria justo regular a situação. Todo mundo tem opinião e, em uma democracia, todos têm direito a tê-las e a manifestá-las. Porém, o dever do juiz não é o de julgar conforme sua opinião, mas conforme o próprio direito, que não foi por ele elaborado. Portanto, a primeira pergunta a responder é: pode o juiz tomar uma decisão dessa natureza? Pode ele, a pretexto de interpretar o ordenamento jurídico, criar uma nova hipótese de exclusão de punibilidade?

Para responder a essa questão, antes de mais nada, é necessário verificar, no próprio direito, qual é o papel reservado aos juízes. Diz a Constituição da República que os Poderes são independentes e harmônicos e que cabe ao Legislativo legislar sobre direito penal. Portanto, não pode agir o Judiciário como se legislador ele fosse.

Por outro lado, a Constituição atribui diretamente ao Judiciário a função de declarar inconstitucionais as leis que violam o texto constitucional. Assim, cabe ao Judiciário apenas retirar do ordenamento normas inconstitucionais, atuando como legislador negativo e não como legislador positivo. Essa é a posição assentada na jurisprudência do STF e, por isso, não podemos considerar que um Tribunal pode, por via interpretativa, criar uma nova hipótese de exclusão de punibilidade, pois tal competência é expressamente atribuída ao Legislativo, dado que esta é uma matéria específica de direito penal.

Mas será que o STF está correto ao adotar esse tipo de posicionamento? Parece que sim, porque o Judiciário somente pode inferir do ordenamento aquilo que, mediante a razão, é possível extrair. Não pode o juiz usar sua vontade ou seus valores pessoais, mas apenas a sua racionalidade, com a finalidade de interpretar a norma de maneira objetiva.

Ultrapassar esse limite é recair no mesmo pecado da Suprema Corte dos EUA, que, no julgamento do célebre caso Roe v. Wade, considerou inconstitucionais as normas estaduais que vedavam terminantemente a realização do aborto. Segundo a Corte, a Constituição norte-americana garante implicitamente um direito à privacidade que "é amplo o suficiente para abranger a decisão de uma mulher sobre terminar ou não sua gravidez" e, portanto, não pode um estado federado simplesmente proibir o aborto. Por isso, o Tribunal julgou que seria inconstitucional proibir o aborto até o terceiro mês de gravidez e que, a partir daí, seria constitucional regulação do direito a abortar.

Com isso, a Corte declarou inconstitucional uma norma protetiva do direito à vida dos fetos, sob o fundamento de um direito à privacidade que a Constituição previa apenas de maneira implícita e genérica. Dessa maneira, o Judiciário dos EUA criou uma exceção à norma penal, invadindo o espaço reservado ao legislador, em um ativismo judicial que não encontra amparo na sua constituição.

O mesmo ocorreria no Brasil, caso o STF declarasse inconstitucional a interpretação de que os anencéfalos são seres humanos vivos, pois tal decisão não pode ser extraída racionalmente do texto da Constituição Federal de 1988. Portanto, é vedado ao Judiciário brasileiro adotar...

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