O Justo e o Razoável

AutorGeorge P. Fletcher
CargoCatedrático de Direito Penal. Universidade de Columbia, New York, EUA
Páginas181-228

    Catedrático de Direito Penal. Universidade de Columbia, New York, EUA. lhong@law.columbia.edu

    Este trabalho foi publicado primero em: 98 Harward law Review 949 (1985); e posteriormente em: Albin ESER/George P. FLETTCHER, Rechtfertigung und Entschuldigung, Justification and Excuse, Volume I, Freiburg, i. Br., 1987, pp. 67 a 119, de onde se traduz com autorização do autor. (Tradução: Paulo César Busato e Mariana Cesto).

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1. Introdução

Nós juristas anglo-saxões deveríamos ouvir o modo como falamos. Se parássemos para ouvir nosso padrão de discurso, ficaríamos surpreendidos por alguns aspectos distintivos. Uma das mais claras particularidades do nosso discurso é a infinita confiança que temos no termo razoável. Continuamente empregamos expressões como: tempo razoável, atraso razoável, confiança razoável ou cuidado razoável. Em Direito penal, nós falamos incessantemente sobre provocação razoável, erro razoável, força razoável, e risco razoável1. Por trás dessas expressões late a sensibilidade da pessoa razoável. Com toda a suposta firmeza do Common Law, nós mal podemos funcionar sem essa figura hipotética no centro do debate jurídico. Nem sequer podemos começar a argumentar sobre vários temas de responsabilidade e imputação sem antes nos perguntarmos o que uma pessoa razoável faria nestas circunstâncias.

Nossa confiança no razoável merece atenção porque distingue nosso discurso jurídico do discurso jurídico de outras culturas. O fato é que juristas franceses, alemães e soviéticos argumentamPage 183 em um idioma diferente. Suas línguas efetivamente usam um conceito de razão, e seus termos para razão – raison, Vernunf e razumnost prontamente fornecem os adjetivos correspondentes. Entretanto, esses paralelos ao nosso termo razoável não figuram de forma proeminente no discurso jurídico continental. O Código Civil francês utiliza o termo raisonnable somente uma vez2; os Códigos Civis alemão e soviético não o utilizam3. Os códigos penais – o habitat natural da pessoa razoável – tampouco mencionam estes derivados da razão4. Nos códigos civis, vemos uma variedade de critérios para cuidado: na França, a conduta esperada de um bon père de famille5; na Alemanha Ocidental, o “o cuidado necessário numa transação particular”6; e na legislação soviética, “prevendo uma conseqüência social perigosa que qualquer um poderia ter previsto”7. Erros razoáveis são também tratados num léxico diferente. Os adjetivos que descrevem um erro escusável, nessas línguas, não são traduzidos pelo termo razoável, mas sim “invencível”8, “inevitável”9 e “não-negligente”10. Todas essas emanações da pessoa razoável encontram diferentes traduções no discurso jurídico continental, uma palavra diferente para cada contexto.

Na Europa continental, nem o adjetivo razoável nem a figura da pessoa razoável importa muito na hora de escolher um argumento jurídico. O que percebemos como denominador comum entre a “confiança razoável” e o “erro razoável” está diluído no debate jurídico continental. O fato de que pensamos de forma diferente de nossos colegas europeus não é tão facilmente perceptível. Que falamos de modo diferente, entretanto, fica bastante claro.

Acredito que, não é por acaso que nós juristas anglo-saxões claramente dependemos do conceito do razoável e que os europeus não dependem. Esse padrão do nosso discurso tem um propósito, talvez muitos propósitos. Em primeiro lugar, considerarei alguns desses possíveis propósitos e então analisarei o problema específico dos erros razoáveis no Direito penal.

2. Dois estilos de Raciocínio Legal

Até que ponto podemos apreciar o valor que o common law concede ao termo razoável? Sugiro que ouçamos atentamente a maneira com que juristas franceses, alemães e soviéticos debatem assuntos jurídicos. Para isso, devemos prestar atenção não só na linguagem da legislação e das opiniões jurisprudenciais, masPage 184 também no estilo de argumentação utilizado nos livros, tratados e literatura teórica. Nosso objetivo nessa questão empírica deveria ser isolar as características do discurso europeu mais destacadas em seu contexto proeminentes em seu contexto e compará-las com nossa patente dependência do razoável. Limitando nossa investigação ao discurso jurídico alemão, encontramos um número de termos – não facilmente traduzíveis – que aparecem quase tão freqüentemente no discurso jurídicos alemão como o de razoabilidade no discurso jurídico inglês. Considerei os termos Treu und Glauben (boa-fé e negócio justo)11, Recht (direito objetivo)12, Rechtsmißbrauch (abuso de direito)13, e Zumutbarkeit (exigibilidade)14. Que estes termos sejam tão significantes no discurso alemão quanto é o de razoável no inglês não dependem, contudo, tão somente da freqüência com que aparecem. A questão é se um ou mais desses termos assinala uma característica mais profunda, estrutural, do pensamento legal alemão.

O argumento a seguir é que o conceito de justo (Recht) molda o pensamento jurídico alemão assim como o de razoabilidade no common law. Para desenvolver esse argumento, primeiramente preciso introduzir e tornar clara a distinção entre dois tipos de discurso jurídico, os quais, por falta de termos melhores, chamarei de plano15 e estruturado. O discurso jurídico plano ocorre em um único nível, marcado pela aplicação de uma norma legal que invoca todos os critérios relevantes para resolução da disputa. O discurso legal estruturado ocorre em dois estágios: primeiramente, uma norma absoluta é declarada e em segundo lugar se introduzem qualificações para restringir o propósito da norma supostamente dispositiva.

Essa distinção é facilmente compreendida no contexto. Considere o problema de impor limites ao direito de utilizar a força para impedir uma agressão ao direito de alguém. A lei alemã trata esse problema com um estilo de discurso jurídico estruturado. De acordo com o Código Penal de 197516 (assim como o Código anterior de 187117), todos que sofrem uma violação injusta de seus direitos têm o privilégio absoluto de usar a força que seja necessária para impedir esta violação. Se, por exemplo, a única maneira de deter um ladrão fugitivo, até mesmo uma criança furtando frutas, é atirar nele, a jurisprudência18 e a doutrina19 alemãs consideravam originalmente que o proprietário tinha o direito de usar uma forçaPage 185 letal. Contrariamente a essa tendência, alguns comentaristas20 e a jurisprudência21 no pós-guerra invocaram o princípio do “abuso de direitos” para limitar esse direito em um segundo nível de análise22. No primeiro nível, permanece existindo um direito absoluto a usar força letal quando necessário; em um segundo nível, o exercício desse direito se submete, entretanto, a uma ulterior verificação. Se o direito é exercido mediante um custo excessivo, se lhe considera “abusivo” e, portanto, fica sem efeito. Nada no Código Penal prevê essa restrição, mas o método do pensamento jurídico estruturado permite um nível adicional de argumentação, um nível onde considerações extra-jurídicas podem limitar as previsões explícitas do Código.

De modo distinto, o discurso do common law normalmente evita essa bipartição. Nós anglo-saxões não nos sentimos inclinados a dizer, primeiro, que a parte que está se defendendo tem todo o direito de usar toda a força necessária para reivindicar sua autonomia, e segundo, que invocar esse direito em certas circunstâncias seria um abuso23. A vantagem do simples termo “razoável” é que ele inclui os critérios iniciais normativos que são os mesmos ou similares àqueles invocados pelos que usam o argumento do “abuso de direito” em um segundo nível de argumentação. O resultado da unificação das duas dimensões de argumentação é que o privilégio da legítima defesa não é mais absoluto, porque desde o início vem limitado pelo conceito do razoável.

O estilo estruturado de argumentação jurídica se expressa também nas limitações impostas ao uso da propriedade. No primeiro nível de argumentação, propriedade privada é entendida como absoluta; no segundo nível, o direito de sua propriedade é “abusivo” se outros direitos são afetados de maneira desproporcional24. Ao contrário do que sucede na análise a dois níveis de legítima defesa, na argumentação plana esta estrutura é unificada desde um princípio: todos têm o direito do uso razoável de sua propriedade25.

Depois dessa comparação entre o pensamento jurídico estruturado e o plano, podemos ver que nossa dependência do termo razoável favorece o pensamento jurídico plano. Com modificadores sintáticos livres como “razoável” e “substancial”, cada regra do common law pode conter substitutivos para tudo que alguém precisa saber para resolver um problema em particular. Claro quePage 186 a adição de conceitos abertos modificadores sacrifica tanto a aparente precisão quanto o aparente caráter absoluto da regra posta. Mas um jurista americano sofisticado provavelmente diria que essas ostensivas virtudes da lei alemã são ilusórias e que é melhor trabalhar com as normas jurídicas vagas e qualificadas, mas pelo menos não enganosas. Tanto a análise estruturada como a plana têm seus atrativos. Se não tivessem, dificilmente encontrariam expressão em duas culturas jurídicas mundialmente líderes. Apesar de simpatizar com a clareza da análise jurídica estruturada, meu primeiro propósito aqui é provar as diferenças substantivas e retóricas expressas nestes distintos...

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