Legalidade discriminatoria e direito a alimentacao sagrada: Discriminatory legality and the right to sacred food.

AutorBueno, Winnie De Campos

Introdução

As expressões religiosas das tradições de matriz africana (1) no Brasil experimentam um histórico de limitações e criminalizações que estão diretamente conectados com o processo de colonialismo e escravização que integram a formação socioeconómica do Estado brasileiro. Os estudos destinados a compreender as cosmologias, liturgias e gênese das tradições de matriz africana encontram-se quase que na sua totalidade nas áreas das Ciências Humanas, principalmente na Antropologia, Sociologia e História. Contudo, analisar essas tradições a partir de uma perspectiva das Ciências Jurídicas visando apresentar as formas com que essas comunidades (2) foram e ainda são criminalizadas e limitadas no exercício de direitos é fundamental para compreender um fenômeno que tem adquirido cada vez mais força no campo jurídico: a judicialização do racismo religioso (3)

Especialmente após a Constituição de 1988 e de uma série de decisões do STF que reconheceram direitos específicos para negros e negras, torna-se cada vez mais improvável encontrar leis e projetos de lei que se proponham a criminalizar ou discriminar aberta e explicitamente determinados grupos e suas práticas religiosas. Por mais paradoxal que isso possa soar, a maior parte de práticas discriminatórias tenderá a ser levada adiante ao menos sob a aparência de legalidade, ou seja, com fundamento em textos de lei, a princípio, constitucionais. E este não é um fenómeno novo, a despeito de ter sido pouco estudado: regimes autoritários, a começar do nazismo, e práticas autárquicas dos mais diferentes matizes têm se valido, para usar a expressão de um importante historiador do direito, de "máscaras constitucionais" (DIPPEL, 2007, p. 18) ou "máscaras legais" para se efetivar.

Raramente o poder tem se apresentado nu; um poder sem mais nada, que prescinda da gramática do direito, ou seja, que abdique de fazer referência a uma norma que o legitime, seja ela de direito público ou de direito privado, ou seja, nascida de obrigações e contratos privados (GUNTHER, 2003). Já vai longe o tempo em que era possível encontrar juízes como Lord Justice Farwell e Lord Justice Kennedy capazes de negar abertamente o direito ao habeas corpus aos habitantes das colónias inglesas diante do receio de que estes, em maior número, terminassem por eliminar os brancos (NEUMANN, 2014, p. 36-37).

Por isso mesmo, identificar hoje situações de discriminação irá significar, muitas vezes, examinar e avaliar textos legais aparentemente de acordo com a Constituição e com as demais normas de mesma hierarquia. Não há espaço para desenvolver todo a arcabouço teórico que justifica esta construção aqui (v. RODRIGUEZ, 2016a e 2016b), mas para os fins deste texto, chamaremos de "legalidade discriminatória" (4) a estratégia de discriminação que faz produzir textos legais que estatuem permissões e proibições abstratas e gerais, as quais sequer fazem referência expressa aos problemas e práticas os quais elas terminam, de fato, por regular e de forma discriminatória. Neste caso específico, como será visto a seguir, ao invés de produzir uma norma que ataque frontalmente as práticas religiosas de matriz africana, procura-se criar uma norma que, por exemplo, ao proibir o sacrifício de animais em nome da saúde pública ou da defesa do meio ambiente, atinge o coração de tais práticas a ponto de as inviabilizar.

A legalidade discriminatória opera nesse caso no desenho da perseguição religiosa, uma ação do Estado ou de seus agentes na perpetração do racismo religioso. A identificação de um caso de "legalidade discriminatória", diga-se, é resultado de um ato de intepretação do contexto e do teor de uma determinada maneira de regular um problema social. O material utilizado para este fim consiste naqueles documentos por meio dos quais o problema social e a sua regulação podem ser conhecidos por uma pessoa estudiosa do Direito, a saber, a legislação pertinente, seus protagonistas - as pessoas que propuseram a legislação - e as pessoas afetadas pelos textos legais em suas ações no campo do Direito. Neste caso específico, a identificação do fenómeno decorre do simples exame do teor das normas e de seu contexto de aplicação. Explicamos.

Uma norma que afirme "são proibidos sacrifícios animais no território X", se aprovada e efetivada pelas autoridades competentes, impedirá, objetivamente, a realização de rituais em que haja sacrifícios de animais, posto que praticar tais rituais significaria praticar ato ilícito. A menos que uma pessoa juíza, em um caso concreto examinado pelo Judiciário, considere que é possível excepcioná-la. Seja como for, o simples exame do texto legal e de sua tramitação, caso não leve em conta a liberdade de religião dos praticantes das religiões afro-brasileiras, já permite afirmar seu potencial efeito discriminatório.

Em sua formulação mesma, o texto legal pode ser classificado como discriminatório por não excepcionar as práticas religiosas de matriz africana. Afinal, como será mostrado a seguir, não é razoável, a esta altura da História do Brasil, imaginar que uma pessoa que viva neste país ignore que existam certas práticas religiosas no Brasil que incluem o sacrifício de animais, que estas práticas sejam de origem africana e que haja um histórico de repressão e perseguição em relação a elas. Ainda mais em se tratando de parlamentares, pessoas envolvidas diretamente com a questão, na linha de frente do processo político, em contato com agentes sociais em conflito e com as autoridades responsáveis por executar as leis que irão votar e auxiliados por assessorias em seus Gabinetes e da própria casa Legislativa. Mais ainda, em se tratando de uma instituição, a qual fala uma voz uníssona ao aprovar um texto legal e pode ser avaliada por esta voz, que tem o dever constitucional de proteger as minorias políticas e respeitar a liberdade de religião.

Para pensar de maneira analógica, a partir de um caso hipotético, vamos tomar a seguinte norma "todas as pessoas voluntárias no trabalho de mutirão terão direito a um almoço que consistirá em arroz, feijão e carne". Neste caso, é evidente, a norma não leva em conta a eventual existência de pessoas vegetarianas e veganas, ou seja, pessoas que não se alimentam de carne. E o efeito desta norma, caso efetivada pelas pessoas responsáveis, será oferecer para determinadas pessoas uma alimentação inadequada, pobre nos nutrientes necessários para que elas sigam trabalhando, afinal, elas estarão impedidas de comer a refeição inteira. Pior do que isso, uma alimentação que viola a sua liberdade individual, sua liberdade de consciência de se alimentar como quiser.

Neste caso, e por isso que ele é útil a nosso argumento nesse texto, pode-se afirmar que a existência de tantas pessoas veganas e vegetarianas é um fenómeno relativamente recente. De fato, a partir de uma avaliação de senso comum, não era tão usual encontrar pessoas com estes hábitos alimentares há dez ou quinze anos atrás. Dessa forma, portanto, alguém poderia afirmar que não houve intenção de discriminação, apenas esquecimento ou ignorância do fato, o que não elide o efeito discriminatório objetivo da norma e a possibilidade de alegar, inclusive judicialmente, que ocorreu um caso de discriminação, tendo em vista o contexto social atual. Não seria razoável que uma entidade que, ainda por cima, está se beneficiando do trabalho voluntário das pessoas, deixar de considera-las em sua diversidade de hábitos alimentares caso decida oferecer-lhes o almoço.

Justamente para demonstrar a ocorrência da referida legalidade discriminatória, este artigo será dividido em três partes. Primeiramente procuramos desconstruir uma ideia homogeneizada sobre as expressões religiosas das tradições de matriz africana, discorrendo brevemente sobre os candomblés, os batuques e as umbandas em perspectiva histórica e sociológica. Abordar as particularidades das expressões religiosas das tradições de matriz africana pode parecer um esforço teórico pouco relevante para o campo do Direito, porém ele é necessário, uma vez que segue vigente uma ideia de religiosidade que suprime as práticas religiosas que não estão em conformidade com pressupostos culturais europeus(NASCIMENTO, 2017) No decorrer dos estudos sobre os conflitos jurídicos experimentados pelas expressões religiosas de matriz africana (5) ficou evidente que não é incomum a existência de publicações em periódicos de grande prestígio em que prevalece um reducionismo do que sejam essas religiosidades, destacadamente quando o tema abordado é a questão da alimentação sagrada que integra os pressupostos civilizatórios de alguns destes cultos. A ideia estabelecida a partir dos observadores externos de que "tudo é macumba" precisa ser desarticulada, principalmente quando mobilizada numa perspectiva de "ataque" (6) e perseguições à essas tradições, algo que se pode perceber, justamente, pelo exame do contexto brasileiro desta perspectiva.

No segundo momento apresentamos aspectos das supressões e limitações do livre exercício da expressão religiosa que impactam essas coletividades no que diz respeito a legitimação de sua presença na esfera pública (GIUMBELLI,2008). Na terceira parte discorremos sobre as estratégias de resistência organizadas por estas tradições religiosas, principalmente aquelas que se propõe a enfrentar a legalidade discriminatória mobilizada pelos membros do legislativo visando a edição de leis que em última análise eliminam a possibilidade do exercício da alimentação de cunho sagrado que integra as cosmologias dessas expressões religiosas, especialmente no que tange os candomblés e os batuques.

  1. A diáspora africana (7) e a conformação religiosa de pressupostos civilizatórios que vieram de além-mar.

    As tradições religiosas de matriz africana no território brasileiro são reflexo de um processo de resistência sociocultural e identitária da população negra-africana escravizada e seus descendentes.

    [...] pelas condições históricas em que se acharam, as religiões...

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