A "lavagem" ou ocultação de dinheiro e de outros bens e a atividade empresarial

AutorHaroldo Malheiros Duclerc Verçosa
Páginas78-98

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1. Introdução

O fenómeno da globalização, já tão exaustivamente mencionado por todos os meios de comunicação e sobre o qual tanto se tem escrito, reflete-se no mundo do direito sob diversos aspectos. Um deles diz respeito às práticas criminosas, exercidas internacionalmente de forma organizada, operando nefastamente, entre outros campos, nos do tráfico de drogas e de armas. A

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ciência jurídica, segundo as palavras de Miguel Reale Jr., na qualidade de elemento cultural, é um dos componentes básicos dessa realidade englobante e condiciona-dora do modo de ser e de agir,1 tendo procurado atacar essa atividade perniciosa tanto no planos da prevenção, quanto no da repressão, buscando atingir tal objetivo pela adoção de leis especiais, considerando o momento presente, ímpar na história da humanidade não tanto em relação à natureza dos acontecimentos, mas, principalmente, por sua carga avassaladora.

Raul Cervini discorre sobre as razões da necessidade de uma intervenção penal nesse campo, ao lado de outros meios de combater as práticas da lavagem de dinheiro sendo indispensável construir-se uma cooperação judicial internacional para ob-ter-se eficácia no uso dos mecanismos a serem criados.2

Ainda é Reale Júnior quem afirma que a cada sociedade corresponde um tipo de direito e de crime. Para ele, existe, em cada época, uma antijuridicidade genérica, pré-normativa, como parte da atmosfera cons-tituidora do mundo circunstante, presente na consciência dos indivíduos, a qual irá presidir e inspirar todo o ordenamento jurídico.3 Parafraseando-o, quando pensamos na atividade criminosa sem fronteiras dos tempos atuais, poderíamos dizer que, em dada sociedade, a cada tipo de crime deve corresponder um tipo de direito apto a combatê-lo. Não se pode, no entanto, a pretexto de tornar eficazes as armas desse direito especial, espezinhar a ordem jurídica. Este é um dos assuntos cuja discussão se pretende abordar neste trabalho, nos seus aspectos básicos.

Na luta contra o crime internacional organizado, deveria o direito estabelecer uma estrutura apropriada, a qual não poderia brotar simplesmente da elocubração do legislador, mas apresentar-se como o resultado de uma tensão própria da árdua tarefa encetada, partindo do real, do concreto, formulando um paradigma, ou seja, um modelo de ações previsíveis.4 E é evidente que as normas em vista, como expressão do direito, devem ser estritamente jurídicas, isto é, conformadas a um sistema de pleno respeito à realização da Justiça, como ideal da sociedade nas quais se inserem e cujos objetivos válidos procuram realizar. Coloca-se, pois, o atendimento aos direitos e garantias individuais como objetivo das normas em causa, como, aliás, deve ser o alvo de todas elas, harmoniosamente construídas.

No sentido acima, ainda nos baseamos nas lições preciosas de Reale Jr. para destacar que, na qualificação de uma ação como crime, torna-se necessária a identidade entre a conduta paradigmática e a conduta concreta, ao que se acrescenta deve essa conduta ser antijurídica e culpável. Somente seria antijurídica a ação concreta realizada com conhecimento e querer um fim, querer esse fundado em uma posição axiológica do agente.5

Tendo em vista as breves considerações acima, verifica-se que, com a edição da Lei 9.613, de 3.3.98, o Brasil entrou definitivamente na relação dos países dotados de instrumentos especialmente voltados para a perseguição da lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores, direta ou indiretamente provenientes de crime - tendo a Circular BCB 2.852/99 estabelecido que as obrigações derivadas da lei em tela começariam a produzir os seus efeitos a partir de 1.3.99. Torna-se necessário verificar se a lei básica e o seu regulamento atenderam às condições de juridicidade plena, acima nomeadas.

Verifica-se, por outro lado, ao ver do legislador, baseado na experiência de ou-

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tros países, que as instituições financeiras e outras empresas que atuam em mercados específicos têm sido grandemente utilizadas como os canais preferidos para o exercício da atividade criminosa organizada internacionalmente, havendo sido criado, na mesma Lei 9.613/98, no âmbito do Ministério da Fazenda, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras - COAF, com a finalidade de disciplinar, aplicar penas administrativas, receber, examinar e identificar as ocorrências suspeitas de atividades ilícitas previstas naquela diploma legal, nos termos do seu art. 14. O estatuto do COAF, por sua vez, foi aprovado pelo Decreto 2.799, de 8.10.98.

Na busca dos objetivos previstos pela Lei 9.613/98, o Banco Central do Brasil, dentro da competência que lhe foi delegada, baixou, recentemente, dois normativos sobre o assunto:

1) a Circular 2.852, de 3.12.98, que dispõe sobre os procedimentos a serem adotados na prevenção e no combate aos crimes de lavagem de dinheiro, com a imposição de pesadíssimos ónus administrativos sobre as instituições financeiras e outras empresas dos setores afins, colocando-as como peças-chave do sistema de controle, na qualidade de auxiliares dos órgão públicos interessados; e

2) A Carta-Circular 2.826, de 4.12.98, a qual divulga extensa relação de operações e situações que podem configurar indícios de ocorrência dos crimes previstos na Lei 9.613/98, estabelecendo procedimentos para a sua comunicação ao Banco Central do Brasil.

A análise a seguir efetuada apresenta falhas e omissões compreensíveis, em vista de ter sido realizada por um modesto comercialista, que se aventurou em seara alheia, mas, assim espera, devidamente justificado pela estreita correlação entre os direitos Penal, Comercial e Económico, intrinsecamente envolvidos no tema sob exame.

2. Os crimes de "lavagem" ou ocultação de bens, direitos ou valores

A lei criou uma nova modalidade de ilícitos penais, os quais têm como característica serem derivados de outros crimes, já praticados pelo próprio ou por outro agente, anteriormente no tempo. Nesse sentido, poder-se-ia dizer que os crimes de lavagem de dinheiro são, instrumentalmente, acessórios de crimes principais, cujos ganhos são objeto de mecanismos destinados a segregá-los de sua origem, a fim de limpá-los da mancha com a qual nasceram, distanciando-os, o máximo que for possível, de suas causas geradoras. Nesse sentido, a expressão da lei corresponde a bens em geral que provenham, direta ou indiretamente, de crime (art. 1º). O termo acessórios, acima, não foi utilizado no seu sentido técnico jurídico, como se percebe, mas com ele pretendeu-se demonstrar que, para o legislador pátrio, não existem os crimes de lavagem de dinheiro, sem que, antes de sua realização, tenham ocorrido outros crimes por meio dos quais os autores adquiriram ilicitamente bens, direitos ou valores. Contudo, como tipos penais, os crimes originários e os de lavagem de dinheiro seriam inteiramente independentes, na intenção do mesmo legislador.

A interpretação acima fica confirmada pelo teor do inciso II do art. 2a, quando dispõe que o processo e o julgamento dos crimes da espécie independem do processo e julgamento dos crimes antecedentes, referidos no art. 1º, mesmo que praticados em outro país. Além disso, a pretendida independência entre os tipos penais aqui analisados infere-se também da leitura da parte final do § 1º do art. 2º, ao estabelecer a punição dos fatos previstos na lei dos crimes de lavagem de dinheiro, ainda que desconhecido ou isento de pena o autor dos ilícitos penais antecedentes.

Nas situações em que os crimes antecedentes tiverem sido praticados em país diverso, certamente haverá grande dificul-

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dade de prova do crime de lavagem de dinheiro, mesmo considerando-se a abertura dada pelo § Ia do art. 2a, que permite seja a denúncia instruída com indícios suficientes da existência do crime antecedente. Em que consistiriam esses indícios suficientes? Estará aí, certamente, um problema de interpretação extremamente complexa para os estudiosos dessa lei que, certamente, re-velar-se-á altamente controversa, em vista das bases...

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