Proteção jurídica dos animais

AutorSilma Mendes Berti/Edgard Audomar Marx Neto
CargoProfessora Adjunta na Universidade Federal de Minas Gerais/Mestrando em Direito na Universidade Federal de Minas Gerais
Páginas107-113

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1. Homens e animais

A continuidade da relação que se travou entre o homem e o animal acabou por repercutir no julgamento moral dessa condição. Cada vez mais animais são incorporados ao mundo da cultura e postos ao alcance das pessoas. Por outro lado, preserva-se o afastamento dos pólos dessa relação, derivado do desconhecimento das peculiaridades dos mecanismos biológicos de muitas espécies ou associado à atribuição do caráter místico a alguns animais.

Se a sociedade contemporânea incorporou a presença dos pets, a história registra um tormentoso caminho de dominação e violência do homem sobre os animais. Em passado não longínquo, alguns animais foram levados aos tribunais por atos que se lhe imputavam, sendo julgados como malfeitores e submetidos a penas1.

Ao lado dos animais dentre as coisas semoventes, até fins do século XIX a legislação brasileira reconhecia inserido o escravo, também objeto de direitos titularizados por outro homem2. "Simplesmente, ao passo que o escravo, mercê, designadamente, do cristianismo, se veio a emancipar, outrotanto não sucedeu com o animal"3.

Como coisas, os animais sujeitavam-se totalmente aos desígnios de seu proprietário, configurando latente conflituosidade na relação. Pela atribuição especular de características a um burro e seu dono, Machado de Assis descreve a prática de uma época:

"[...] uma carroça estava parada, ao pé da Travessa de S. Francisco, sem deixar passar um carro, e o carroceiro dava muita pancada no burro da carroça. Vulgar embora, este espetáculo fez parar o nosso

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Aires, não menos condoído do asno do homem. A força despendida por este era grande, porque o asno ruminava se devia ou não sair do lugar; mas não obstante esta superioridade, apanhava que era o diabo. Já havia algumas pessoas paradas, mirando. Cinco ou seis minutos durou esta situação; finalmente o burro preferiu a marcha à pancada, tirou a carroça do lugar e foi andando.

Nos olhos redondos do animal viu Aires uma expressão profunda de ironia e paciência. Pareceulhe o gesto largo do espírito invencível. Depois leu neles este monólogo: ‘Anda, patrão, atulha a carroça de carga para ganhar o capim de que me alimentas. Vive de pé no chão para comprar minhas ferraduras. Nem por isso me impedirás que te chame um nome feio, mas eu não te chamo nada; ficas sendo sempre o meu querido patrão. Enquanto te esfalfas em ganhar a vida, eu vou pensando que o teu domínio não vale muito, uma vez que não me tiras a liberdade de teimar"4.

O burro da carroça pertencia ao carroceiro, como qualquer outra coisa que pudesse ser objeto de propriedade. Entretanto, o sofrimento do animal causa indignação, talvez por ser ele visto como a parte animal do homem (seus instintos).

Mais de um século após a publicação do texto, o direito procura soluções para garantir tratamento adequado aos animais.

2. Elementos de proteção

Respeitar o "direito do animal" não significa tratá-lo como ser humano, significa, ao contrário, respeitar-lhe o interesse, especialmente...

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