Segurança Jurídica

AutorJorge Amaury Maia Nunes
Considerações Iniciais

Embora o assunto já tenha sido objeto de preocupações iguais a esta, desde o séc. XII1, raramente eram encontradas, na seara da doutrina do século passado, investigações acadêmicas de caráter monográfico sobre segurança jurídica.

Sem embargo disso, em meados do século XVII, pode-se encontrar em Thomas Hobbes, no capítulo XVII do Leviatã, que cuida do Estado, referência ao tema. Deveras, quando trata de justificar a sua criação, evidencia que ao enorme Leviatã incumbirá a missão, por força do pacto de sujeição2a que os homens se submetem, de garantir-lhes a paz e a defesa. Isso é dito após ter sido demonstrado que essa é a única forma de atribuir segurança aos homens, o que não era conseguido com as leis naturais "que cada um respeita quando quer respeitar."3

Essa manifestação vai ao encontra do que já afirmara Hugo Grócio no sentido de que "a idéia de segurança interna e externa constitui uma necessidade vital para o indivíduo"4. Também Spinoza, ao examinar a formação do Estado, caminha por essa vereda: "Quem, com efeito, decidiu obedecer a todas as ordens formais da Civitas, quer por recear o seu poder quer por amar a tranqüilidade, procura a sua própria segurança e os seus interesses consoante a sua própria vontade."5

Nada, entretanto, de substancioso, foi acrescentado com o passar do tempo. Parece que, somente com a crescente perda do Direito da aptidão de outorgar segurança jurídica à sociedade, a doutrina houve por bem exercer tentativas de entender e teorizar esse princípio.

No Direito Brasileiro, no âmbito da Teoria Geral do Direito, há a considerar a obra de clássica obra de Theophilo Cavalcanti Filho, sobre O Problema da Segurança no Direito e, mais recentemente, a de Carlos Aurélio Mota de Souza sobre Segurança Jurídica e Jurisprudência. No direito francês, até o início da década de 90 do século passado, era habitual a queixa a respeito da falta de investigação sobre o assunto. Após essa época, ainda que de forma pouco sistematizada, o panorama inverteu-se e passaram a proliferar estudos sobre o tema, tanto na área do direito público como na do direito privado.

É certo dizer, hoje, que as sociedades contemporâneas perceberam a necessidade de retomar o discurso e a discussão sobre a segurança jurídica como forma de preservar sua própria sobrevivência, admitindo, como será visto posteriormente, o imperativo de sua regulação para além da simples análise filosófica, pugnando a sua positivação.

A segurança jurídica como categoria de interesse da Teoria Geral do Direito

Preambularmente, quanto ao ponto, cumpre assinalar que não se pretende aprofundar qualquer discussão sobre se segurança jurídica constitui (i) uma categoria - parece que seria possível assim entender. Se não no conceito aristotélico6, ao menos dentro do conceito de categoria proposto por Kant, como condições de possibilidades7; ou (ii) um princípio, aqui considerado como uma verdade fundante. Não que isso seja absolutamente irrelevante, mas sim porque, qualquer que seja a conclusão, o tema continuará sendo de interesse da Teoria Geral do Direito, que é o que se busca demonstrar.

Ademais, mostra-se possível conciliar categoria e princípio. Basta, para isso, ter presente a ponderação de Jaime Guasp: "...los princípios del Derecho se designam como categorias. La palavra se emplea ... como um término apto para designar um cierto ser, o modo de ser, que, sin estar previamente condicionado, condiciona él, a su vez, a toda la ulterior realidad a que se aplica."8

Feita a advertência inicial, cabe investigar o conceito de segurança jurídica na sua plurivocidade, sua importância para o próprio conceito de Direito e para a vida em sociedade, cumprindo verificar o estado dos estudos feitos até os dias de hoje.

Helmut Coing, em breve passagem dos seus Elementos Fundamentais da Filosofia do Direito, evidencia os fins da formação do Direito: segurança e paz, justiça, igualdade e liberdade. Sobre a segurança, expressa o entendimento de que se funda, basicamente, no respeito ao que decidido e na previsibilidade da conduta tida como reta: "o que é determinado legalmente deve ser excluído da arbitrariedade; nem aquele que determina o Direito, nem aquele ao qual o direito se dirige, deve violá-lo. Ele deve perdurar... a pessoa pode organizar-se com base nisto, ela pode construir sua vida na proteção desta ordem."9

Bem por isso, o Relatório Público de 2006 do Conselho de Estado da França10assinala, de forma enfática, que "face à desordem do Direito, o princípio da segurança jurídica aparece como último ramo ao qual se agarram as jurisdições supremas para manter um semblante de ordem e permitir ao Direito cumprir a missão que normalmente lhe é destinada."

Embora sem haver atentado para o estado de desordem do Direito, João Baptista Machado11assevera que "uma das principais funções das instituições sociais é criar estruturas de ordem e estabilidade nas relações entre os membros da comunidade. Cabe ao direito acrescentar a essa estabilidade ordenadora das instituições sociais uma segurança ordenadora específica e própria a que se pode dar o nome genérico de segurança jurídica." Daí que, sendo a segurança uma das exigências feitas ao Direito, acaba por representar "uma tarefa ou missão contida na própria idéia de Direito."12

Theophilo Cavalcanti Filho situa a segurança jurídica como razão fundamental do Direito e, não obstante repudie a assimilação do Direito ao Estado - demonstrando que o institucionalismo de Santi Romano rebate, com vantagem, as teses estatalistas de Hobbes, Rousseau, Kant, Hegel, Ihering, Austin e, óbvio, Kelsen -, termina por afirmar que "a certeza e a segurança jurídica têm em última análise como ponto básico o direito estatal ao qual cabe, como atributo essencial, o de se fazer valer de forma inexorável"13.

É necessário destacar que, sem embargo disso, para ele, o Direito constitui um princípio natural, uma espécie de inerência da própria vida societária "que exige, essencialmente, ordem, organização e segurança."14

Dessas duas afirmações decorre a possibilidade de admitir-se um viés conducente a uma forma de pluralismo jurídico, ou, pelo menos, que o centro de imputação não é o Estado, mas sempre tendo em mira que "a razão fundamental que justifica o direito é a exigência de certeza e segurança nas relações que se estabelecem em sociedade".15

A obra de Theophilo Cavalcanti Filho, forte no magistério de Radbruch lembra a proclamação de que a justiça e a segurança "são os únicos elementos universalmente válidos da idéia de direito"16. Daí, não por acaso, a inserção da segurança jurídica no âmbito da Teoria Geral do Direito, sem embargo da forte vocação da doutrina mais recente para situá-la na esfera do Direito Constitucional, como será demonstrado de forma mais detalhada, posteriormente.

Não é encontrado, entretanto, ao longo de toda a obra em exame, o recorte esperado sobre o que representa a segurança jurídica, sua definição, seus limites. É certo, abrem-se capítulos sobre contratualismo e segurança; sobre segurança e justiça, para asseverar que a ordem jurídica não é indiferente à idéia de justiça. Há, também, uma visão tridimensionalista da segurança, mas não se têm os seus contornos. Não obstante isso, fica demonstrado que Theophilo Cavalcanti Filho entende ser a certeza do direito "fundamental ao homem, porque lhe permite saber qual a qualificação que poderá esperar para a sua ação ou para a ação dos demais"17, formulação que, certamente, representa um dos muitos e importantes sentido da segurança jurídica - e, registre-se, fundamental para os fins do presente estudo - mas que está longe de ser o único viés de investigação.

Carlos Aurélio Mota de Souza, ao tratar da segurança jurídica e da certeza do Direito, entende a primeira como "valor fundamental das sociedades atuais"18, colocando-a como objeto de estudo da Teoria Geral e da Filosofia do Direito19.

Ao perscrutar o pensamento de Mota de Souza, impende deixar claro que, para ele, segurança jurídica e certeza do direito não são a mesma coisa, embora em um dos conceitos de segurança explorados naquele trabalho o seu sentido esteja claramente vinculado ao de certeza. Deveras, quando se afirma que segurança jurídica implica a previsibilidade das decisões judiciais o que se quer afirmar é a necessidade de certeza quanto ao conteúdo do direito judicial. Daí decorre que esses conceitos devem ser sempre correlacionados e que há situações em que um implica o outro.20

Mota de Souza busca em Kant distinções sobre certeza separando-a em empírica e racional, a primeira originária, decorrente da própria experiência histórica; a segunda, apodítica representada pela consciência de conhecer algo, para depois concluir que segurança não é um mero "factum imanente a este ou àquele sistema de Direito, mas é um valor do Direito."21

Sem embargo do auxílio que a obra empresta para que se possa alcançar o conceito de segurança jurídica e a abrangência que pode alcançar, cremos que a mais recente doutrina do Direito francês, mais especificamente o antes citado trabalho de Anne-Laure Valembois, quanto ao ponto, presta inestimável auxílio a esta pesquisa, com a qual tem vários e interessantes pontos de contato22, o principal dos quais é pertinente ao fato de que, logo na introdução de seu trabalho, está identificada, com rica indicação bibliográfica a unidade de noções existente entre segurança jurídica e Direito23, por isso que, se se admite que é a noção de fim que dá a chave da formação do direito, então a segurança é a chave da formação do direito e, logo, o Direito se reduz...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT