Legalidade administrativa de carne e osso: uma reflexão diante do processo político brasileiro

AutorAndré Cyrino
Ocupação do AutorProfessor Adjunto de Direito Administrativo da UERJ - Mestre e Doutor pela UERJ - LL.M. pela Yale Law School (EUA) - Procurador do Estado do Rio de Janeiro e advogado
Páginas15-50
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Capítulo 1
LEGALIDADE ADMINISTRATIVA DE CARNE E
OSSO: UMA REFLEXÃO DIANTE DO PROCESSO
POLÍTICO BRASILEIRO
1.1. Introdução
Para o entendimento convencional do Direito
Administrativo brasileiro, o princípio da legalidade é o
repositório das mais elevadas expectativas democráticas e de
contenção do poder. Com olhar iluminista, é por meio da
legalidade que será atendida a tão sonhada e revolucionária
vontade geral1, como quis Jean-Jacques Rousseau2, e como
reverberou, no início do século XX, Raymond Carré de Malberg.3
Uma vontade, que, com o figurino oferecido por John Locke,
deve ser extraída de dentro de uma assembleia de representantes
eleitos, sendo este o locus em que os membros de uma
comunidade são unidos e combinados como um corpo vivo coeso.
Essa é a alma que dá forma, vida e unidade à comunidade: de
onde os vários membros obtêm influência, compaixão e laços”.4
Com essa inspiração, Celso Antônio Bandeira de Mello
sustenta que o princípio da legalidade: “é o antídoto natural do
1 Cfr. positivado no art. 6º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1798.
2 ROUSSEAU, Jean-Jacques. “Du Contrat Social, Ou Principes Du Droit Politique” in
Collection complète des oeuvres, Genève, vol. 1, 1780-1789. pp. 228-229.
3 M ALBERG, Raymond Carré de. La loi, expression de la volonté généra le. Paris:
Economica, 1984.
4 Tradução livre do original. LOCKE, John. Two treatises of government, cap. XIX, §
212, p. 385, versão eletrônica disponível em
http://files.libertyfund.org/files/222/0057_Bk.pdf, acesso em 13.06.2013.
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poder monocrático ou oligárquico, pois tem como raiz a ideia de
soberania popula r, de exaltaçã o da cidadania”.5 É ele, assim, o
comando destinado a “garantir que a atuação do Executivo nada
mais seja senã o a concretização desta vontade geral”.6 Por isso,
ao administrador compete garantir a aplicação da manifestação do
Poder Legislativo que é o colégio repr esentativo de todas as
tendências (inclusive minoritá rias) do corpo social”.7 É nessa
linha que Celso Antônio Bandeira de Mello defende uma
Administração Pública que se contenha sempre num agir
sublegal, infra legal, consistente na expedição de comandos
complementares à lei”.8 A lei, tendencialmente maximalista, deve
ser “o fundamento, o critério e o limite do agir administrativo”.9
Trata-se da defesa do Direito Administrativo da aplica ção da lei
de ofício.10 para usar a consagrada definição de Miguel Seabra
Fagundes.
Essa visão tradicional fracassou por várias razões, as quais
são exploradas por trabalhos importantes.11 Não é nosso intuito
revisitar esse conjunto de ideias. O objetivo deste estudo é mais
pontual. Almeja-se discutir o equívoco da visão tradicional de
uma maneira pouco frequente para o mundo do Direito
5 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo, São Paulo:
Malheiros, 27ª ed., 2010, p. 100.
6 Idem, Ibidem.
7 Idem, ibidem.
8 Idem, ibidem.
9 AMARAL, Diogo Freitas do. Curso de Direito administrativo, Vol. I, 3ª ed., Coimbra:
Almedina, 2012, p. 46.
10 FAGUNDES, Miguel Seabra. O controle dos a tos a dministrativos pelo Poder
Judiciár io, 4ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1967, pp. 16-17. V. tb.: MELLO, Celso
Antônio Bandeira de, O poder regula mentar an te o princípio da legalidade, in Revista
Trimestral de Direito Público, nº 4, 1993, p. 72.
11 BINENBOJM, Gustavo. Uma Teoria do Direito Administrativo, 3ª ed., Rio de
Janeiro: Renovar, 2013, pp. 125-136; e OTERO, Paulo. Legalidade e Administração
Pública: o sentido da vinculação administrativa à juridicidade , Coimbra: Almedina,
2003, p. 743.
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Administrativo. A proposta é a utilização das lentes da realidade
política brasileira, conforme apresentada pela profícua literatura
da ciência política descritiva.
A partir disso, será demonstrado que a doutrina
convencional superestimou as virtudes do Parlamento, olvidando-
se de que se trata de instituição formada por homens e mulheres
reais. Pessoas com incentivos, dificuldades, interesses e crenças
que, em conjunto, nem sempre funcionam como antídoto natural
contra o arbítrio e as oligarquias, mas pode se tornar, justamente,
o habitat da manutenção dessas patologias com que convivemos
há tanto tempo no Brasil. O Congresso Nacional brasileiro é
fragmentário e, certo modo, representativo de oligarquias
tradicionais que insistem em nos mostrar que esse colégio de
pessoas está longe da imagem de corpo vivo e coeso capaz de
formar uma vontade geral. Trata-se de um palco propício à ação
de grupos de interesse motivados politicamente por reeleições
que não necessariamente serão suficientes para estimular
atuações parlamentares dignas de aplausos, mas de uma
percepção cética.
Para usar uma linguagem típica do pragmatismo
jurídico12, almejamos examinar o objeto deste estudo a partir de
12 Conforme Th amy Pogrebinschi, o pragmatismo pode ser compreendido a partir de
três traços básicos. São eles: o antifundacionalismo, o contextualismo e o
consequencialismo. O antifunda cionalismo rejeita pontos de partida ou de fundação
estáticos, exigindo-se um desprendimento com o passado e com velhas teorias. Trata-
se de uma postura de desconfiança permanente. O contextualismo, por sua vez, consiste
na valorização de questões sociais, políticas, históricas, econômicas e culturais, de
modo que as proposições devem considerar o seu contexto real. Já o consequencialismo
exige que qualquer investigação volte os olhos para o futuro, antecipando eventuais
prognósticos e suas consequências futuras (v. P OGREBINSCHI, Thamy.
Pra gmatismo: teoria social e política. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2005, pp. 23-
72). Propugnando expressamente esse tipo de abordagem no Direito Administrativo
contemporâneo, v.: MENDONÇA, José Vicente Santos de. “A verdadeira mudança de
paradigmas do direito administrativo: do estilo tradicional ao novo estilo”, in Revista
de Direito Administrativo vol. 265 , 2014, pp. 179-198; e BINENBOJM, Gustavo.

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