Judiciário e mídia: o problema da realização da cidadania no Brasil

AutorÁlvaro Filipe Oxley da Rocha
CargoDoutor em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR); Professor e Pesquisador no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS); e Professor Adjunto da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Páginas18-41

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1. Introdução

O presente artigo propõe-se a explicitar as relações entre o Poder Judiciário e a mídia (privada ou pública), e as conseqüências dessa interação para a realização da cidadania1 no Brasil2. Constitui-se também o mesmo, em um primeiro levantamento da literatura e dos conceitos fundamentais para o estudo do tema proposto3. Partindo da compreensão do Judiciário, não apenas como “guardião da norma constitucional”4, mas como ator social e político encarregado de sua efetivação, e portanto como agente de transformação social, procura-se estabelecer as referências de análise capazes de esclarecer o nível de comprometimento de seus agentes com a efetivação dos direitos básicos de cidadania5, incluindo os chamados “novos” direitos6. As relações da mídia com o Judiciário,Page 19instáveis por diversas razões, têm facetas contraditórias, pois as linguagens desse atores sociais não são compatíveis7, ao mesmo tempo em que alegam os mesmos fundamentos de legitimação em seus discurso, ou seja, trabalhar no interesse da democracia8, em nome dos interesses dos cidadãos, e da realização de seus direitos. Diante dessa contradição, é necessário questionar as formas de legitimação criadas pela mídia, e seus efeitos sobre os agentes do Judiciário, esclarecendo quem são e o que norteia a luta dos agentes dos campos jornalístico e jurídico, e os resultados dessa interação na realização dos direitos de cidadania. Para tanto, por um prisma sociológico9, e evitando o senso comum judicial10 e jornalístico11, busca-se estabelecer uma base conceitual de análise, apresentando os conceitos de “habitus” e de campo social, da obra de Pierre Bourdieu12, que também fornece a principal referência teórica para este artigo e para a pesquisa no qual o mesmo se integra, inserida na linha de pesquisa “Sociedade, novos direitos e transnacionalização”, e na linha de interesse social da Universidade intitulada “Cidadania e efetivação social do Direito”. A partir disso, é possível levantar questões relevantes, como a disparidade entre as linguagens próprias de cada campo, e as respectivas noções contraditórias de tempo e do seu uso. Finalmente, procura-se compreender a extensão do efeito de deslegitimação dos espaços estatais de debate e decisão diante do avanço da mídia, com fim de esclarecer até que ponto sua ação, nada neutra, por exemplo, ao ditar a agenda pública13, e na criação ou ampliação interessada de escândalo, é benéfica à democracia e à realização dos direitos de cidadania14. Por essa razão, há que dedicar especial atenção às questões relacionadas ao papéis sociaisPage 19ocupados pela mídia15, em especial a televisão16, pois no contexto de uma democracia moderna, os interesses da mídia privada17, legitimados na argumentação de defesa de uma suposta “opinião pública”,18 não podem ser priorizados em detrimento do interesse social (público), em acordo com o art. 3°, inciso IV, parte, da Constituição, Federal Brasileira. A temática já foi objeto de nossa atenção, por prisma diferente, em outra pesquisa19. Entretanto, seu interesse segue crescente, pois, dada a constatação de que a mídia, por todos os seus meios (televisão, internet, jornais e rádio) é a mais significativa fonte de informações dos cidadãos, e a disponibilidade de informação ser, portanto, um dos fatores determinantes para o exercício da democrático da cidadania, a compreensão dos mecanismos pelos quais a mídia se move torna-se fundamental. É consenso que cidadãos bem informados expressam melhor seus pensamentos e vontades, inclusive no que se refere à escolha de seus representantes, pelo voto. Ao mesmo tempo, entretanto, ainda que a mídia divulgue as questões políticas em grande volume, constata-se um alto nível de desinformação, no que se refere a política, pelo cidadão20. Temos consciência de que, nas condições do senso comum, é muito difícil, para muitos agentes, libertar-se da cadeia de categorias de associações mentais, conceitos, preconceitos e subentendidos legitimatórios impostos pelos discursos midiáticos. Deve-se ainda destacar que esse empecilho também atinge os grupos mais intelectualizados, mas pouco afeitos a resistir e analisar de modo neutro a ação nada neutra da mídia. Importa, entretanto, como aconselha Bourdieu21, pensar o objeto “discurso da mídia” sem usar as categorias criadas, difundidas e controladas pela mídia: é nesse sentido que o debate das relações de poder, especialmente, a relação da mídia com o Estado22 (com destaque para o Judiciário) e as conseqüências dessa interação para a realização cidadania, assumem grande relevância.

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2. Uma abordagem sociológica

A relação entre Judiciário e mídia preocupa muitos agentes, que procuram se aproximar do problema23. Entretanto, para uma abordagem produtiva do mesmo, alguns conceitos sociológicos são fundamentais para a abordagem proposta no presente artigo. A descrição da dinâmica social na qual se dá a interação entre os campos jurídico e jornalístico é complexa, e sua apreensão é facilmente levada à argumentação de senso comum e, mais gravemente ainda, para o senso comum conduzido pelas categorias midiáticas. Por essa razão, preliminarmente, cumpre elucidar, ainda que muito sucintamente, os principais elementos que permitem situar essa interação pelo prisma sociológico, os conceitos de “habitus” e de campo social24. Assim, conforme Bourdieu, a noção de “habitus25” nasce da necessidade de romper com o paradigma estruturalista26 sem recair na velha filosofia do sujeito ou da consciência, ligada à economia clássica e seu conceito de homo economicus. O autor retoma a noção de “hexis” aristotélica, como revista pela antiga escolástica, e então rebatizada de “habitus”; procura desse modo reagir contra a idéia do indivíduo como mero suporte da estrutura. Desse modo seria possível evidenciar as características criadoras, ativas e inventivas do “habitus” individual, as quais não são descritas pelo sentido tradicional da palavra “hábito”. A noção de “habitus” então procura induzir não a idéia de um “espírito universal”, de uma natureza ou razão humanas, mas um conhecimento adquirido e um bem, um capital havido pelo indivíduo, tornado desse modo um agente em ação. É desse modo que surge o primado da razão prática, no sentido estabelecido por Kant27. O autor procura resgatar, desse modo, o “lado ativo” do conhecimento prático, que a tradição materialista marxista tinha abandonado. A utilização original do conceito de “habitus” aproxima-se assim da presente, pois contém a intenção teórica de sair da filosofia da consciência sem anular o agente em sua realidade de operador prático na construção de objetos. Instru-Page 22mentaliza –se com esse termo a dimensão corporal contida numa postura social, inserida no funcionamento sistemático do agente como corpo socializado. Nesse sentido, o conceito de “habitus” é assim descrito:

[...] O habitus, como diz a palavra, é aquilo que se adquiriu, que se encarnou no corpo de forma durável, sob a forma de disposições28 permanentes. [...] o habitus é um produto dos condicionamentos que tende a reproduzir a lógica objetiva dos condicionamentos, mas introduzindo neles uma transformação: é uma espécie de máquina transformadora que faz com que nós “reproduzamos” as condições sociais de nossa própria produção, mas de uma maneira relativamente imprevisível, de uma maneira tal que não se pode passar simplesmente e mecanicamente do conhecimento das condições de produção ao conhecimento dos produtos29.

A dinâmica do habitus permite a “naturalização dos comportamentos e, desse modo, a aceitação do convencionado como se fosse o único comportamento e ponto de vista possíveis. No entanto, dentro dessa dinâmica, deve existir espaço para alguma imprevisibilidade nos comportamentos dos agentes, cuja aceitação posterior possa justificar que esses agentes venham a ocupar espaços no campo sem produzir modificações que possa comprometer a manutenção do campo, as posições ocupadas por agentes mais antigos e o sistema de distribuição das compensações advindas da aceitação no campo. O “habitus” é historicamente construído, e não se mantém inativo, renovando-se pelas práticas dos agentes, e sempre encontrando novas formas de reforço à suas convicções, referidas ao grupo. O “habitus”, portanto, dispõe de uma grande capacidade de adaptação, sem que seu princípios fundamentais sejam de fato atingidos. Entretanto, o exercício do “habitus” produz resistência, conduzindo a forte carga de ressentimento nos agentes que são impedidos por qualquer razão de assumi-lo na realidade objetiva, o que pode levá-los a buscar recursos externos ao seu campo, como os recursos da mídia, (denúncias, debates, etc.) que surgem como ações pensadas de modo a atingir o campo, ou produzir internamente efeitos que, pelos canais oficiais, não são possíveis30.

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A noção de campo31 é complementar à de “habitus” na análise das interações em foco. Preliminarmente, deve-se esclarecer que, ao se tratar dessa noção, é necessário separá-la de acepções tradicionais, como as da física, segundo a qual campo é uma região do espaço onde se exerce um força determinada, ou da psicologia social, onde campo é um conjunto de processos psíquicos que constituem um sistema dinâmico, para chegar à noção de campo em Sociologia. Para esta última ciência, entretanto, deve-se ter presente que esse termo adquire um significado muito extenso, e deixa assim de ser preciso; costuma ser associado aos sentidos de “domínio” e de “sistema”. Para a maioria dos sociólogos, mantém-se uma idéia básica de dinâmica das forças sociais, relacionadas com um aspecto de disputa entre os agentes. Touraine32 apresenta sua noção de campo de historicidade como um conjunto formado pelo sistema de ação histórica e as relações de classes pelas...

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