A reiteração e as normas jurídicas tributárias sancionatórias - A multa qualificada da Lei 9.430/1996

AutorRobson Maia Lins
CargoMestre e Doutor em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP.
Páginas21-31

Page 21

Introdução

A ideia de que se deve punir de forma mais severa aqueles que pratiquem uma conduta ilícita por vezes repetidas deriva do senso de justiça e da noção de que a pena, antes aplicada, foi insuficiente para cumprir o seu papel social de desestímulo ao cometimento do fato ilícito.

Mas a repetição é bem mais intricada do que pode parecer a primeira vista. Identificar até que ponto é cindível o contínuo de movimentos, as ações e as condutas é problema dos mais difíceis com que se possa deparar o intérprete.

Hoje, o emprego de expedientes da semiótica e análise do discurso normativo mostram-se de grande valor ao permitir uma nova perspectiva para o exame de velhos problemas como este. Firmando bem a premissa de que o direito se comporta como linguagem, muito bem traçada por Gregório Robles Morchón e Paulo de Barros Carvalho, torna-se possível empregar noções trazidas da semiótica no deslinde de problemas jurídicos, abrindo-lhe novos e ricos horizontes investigativos.

É mediante a observação detalhada do fenômeno jurídico, que se faz possível reconhecer as falhas existentes nas prescrições do sistema de direito positivo e que tanto prejudicam o adequado tratamento da matéria por parte dos órgãos julgadores quer na esfera administrativa, quer na esfera judicial. É isso que, neste texto, nos propomos fazer sobre o tema da reiteração como termo antecedente de normas sancionatórias, mais especificamente, quanto a chamada multa isolada qualificada.

A exposição dividir-se-á em três blocos: no primeiro deles, observaremos a ideia de conduta sob o prisma da semiótica, reco-

Page 22

nhecendo quais cortes podem ser feitos em sua estrutura e como se dá a interpretação dos gestos humanos. Num segundo momento, trataremos da reiteração como um problema de corte: como é possível dizer que algo é uma ou várias condutas? E no terceiro instante, procederemos a um cotejo das formas que a doutrina penalista trata da reiteração da conduta e de como o Conselho de Contribuintes e o STJ vem dando tratamento à matéria, apontando de forma crítica seus fundamentos.

O que se quer dizer com "gesto", "ação", "conduta" e "movimento"

Uma distinção que se mostra necessária ao estudo analítico com que se pretende tratar do tema da reiteração da ação humana e de como se dá o seu reconhecimento pela linguagem jurídica é aquela que se pode traçar entre movimento, ação e conduta.

Antes de explicá-la de forma mais minudente, é necessária a advertência: a separação ora proposta quer fracionar analiticamente um fenômeno que em seu acontecer é indivisível. É dizer que são cortes traçados de maneira a separar aspectos que não se sucedem de forma cronológica, mas tão somente lógica na formação daquele conteúdo proposicional que chamamos conduta jurídica.

Para melhor compreender e dimensionar aquilo de que se pretende falar, é necessário ter em mente duas premissas: (1) direito é texto que se insere num contexto comunicacional próprio, que é o jurídico prescritor de condutas; (2) é texto vertido em linguagem própria, distinta daquela da realidade social, trata-se daquilo a que chamamos linguagem jurídica.

Firmadas essas premissas já podemos evocar outro instrumental útil a esse primeiro empenho analítico. Toda linguagem se faz pelo emprego de símbolos que se referem a um ou vários objetos. Quando esse símbolo é inserido em um discurso, passando a integrar o conjunto dos enunciados existentes naquele corpo de linguagem, constitui uma realidade própria daquela língua, como já o escrevera Vilém Flusser (2002). A esses objetos Habermas denominou "objetos da experiência" e às construções, que - elas sim - instauram essa realidade inaugurada pela língua, chamou de "enunciados". Essa é, tomadas as cautelas que devem ser tomadas em qualquer comparação que se pretenda séria, a mesma distinção que faz Paulo de Barros Carvalho entre o "evento" - que corresponde à manifestação fenomênica inalcançável e irrepetível que se esvai no tempo e espaço - e "fato" - o relato em linguagem do evento que, ao contrário deste, permanece é demarcado em tempo e espaço construindo a realidade.

Os relatos - ou, já podemos assim dizer, os fatos - se articulam sempre uns com outros construindo uma realidade, tal como os fios se juntam para formar um tecido. Se há algo que se possa apontar como comum à forma de sua construção é o se fazerem por meio de cortes. Esses cortes - de natureza linguística e seletores de propriedades relevantes àquele tipo de linguagem - incidem na complexidade do evento e limitam-no de maneira a possibilitar sua objetivação e, com isso, a intersubjetividade que caracteriza a comunicação autêntica. Aquilo que é recortado e enunciado sob a forma de fato permanece e passa a integrar a realidade, aquilo que não é registrado se esvai. Colocando de outra maneira, o fato acontece e fica gravado no tempo e no espaço, o evento ocorre e sua verificação não ultrapassará a vivência intuitiva (Flusser, 2010, p. 22).

E se é no serem realizados por meio de cortes seletores de propriedades que todos os fatos coincidem, é também aí que termina sua semelhança. A depender da linguagem em que se esteja a produzir e articular novos fatos, diferentes serão as regras que determinam as propriedades relevantes para a construção do fato. Assim, de um "mesmo"

Page 23

substrato fenomênico, de um mesmo evento "isolado",1é possível construir diferentes fatos a depender do contexto comunicacional em que estejam os participantes do discurso.

Da mesma situação de um sujeito levantar o braço, para bem ilustrar o que se fala, poderá ele expressar sua anuência numa assembleia ou reclamar a palavra nesta mesma reunião a depender de como e quando o faça. Ainda seguindo a luz dada pelo exemplo, já podemos dizer que: uma coisa é o dispor o braço em posição ereta, outra é algo o significado que ele expressa. Voltemos nossa atenção com mais detalhe a esta última afirmação.

O levantar o braço, naquele contexto de uma assembleia, é um signo linguístico que como todos os outros desempenha uma relação triádica na qual que podem identificar, também em trabalho de decomposição analítica daquilo que é ontologicamente indissociável: (1) um suporte físico; (2) um significado e (3) uma significação.2Os movimentos corporais do sujeito servem de su-porte físico que, mediada pela interpretação dos demais membros da assembleia que lhe atribuem significação, refere-se a um significado que bem poderia ser a anuência desse participante.

O que se pretende dizer com a separação traçada entre movimento, ação e conduta é o transpor o raciocínio semiótico para o agir humano reconhecendo aí valioso instrumento para a compreensão deste tipo de signo. E assim, chamaremos de movimentos a instância física em que se transmitem as mensagens de forma intersubjetiva, isto é, o suporte físico do signo ação humana; ao significado, ao objeto do signo, àquilo a que se refere o gesto atribuiremos a alcunha de ação e; à significação, àquilo que se constrói por meio da interpretação do fato denominemos conduta. Já o signo do agir humano, formado pela união indissolúvel entre movimento, ação e conduta, é o que passaremos a chamar de gesto.

Da complexidade à unidade e o problema dos atos "complexos"

Firmadas as noções de movimento, ação e conduta, podemos seguir o raciocínio incitados pela seguinte questão: o que faz algo ser considerado um gesto ou vários gestos?

De acordo com o nível de detalhe com que se pretenda enxergar, mesmo o mais simples dos gestos como aquele sustentar horizontalmente o braço de que já tratamos, pode ser decomposto em uma série de movimentos cuja enumeração somente encontrará fim nos limites a que esteja restrito os horizontes da cultura do intérprete.

Este "mesmo" movimento que é uno para o presidente da assembleia, poderia ser decomposto em uma série de micromovimentos - mas ainda assim movimentos segundo aquela acepção que traçamos - tantos quantos fossem os graus percorridos no movimento angular do erguer do braço, quando visto pelos olhos de um geômetra, ou tantos quantos fossem os impulsos nervosos transmitidos se tomado o ato pelo prisma de um neurologista.

Dizer que se está diante de um gesto - e não de vários - é algo que não depende menos do movimento "em si" que da inter-pretação feita pelo sujeito que esteja na função de intérprete. Só há um signo a partir da percepção de um movimento, isto é, o gesto só existe em um cenário comunicativo qualquer quando for encontrado um receptor que

Page 24

o interprete. Isso porque é somente com a existência de um receptor que se instaura a autêntica comunicação (Voli, 2008).

O ser "um" ou ser "vários" é um problema de corte e, logo, de linguagem. Colocando-o sob esse olhar, o fracionamento ou a integração de movimentos se dará em razão dos critérios que uma linguagem utilize para fazer seus cortes no evento construindo o(s) fato(s) que lhe é(são) correspondente(s). Foi pela diferença de critérios linguísticos - isto é, dos cortes seletores de propriedades - que daquele movimento de levantar de braço viram diferentes coisas o presidente, o geômetra e o neurologista.

Qual deles leu corretamente? Qual deles viu a ação tal qual realmente é? Qual deles contou os movimentos certos? Ora, todos! Cada um construiu um fato linguístico adequado ao contexto comunicacional em que o pretendia inserir. São três fatos linguísticos distintos, construídos pelo emprego de...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT