Juvenicídio: a expressão da Necropolítica na morte de jovens no Brasil/Juvenicide: the expression of the necropolitics of the death of young people in Brazil.

AutorCosta, Ana Paula Motta

Introdução

Nos últimos anos, muitos jovens têm morrido no Brasil por causas externas, sejam suicídios, acidentes de trânsito ou vítimas de homicídios. Os dados sobre homicídios são objeto de preocupação específica neste artigo, na medida em que falam por si quando expostos. No Atlas da Violência 2019 (uma das fontes de dados estatais) é apresentada a taxa de homicídio de jovens de 15 a 29 anos de 2017, recorde dos últimos dez anos a contar daquele ano. Em 2017, portanto, 35.783 jovens foram assassinados no Brasil, o que significa uma taxa de 69,9 mortos por homicídio, a cada 100.000 habitantes. Homicídio, de modo mais específico, foi a causa de morte de 51,8% dos óbitos de jovens de 15 a 19 anos, o que caracteriza o maior risco de morte na adolescência (IPEA; FBSP, 2019).

O mesmo documento aponta que a taxa de mortalidade da população em geral é de 31,6 mortos por homicídio a cada 100 mil habitantes, o que significa que a taxa de mortes de jovens de 15 a 29 anos (69,9 a cada 100 mil jovens) é mais que o dobro da população em geral. Além disso, a população de jovens que morre possui características específicas: é normalmente moradora das periferias das grandes cidades, pobre, do sexo masculino e negra, ou não branca (IPEA, FBSP, 2019).

O Atlas da Violência 2020, que traz dados referentes a 2018, apresenta uma redução nos números de homicídios em geral. Isso é um dado positivo, mas ainda muito ruim e não tem um significado de tendência à diminuição, até porque as possíveis causas para a redução apresentadas no mesmo relatório não estão consolidadas como políticas públicas específicas de alguns estados e movimentações entre as organizações criminosas em especial no Norte e Nordeste do Brasil, ou, ainda, podem estar relacionadas com uma baixa na qualidade do registo dos dados (IPEA, FBSP, 2020).

De qualquer forma, 30.873 jovens foram vítimas de homicídios no ano de 2018, o que representa uma taxa de 60,4 homicídios a cada 100 mil jovens no país e 53,3% do total de homicídios naquele ano. Ainda, nesse quadro mais recente, o número de homicídios de jovens representa o maior risco de mortes na faixa etária e a população de jovem mais vulnerável a esse tipo de violência é a de negros, periféricos e vivendo nas grandes cidades (IPEA, FBSP, 2020).

A temática do homicídio de jovens não é novidade e nem é uma informação restrita ao mundo acadêmico: no noticiário nacional, com frequência, são veiculadas notícias de jovens mortos, por balas perdidas, ou por envolvimento em algum tipo de conflito bélico. Em regra, são notícias sobre adolescentes, negros e pobres que foram mortos, ilustradas com imagens de mães que choram. Em comum também se assiste que não há explicação ou responsabilização pelo crime ocorrido.

Isso não está acontecendo só no Brasil. Em outros países, em especial na América Latina, pesquisadores têm nominado o processo de morte dos jovens de "Juvenicídio", conceito que busca sintetizar um processo social complexo, com várias dimensões de explicação. No Brasil movimentos socais e outros enfoques acadêmicos têm utilizado para a descrição do fenômeno a expressão "genocídio de jovens". Sem desconsiderar o mérito do seu significado genérico de destruição de populações ou povos, opta-se aqui pelo termo Juvenicídio, primeiro porque em uma única palavra expressa o conceito de morte matada, e de quem, no caso dos jovens. Segundo, porque do ponto de vista jurídico, genocídio é um crime tipificado na Lei 2.889/56 e também previsto na Convenção para prevenção do Crime de Genocídio, da ONU de 1948, ratificada pelo Brasil em 1951 e significa, nesses documentos normativos, "a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso", com outras derivações e especificidade elencadas na Lei. A análise jurídica de tipicidade dos fatos que têm ocorrido no Brasil não é o objetivo deste artigo. Aqui, pretende-se analisar os processos de morte dos jovens desde um olhar criminológico ou sociológico e não, neste momento, realizar análise de tipicidade ou de enquadramento normativo. Deixa-se esta tarefa para outro momento.

Logo, o objetivo é analisar o processo de Juvenicídio, relacioná-lo com o conceito teórico de Necropolítica e verificar se este processo de mortes vem ocorrendo no Brasil, como uma expressão de Necropolítica. Assim, parte-se da explicitação das ideias teóricas e de origem do Juvenicídio e de Necropolítica, identifica-se os seus fundamentos, verificase as expressões contemporâneas e brasileiras de Necropolítica e, finalmente, relacionase tais conceitos com o que vem acontecendo com os jovens no território nacional.

Juvencídio e necropolítica

Juvenicídio é a condição final de um processo social mais amplo. Para compreender as mortes de jovens na América Latina é preciso visualizá-las em um cenário social mais amplo que inclui processos de precarização econômica e social, estigmatização e constituição de grupos, setores e identidades juvenis desacreditadas - fatores que implicam na constituição de corpos-territórios juvenis como âmbito privilegiado de morte (VALENZUELA, 2015).

O contexto social, econômico e cultural da sociedade contemporânea gera, para a grande maioria da população, empobrecimento e precarização, condições sociais e econômicas desfavoráveis e violações sistemáticas de Direitos Humanos. Nesse contexto, amplos setores da população são considerados supérfluos e residuais. Pessoas que, embora sejam vidas presentes, a presença não faz falta para o funcionamento social e, mais ainda, atrapalha.

A sociedade contemporânea segue seu curso, em regra, sem um rumo definido. Mas, para que siga o modelo econômico, social e cultural que é positivo para apenas uma restrita parcela da população, descarta sujeitos, não dá importância à sua eliminação, ou pior, justifica tal eliminação por alguma falha individual, propriedade dos sujeitos eliminados. Não se trata de imaginar um ente de "superpoder", que possui tais ideias e as aplica no mundo com consequências pré-definidas. Trata-se de um processo social com origem no modelo econômico neoliberal, que estruturalmente circunda o contexto específico da morte dos jovens, mas que se expressa em várias camadas de processos geradores interrelacionados.

Em específico, a morte pode ser entendida como resultado de "Necropolítica". Necro é o termo grego para "morte" e política tem sua origem na ideia grega de polis, cidade, ou cidadãos da polis. Assim, "Necropolítica" é um processo de controle dos corpos dos sujeitos, por parte da polis, de quem a governa e de seus cidadãos, com a justificativa de que sua eliminação é necessária para a vida em curso. Achille Mbembe (2018), pensador camaronês contemporâneo, descreve o processo da Necropolítica como o poder de decidir quem pode morrer e quem pode viver. Isso ocorre quando as políticas adotadas pelos governos, ou setores da sociedade com algum nível de poder, são políticas de morte. Não apenas quando os governos diretamente matam por meio de suas forças de segurança, mas também quando deixam morrer pessoas como consequência de suas ações voltadas a outros propósitos, justificadas conforme interesses que os sustentam. Deixam morrer as pessoas em situação de maior vulnerabilidade ou precariedade. É o caso de quem vive na rua, dos doentes mentais, das dependentes de drogas, das pessoas nas listas de espera dos serviços de saúde insuficientes, dos refugiados, dos emigrantes, das crianças e, entre outros, dos jovens.

Nas palavras de Achille Mbembe, Necropolítica Necropolítica é:

(...) o poder e a capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer. Por isso, matar ou deixar viver constituem os limites da soberania, seus atributos fundamentais. Ser soberano é exercer controle sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e manifestação de poder (MBEMBE, 2018, p. 5). Para a compreensão do conceito desenvolvido pelo autor é necessário buscar seus fundamentos. Assim, passar-se-á à análise do pensamento dos autores de referência de Achille Mbembe para o conceito de Necropolítica.

Fundamentos para a Necropolítica, desde Achille Mbembe

Para desenvolver o conceito de Necropolítica, Achille Mbembe parte de referenciais teóricos conhecidos e já muito trabalhados academicamente. Destaca-se entre tais referências Michel Foucault (2005), com o conceito biopolítica; Hanna Arent, em sua análise sobre o que ocorreu nos campos de concentração nazistas e as "Origens do Totalitarismo" (2012) e George Agamben, que desenvolve os conceitos de Homo Saber, como pessoas matáveis (2007) e de Estado de Exceção (2004).

Michel Foucault desenvolve sua crítica ao conceito tradicional de soberania e busca construir uma definição específica a partir da ideia de estatização do biológico. Uma mudança nos mecanismos de poder, segundo o autor, que ultrapassa a ideia antes construída por ele próprio de poder disciplinar, para uma espécie de controle sobre as massas, sobre os corpos, não mais de indivíduos dentro de instituições, mas agora de populações. Portanto, estatização do biológico (FOUCAULT, 2005).

A disciplina, enquanto técnica de poder moderno, dirige-se ao controle de indivíduos, de modo a eliminar comportamentos inadequados e, em última instância, adestrar sujeitos indesejados. O poder, nesse contexto, é diluído e microfísico, faz parte de inúmeras relações e é utilizado como um modo de manter os sujeitos úteis e adequados ao que a sociedade espera (FOUCAULT, 1995). Nesse sentido, o âmbito de atuação do soberano está em "fazer morrer e deixar viver", em última instância, controle sobre quem fugia às regras disciplinares (FOUCAULT, 2005, p. 287). Mais ao final do Século XVIII e durante o século XIX, no contexto de sociedades ocidentais em expansão demográfica e industrial, em complementação ao poder disciplinar, surgiu, conforme o autor, um outro mecanismo de poder, voltado para o controle sobre populações mais amplas. Agora, o que está em questão não é apenas lidar com a morte em sentido natural, ou...

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