Law of the common in Canudos/Direito do comum em Canudos.

AutorLopes, Ziel Ferreira
  1. Introducao

    A crise politica brasileira, sentida com grande intensidade nos Poderes Executivo e Legislativo, vem expondo os limites das estruturas de poder para a ampliacao da democracia. O tradicional sistema representativo, baseado essencialmente na atuacao dos partidos, tem se mostrado resistente a outras formas de participacao politica, como e o caso dos coletivos. Desse modo, novas formas de "autoridade comum" esbarram nas antigas formas de pensar as relacoes sociais e politicas. Contra isso, o Direito do Comum e um projeto politico radical, pois procura voltar-se contra a "raiz" mesma das concepcoes liberais de poder e sociedade. Christian Laval e Pierre Dardot fazem um longo esforco para tanto em Comun: ensayo sobre la revolucion em el siglo XXI (1). Mostram como a logica exclusiva do sujeito proprietario esta longe de ser universal. Laval-Dardot recuperam o conceito de Comum, exemplificam-no historicamente e reconstroem-no, para, afinal, apresentar algumas propostas de ruptura com a ordem liberal.

    A partir dessa leitura, e possivel observar como a ideia de propriedade foi concebida como uma projecao natural do sujeito, e como o Estado foi apresentado como uma projecao institucional deste. Mas vemos tambem que houve diferentes arranjos, coisas publicas que nao eram estatais e coisas privadas que nao eram particulares.

    O Brasil tornou-se um dos casos emblematicos de crise institucional neste comeco de seculo. A ocorrencia de manifestacoes populares desde 2013, o acirramento do jogo politico, os escandalos de corrupcao envolvendo partidos e grandes empresas financiadoras do sistema e financiadas por ele, remetem aum sistema fechado, que media normativamente a sociedade, mas se autonomiza em relacao a ela e passa a gerenciar suas proprias demandas.

    A organizacao autoritaria do Estado brasileiro (2), que durante a maior parte da historia republicana procurou se impor como demiurgo da sociedade--na tentativa de sufocar a atuacao dos movimentos sociais--, nao foi eliminada totalmente apos a redemocratizacao. Essa situacao e responsavel pelo deficit de cidadania ainda presente na sociedade brasileira, que, no caso, mesmo apos a redemocratizacao e a promulgacao da Constituicao de 1988, ainda encontra dificuldades para fazer com que suas reivindicacoes sejam ouvidas pelas estruturas de poder do Estado. O sistema politico se encontra blindado em relacao aos movimentos que ocorrem nas ruas, ao distanciar cada vez mais os representantes politicos das pessoas comuns (3).

    Segundo Octavio Ianni, "modernizam-se a economia e o aparelho estatal. Simultaneamente, os problemas sociais e as conquistas politicas revelam-se defasados. [...] A mesma nacao industrializada, moderna, conta com situacoes sociais, politicas e culturais desencontradas" (4). Um desencontro intencional que, ainda segundo as palavras de Ianni, pertence ao proprio modelo de modernizacao capitalista seguido pelo Brasil, que contribuiu para cristalizar o modo conservador de lidar com os conflitos sociais.

    Qual a alternativa? O apego a mera reforma desse sistema pode bloquear a imaginacao. Como visto em Laval-Dardot, a busca de alternativas hoje pode se beneficiar com releituras historicas.

    Partindo dessa hipotese, interessa retomar a genealogia do comum num episodio marcante na historia brasileira: a auto-organizacao de um vilarejo no sertao da Bahia do final seculo XIX, seu funcionamento apesar de todas as dificuldades, sua resistencia aos poderes Constituidos, e, afinal, sua repressao militar pela recemproclamada Republica.

    A Guerra de Canudos e um dos episodios mais descaracterizados das revoltas populares no Brasil. Lido a direita como "fanatismo religioso" e a esquerda como especie de rebeldia primitiva, as categorias tradicionais de analise nao lhe fazem justica. Parece haver nisso um juizo depreciativo segundo alguma escala exterior de "razao". Afinal, segundo quem tais expressoes religiosas seriam fanaticas em relacao as outras? Segundo quem seriam rebeldes? Segundo quem seriam primitivos? Falta compreender seu sentido a partir da sua propria dinamica, as fontes de integracao social, o ela que sustentou esta comunidade durante tanto tempo, em meio a tantas circunstancias adversas, com instituicoes relativamente funcionais. Eis o problema a ser enfrentado.

    Para tanto, o referencial dos common studies pode contribuir para lancar luz sobre um aspecto pouco considerado de Canudos: a dinamica de auto-gestao desses grupos, sua potencia constituinte, mais do que o simples vacuo de autoridade em que se encontravam.

    Com este objetivo, procederemos da seguinte maneira neste artigo: partimos de uma introducao aos estudos do Comum, expondo as dificuldades das instituicoes contemporaneas e o bloqueio das suas categorias tradicionais de analise frente as movimentacoes sociais (2); justificada essa abordagem do problema, especificamos nosso referencial teorico-metodologico no Direito do Comum, numa breve reconstrucao do pensamento de Christian Laval e Pierre Dardot (2.1); para mostrar a aplicacao do Comum, retomamos exemplos concretos da luta campesina citados por Laval e Dardot--mostrando bens e espacos que pertenciam a gestao comum funcional, que de repente se viram "cercados" (enclosured)--, tirando algumas conclusoes parciais sobre o Comum que orientarao nossa analise (2.1.1); feitas as cargas teoricas, expomos alguns eventos centrais da Guerra de Canudos a partir da obra de Euclides da Cunha, sem buscar novidades historiograficas, destacando apenas o que foi soterrado por outras realidades institucionais (3); para discutir os bloqueios nas leituras de Canudos, a esquerda e a direita, aproveitamos a polemica iniciada com intelectuais marxistas brasileiros sobre o livro A guerra do fim do mundo, do escritor peruano Mario Vargas Llosa (4); aberta essa brecha nos dogmatismos, discutimos uma breve alusao a Canudos feita por Antonio Negri e Giuseppe Cocco, com a visao proposta pelo Direito do Comum (5); e, por fim, costuramos todas essas pontas, nos perguntando o que o exemplo do arraial baiano tem a agregar as discussoes contemporaneas sobre a crise do Estado, "modernizacao" autoritaria e movimentacoes sociais (6). Vamos do campo teorico do Comum ao caso de Canudos, e fazemos o caminho de volta.

  2. Commom studies

    Qual o sentido de se falar em comum hoje? Nao vivemos o "fim da historia" profetizado por Fukuyama (5), em que se articulam definitivamente, sob uma economia capitalista, Estados que mediam a vida em sociedade? Temos toda a atividade politica que se poderia almejar, com sistemas representativos e algumas brechas domesticadas para participacao direta? Faltaria apenas melhorar a aplicacao desse modelo?

    Ocorre que a malha significativa que sustentava isso tudo vem mostrando rupturas. Ha varios eventos observaveis no mundo todo que qualificam a crise: as dificuldades de continuar gerindo economias de exclusao e politicas publicas de inclusao (6); as crises dos sistemas financeiros, com grandes players tendo que ser socorridos pelo Estado com dinheiro dos contribuintes; a dificuldade de coordenar esses players de modo sustentavel na exploracao de recursos escassos; o aumento das desigualdades a picos ineditos nos ultimos seculos; as dificuldades de se efetivar participacoes politicas diretas; o fechamento dos sistemas representativos nos representantes, em parcerias dos partidos com empresas (depois contratadas para prestacao de servicos publicos) que financiam campanhas eleitorais cada vez mais midiatizadas e massificadas; os desequilibrios geopoliticos, em que situacoes de dominacao local globalmente acomodadas tornam-se instaveis, afetando tabelas de precos internacionais e forcando grandes fluxos migratorios.

    Atravessando isso tudo, ha uma constante: uma forca de desestabilizacao ou ao menos de contestacao do modelo. Ela nao aparece nos termos de subjetividade politica a que estamos habituados. Nao sao eleitores, partidos, frequentemente nem sao reconhecidos como cidadaos (imigrantes ilegais), nao sao movimentos sociais com uma so sigla e uma estrutura hierarquizada. Sao muito mais "movimentacoes sociais", na expressao de Jose Bolzan de Morais (7).

    Para usar um vocabulario da Teoria Critica (8): temos visto energias sociais que fluem fora dos trilhos de um agir instrumental, de estrategias tracadas calculando custos e beneficios, meios e fins, por agentes ensimesmados, que abordam uns aos outros com enfoque objetificador. Elas fogem aos diagnosticos pessimistas da modernidade, de reificacao e alienacao da base da piramide social.

    Por outro lado, essas energias nem sempre se apresentam de uma maneira reconduzivel ao sistema de que escapam. Nem sempre podem ser canalizadas pelas vias institucionais para legitimar o Estado. Sua institucionalizacao pode mutila-las, achata-las, despotencia-las. E significativo o lost in translation aqui.

    Enfim, essas energias nem sempre poderao ser trabalhadas como racionalidades comunicativas (como quer Jurgen Habermas (9)). Nisso ainda ha uma concepcao modernizadora de sociedade. Muitas vezes elas se expressam como afetos, encontros, como vida que nao se deixa codificar.

    Negri e Hardt (10) falam numa outra subjetividade politica, a Multidao. Distinguemna da concepcao classica de "povo", um corpo politico unificado, sintetizado num supersujeito, com uma vontade propria, distinta da de seus membros, em nome da qual o soberano (e depois os representantes) legitimam suas acoes. Distinguem-na tambem da "massa", sombra moderna de um sujeito politico, sem unidade, porem uniforme, achatado, sem vontades proprias, que precisa de uma vanguarda que lhe sirva de centro nervoso e de uma estruturacao partidaria que lhe de espinha.

    Nessa linha de metaforas, a multidao nao seria um corpo politico unitario nem uniforme, mas uma carne social, um tecido vivo em pura potencia. Concretamente, ela se refere a movimentacoes sem lider nem hierarquias que se espalham pelo mundo, como as varias Occupy, as Jornadas de Junho de 2013...

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