O dever do juiz de decidir a lide nos limites em que proposta

AutorProf. J. J. Calmon de Passos
CargoProfessor Catedrático de Direito Processual da Universidade Federal da Bahia (aposentado)
Páginas1-18

Professor Catedrático de Direito Processual da Universidade Federal da Bahia (aposentado). Coordenador do Curso de Especialização em Direito Processual da Universidade Salvador (UNIFACS).Advogado em Salvador.

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Histórico

A CONSTRUTORA LIMOEIRO S/A ajuizou ação contra a EMBASAEMPRESA BAIANA DE ÁGUA E SANEAMENTO S/A, pleiteando condenação da ré em perdas e danos e lucros cessantes, em virtude de ter havido rescisão do contrato que celebraram para execução das obras de implantação do sistema de esgotamento sanitário de Camaçari, precedido de licitação internacional, sem culpa da autora e no exclusivo interesse da EMBASA. Para fundamentar quanto pedido, alegou uma serie de fatos, como sejam, entre outros, o inicio das obras em 21.08.86, porque só nessa data foi autorizada sua mobilização, a intervenção do BNH, que importou em paralisação de suas atividades, a falta de liberação de Ordens de Serviço etc

Citada, a EMBASA contestou o pleito, impugnando todos os fatos alegados pela CONSTRUTORA LIMOEIRO S/A. Entre outras impugnações, e também apenas para exemplificar, teve como não verdadeira a assertiva da autora de que iniciara as obras em 21.08.86, por culpa da ré, asseverando que elas, em verdade só tiveram inicio em 21.10.86, por culpa exclusiva da autora, havendo, portanto, um retardamento de 101 dias, com descumprimento de expressas estipulações contratuais.

Tanto autora quanto ré juntaram a seus arrazoados uma serie de documentos, que constam dos autos. Page 2

Pronunciando-se sobre a contestação, ainda quando não tivesse a EMBASA oferecido defesa indireta, a autora afirmou serem os fatos incontroversos e pediu o julgamento antecipado da lide, no que foi atendida.

Proferiu o magistrado do primeiro grau sua decisão, dando pela procedência do pedido, condenando a ré a pagar um valor a ser apurado em execução de sentença por arbitramento, juros legais e correção monetária, fixando em 16% o percentual dos lucros cessantes, acolhendo embargos de declaração da autora.

Inconformada, a EMBASA apelou, recurso provido em parte, para o fim exclusivo de determinar a fixação dos lucros cessantes por arbitramento e não em percentual fixo, como decidido, antes, no primeiro grau.

Transitou em julgado a decisão, estando em curso o processo de liquidação da sentença, por arbitramento, como determinado.

Consulta

Diante do exposto e tendo sido fornecida cópia de todos os atos dos processos, indaga a EMBASA sobre a possibilidade de ajuizamento de ação rescisória, com vistas a se obter novo julgamento do pleito.

Parecer
1 - O objeto litigioso

1.1 - Ao Poder Judiciário foi deferida a função constitucional de aplicar o direito nos casos concretos, quando voluntariamente os interessados não quiseram ou não puderam compor seus interesses.

Elemento essencial, portanto, para a legitimação do exercício da função jurisdicional é a provocação do julgador para decidir um litígio, vale dizer, em seu sentido mais amplo, uma questão. E por questão definimos toda divergência existente entre os interessados, seja no particular da matéria de fato ( questões de fato ) seja no que diz com a qualificação jurídica desses fatos ( questões de direito ).

A questão núcleo, impossível de inexistir em qualquer demanda, é a que se coloca como objeto do processo, vale dizer, aquela que diz respeito ao fato titulo da demanda ( causa de pedir ) e ao bem da vida que se postula com fundamento nele ( pedido ).

A causa de pedir, por seu turno, é desdobrável no fato gerador da incidência originária, chamado causa de pedir remota, fato genetriz da relação jurídica posta para acertamento judicial ( direito ) e o fato gerador da incidência derivada, causa de pedir próxima, em que tem embasamento a Page 3 exigibilidade (pretensão) do autor. Esses fatos, uma vez controvertidos, configuram a questão de fato núcleo da demanda ( mérito ).

Mas, ao lado deles, e instrumentalmente voltada para formar o convencimento do magistrado no tocante à existência ou inexistência do fato título da demanda, há toda um constelação de fatos denominados de fatos simples que, embora não integrantes da causa de pedir, provam a existência ou inexistência do fato constitutivo da causa de pedir. Se há divergência entre as partes no tocante a eles, configuram-se, também, questões da fato, a reclamarem a decisão do magistrado, para que possa formar seu convencimento sobre o fato titulo da demanda, estas, como aquelas, igualmente questões de mérito..

Adstrito o juiz às questões postas pelas partes, não lhe sendo dado trazer a colação, em seu julgamento, questões que não lhe foram submetidas, nem lhe sendo dado omitir-se no tocante às questões que lhe foram postas para decidir, a sentença de mérito deve, não só aflorá-las, como solucionálas, sem omissão de nenhuma, seja para resolvê-las com posicionamento pró ou contra um dos litigantes, seja para tê-las como prejudicadas, irrelevantes ou impertinentes. O intolerável, até porque inconstitucional, é o silêncio a seu respeito, seu desconhecimento ou sua decisão desfundamentada ou em descompasso com o direito positivado.

1.2 - A par dessa limitação ao arbítrio do julgador e em resguardo da efetividade da ordem jurídica, também se exige do magistrado que ele forme sua convicção unicamente com os elementos de prova existentes nos autos. Se foi o julgador libertado das provas tarifadas, que lhe castravam o livre convencimento, não se deixou que o livre convencimento resvalasse para o arbítrio ou licenciosidade, desvinculando-se o juiz da prova dos autos e da explicita fundamentação de seu posicionamento em relação a elas, no selecioná-las, valorá-las e interpretá-las para formar seu convencimento. Donde se falar em convencimento racional .

Tudo isso não é uma construção doutrinária, trabalhada em função da racionalidade que o direito reclama e da sua cientificidade mínima, obtida, a duras penas, pela sujeição do jurista aos cânones da dogmática. Cuida-se, antes de tudo, e sem prejuízo do que foi dito, de expressos e inequívocos mandamentos legais. Os arts. 128, 131 e 460 do CPC explicitam e impõem quanto vem de ser exposto

2 - Questões de fato e de direito no caso da consulta

2.1 - Colocados esses princípios, vejamos em que medida foram eles atendidos no caso ora sob análise.

Lendo-se a inicial vê-se que a demanda da CONSTRUTORA se estruturou com os seguintes fatos:

  1. Ultimou-se entre os litigantes um contrato de empreitada, após processo prévio de licitação, em que se obrigaram, entre outras coisa, a Page 4 executar a autora as obras de implantação do sistema de esgotamento sanitário de Camaçari, recebendo da ré os quantitativos contratualmente fixados, havendo várias estipulações sobre o modus operandi de ambas as parte durante a execução do contrato ( causa de pedir remota ).

  2. A EMBASA, entretanto, unilateralmente, teria promovido a rescisão do contrato e disso decorreu sua responsabilidade de indenizar a empreiteira pela desmobilização de seu canteiro de obra, divergindo as partes quanto ao modo de calcular essa indenização e seu montante ( causa de pedir próxima ) constituindo, esta divergência, o mérito do processo, explicitando a autora o que lhe pareceu correto e não foi aceito pela EMBASA, disso decorrendo seu interesse processual no ajuizamento do pleito.

2.2 - No pertinente à causa de pedir remota ( existência da relação jurídica contratual ) portanto, nenhuma divergência se estabeleceu entre os demandantes, pelo que inexistia, a respeito, questão de fato ou de direito a ser solucionada pelo magistrado, jamais se configurando como questão de mérito a ser decidida no processo..

Já no concernente à causa de pedir próxima, divergiram as partes radicalmente , configurando-se, aqui, a questão de mérito , a ser decidida no pleito, qual a de se definir se a rescisão se deu em virtude de culpa da CONSTRUTORA ou resultou do exercício do direito potestativo da EMBASA de, unilateralmente, desconstituir a relação negocial, questão da maior relevância , visto como a depender da solução que lhe fosse dada decorreria o regime jurídico a ser adotado para fixação do montante da indenização pedida..

O objeto do processo, vale dizer, a única questão de mérito posta para decisão pelo julgador foi, precisamente, definir-se o tratamento jurídico a ser dado para fixação do valor da indenização devida e apuração desse valor. Nesse particular, a controvérsia é generalizada, havendo absoluto descompasso entre a versão da autora e a da ré, nisso se consubstanciando, justamente, o mérito da causa. Ou seja : as partes concordam quanto à existência do contrato de empreitada e termos em que foi pactuado. Concordam em que houve a rescisão por iniciativa da EMBASA. Mas estão em absoluto desacordo em tudo que diz respeito à disciplina jurídica aplicável à apuração do valor da indenização com repercussão, é evidente, no montante da indenização devida. É esta, justamente, a questão núcleo posta como objeto ( mérito ) do processo.

Entende a CONSTRUTORA ter havido rescisão por ato unilateral da EMBASA no exercício do seu direito potestativo de rescindir o contrato ( Cláusula 6a.§ 4º ) pelo que deve responder por todas as perdas e danos que vierem a ser apuradas. Afirma a EMBASA que a rescisão se deu também por culpa da CONSTRUTORA, donde só lhe caber a reposição do que contratualmente previsto. E é esta, justamente, a questão de mérito a ser decidida no pleito. E ela, como veremos, jamais foi enfrentada e decidida, quer no primeiro, quer no segundo grau. Page 5

3 - Os fatos controvertidos

3.1 - A par dessa questão núcleo e instrumentalmente conexas a ela, vários...

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