Segurança jurídica nas normas tributárias

AutorCaio Augusto Takano
CargoPós-Graduando em Direito Tributário pelo IBET
Páginas129-146

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1. Noções propedêuticas

A ideia do Direito como um sistema ordenado composto exclusivamente por normas jurídicas, cujo objetivo precípuo é a regulação das condutas humanas intersubjetivas, no bojo de uma determinada ordem social, induz, os exegetas, à primazia do princípio da Segurança Jurídica em relação às demais normas do sistemajurídico.

Não por outra razão que Aires Barreto,1 em precioso escólio, assevera que a segurança jurídica trata de uma diretriz fundamental, um eixo em torno do qual gravitam todos os demais princípios, atuando como pilar magno do sistemajurídico. Age como fundamento dos demais vetores normativos do ordenamento jurídico, impregnando-lhes seu conteúdo.2

Como sobreprincípio que é, a segurança jurídica irradia-se, indistintamente, por todo o sistema jurídico, mormente pelo fato de que qualquer divisão do Direito possui unicamente finalidade didática, uma vez que é um todo incindível.

Em matéria tributária, a noção de segurança jurídica sempre esteve jungida à rigidez.

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Daí porque Geraldo Ataliba3 sempre afirmou que, dentre os princípios constitucionais atuantes no Direito Tributário, a rigidez do sistema tributário é o mais característico e o mais peculiar princípio jurídico brasileiro. Com efeito, sendo composto pelo conjunto extenso e concatenado de princípios e outras limitações ao poder de tributar, faz com que, em regra, seja possível evitar surpresas e excessos por parte da Administração Pública, preservando a segurança nas relações jurídicas tributárias.

Não obstante isto, com o cada vez mais crescente reconhecimento doutrinário de que os tributos são instrumentos adequados para cumprir não apenas seu telos arrecadatório, mas igualmente exercer outras finalidades, como intervir sobre o domínio económico, agindo na Ordem Económica ainda que indiretamente, torna-se imperioso dispensar maiores reflexões em torno da relação entre as normas tributárias e o princípio da segurança jurídica sob este paradigma.4

Deveras, se por um lado o Direito Tributário é erigido por hirtos princípios, devido à transmissão da rigidez da Constituição Federal ao nosso sistema tributário nacional, cuja obediência é necessária para efetivar a segurança jurídica, a atuação na Ordem Económica exige flexibilidade, mobilidade, agilidade necessária aos instrumentos de intervenção do Estado hábeis para atender às modificações e variações do dinamismo da política económica.5

Conciliar este aparente paradoxo, i.e., a dinâmica realidade da Ordem Económica com a rígida estrutura do sistema tributário brasileiro, sob uma visão unitária da norma jurídica tributária, reconhecendo-se não apenas sua função fiscal como as demais, principalmente, destacando sua função indutora, sob a luz da segurança jurídica, é missão que se revela tormentosa e, ao mesmo tempo, desafiadora.

Tal análise impõe investigação de princípios de Direito Económico, limitadores ou propulsores da intervenção estatal, conjunta-mente com aqueles classicamente identificados com as normas tributárias. A investigação dos requisitos necessários à observância do princípio da segurança jurídica pelas normas tributárias só poderá ser realizada a partir da consideração conjunta de seus efeitos fiscais e indutores.

Sem a pretensão de exaurir o assunto, mas visando apenas a atrair a atenção dos estudiosos para esse tema tão importante, é como este artigo se apresenta: como uma singela proposta de cunho científico para a interpretação do princípio da segurança jurídica nas normas jurídicas tributárias, sem olvidar que nelas convivem, lado a lado, as pretensões fiscais do Estado e a atuação deste sobre o Domínio Económico.

2. Sistema jurídico tributário, a Ordem Econômica e o cânone hermenêutico da totalidade do sistema jurídico

O ponto de partida para o estudo proposto é a visão do sistema jurídico, dentro do qual está o subsistema jurídico tributário, como um complexo organizado de normas jurídicas. Desta afirmação se evidenciam duas importantes consequências: (i) tanto os princípios quanto as regras, no direito positivo, são normas jurídicas; e (ii) essas normas

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jurídicas encontram-se organizadas numa estrutura particular, que dá singularidade ao sistema.

Neste sentido, não olvidemos o escólio do mestre Geraldo Ataliba que, com usual brilhantismo, asseverava: "Na Constituição, é óbvio que valem muito o conteúdo, o sentido e o alcance dos princípios e das regras constitucionais. Mas a tónica e sobretudo a relatividade dos valores, a hierarquia desses valores depende da organização que o legislador constituinte lhes deu, e esta ordenação é que faz o sistema, juntamente com o conteúdo. Não é só conteúdo, nem só organização (arrumação): é 'organização de conteúdos'".6

Evidencia-se, dessarte, que as normas jurídicas se encontram em constantes relações de subordinação e coordenação uma com as outras.7 Trata-se da unidade do Direito e do cânone hermenêutico da totalidade do sistema jurídico a que se referia Becker: as normas não devem ser interpretadas isoladamente, mas levando-se em consideração a referida interdependência que possuem em relação às demais, encontradas no direito positivo como um todo, não se limitando à divisão em "ramo", cuja finalidade é exclusivamente didática.8

Se por um lado o corte metodológico se faz necessário, e muitas vezes útil, para o estudo de um determinado objeto, permitindo uma melhor aproximação deste ao reduzir--lhe as complexidades, é certo que a sua utilidade restará comprometida se implicar a demasiada simplificação do objeto de estudo, correndo-se o risco de, assim procedendo, não abranger todas as suas características fundamentais e os vínculos que estabelece com as demais normas do sistema.

Neste arrimo, se a norma jurídica tributária possui uma função indutora, e não meramente uma função fiscal - sendo que a existência de uma não exclui a outra -, é con-sectário natural que norma tributária, igualmente, se relacione com os princípios informadores da Ordem Económica, sujeitando-se a todas as limitações e metas comuns a que estão submetidas quaisquer formas de atuação económica estatal.9 Trata-se de evidente garantia ao contribuinte, demonstrando a importância de se considerar a Ordem Económica não como um dado pré-jurídico, mas como importante elemento pertencente ao sistema jurídico, em suas relações de coordenação e subordinação, cujo papel é fundamental nas normas jurídicas tributárias.

Daí a pertinência das observações de Eros Grau sobre o tema. Assevera o Ex-Mi-nistro do Pretório Excelso que a Constituição de 1988 positivou, em seu artigo 170, a implantação de uma nova ordem económica que, em conjunto com outros programas, finalidades e diretrizes no bojo da Carta Política, busca efetivar o plano normativo constitucional.10 Assume, portanto, significativa expressão no ordenamento jurídico hodierno, não podendo ser considerado mais como mero dado pré-jurídico.

Essa é a razão que justifica a possibilidade de determinada norma jurídica se submeter, concomitantemente, aos princípios informadores tanto do "ramo" do Direito Tributário quanto aos princípios informadores da Ordem Económica. É o caso da norma jurídica tributária que, em razão de possuir pelo menos uma função fiscal e uma função indutora, submete-se a princípios específicos tanto da Ordem Tributária quanto da Ordem Económica, como se analisará a seguir.

3. A norma jurídica tributária Seus aspectos: fiscal e indutor

A norma jurídica tributária é una, i.e., é composta por uma estrutura lógica incindível,

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contendo a previsão hipotética de um fato ou estado de fato,11 ao qual se atribui uma consequência: a instauração de uma relação jurídica entre dois sujeitos em que um, credor, tem o direito subjetivo de exigir o cumprimento da prestação desta obrigação (dar dinheiro aos cofres públicos) do outro, devedor, possuidor de tal dever jurídico.

Contudo, não obstante o objeto da prestação desta obrigação jurídica instituída ex lege seja uma prestação de dar dinheiro, é superada a afirmação de que o tributo possui função meramente ou predominantemente ar-recadatória, ou, ainda, de que existe tributação neutra. Isto porque tal assertiva delimitaria em demasia o instituto jurídico do tributo a apenas um de seus aspectos.

Conforme demonstra valioso escólio de Schoueri, ao lado da função arrecadadora existem diversas outras, comuns a toda ati-vidade financeira do Estado, a saber: função distributiva (buscando a redução da desigualdade social); função indutora (vinculando a tributação aos comportamentos humanos, incentivando ou desestimulando-lhes a realização de determinada conduta); e função simplificadora (visando à simplificação do sistema tributário mediante a adoção de medidas globais, em função do princípio da praticabilidade).12

Com efeito, vezes sem conta o Estado se utiliza das normas tributárias para buscar atingir finalidades outras que não meramente a arrecadatória, como regular os comportamentos em matéria económica, social e política.

Portanto, qualquer estudo que pretenda investigar a norma jurídica tributária deverá considerar que não existe um tributo exclusivamente fiscal ou extrafiscal, mas uma norma jurídica tributária com, no mínimo, uma função fiscal e uma função extrafiscal em sentido estrito (indutora), sendo que um deles terá primazia sobre o outro, não havendo uma prevalência predisposta do aspecto arrecadatório sobre os demais.

Com arguta precisão as palavras...

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