Legitimidade, pluralismo e governamentalidade na juridicização da saúde

AutorFelipe Dutra Asensi
Páginas135-182
O direito à saúde no Brasil, mesmo após duas décadas de sua universalização e
adoção de princípios constitucionais basilares, ainda enfrenta diversos desa os
de diversas naturezas no âmbito de sua efetivação, os quais remetem a uma série
de fatores sociais, estruturais, políticos, culturais etc. Os desa os e debates sobre
a garantia de tal direito não se encontram esgotados, abrindo espaço para novas
concepções, sentidos, investigações e re exões sobre a forma por meio da qual
se pode torná -lo efetivo.
Principalmente num contexto de ampliação de instituições e práticas de-
mocráticas no Brasil, o surgimento de novos atores implicados diretamente no
processo de efetivação do direito à saúde complexi ca as suas estratégias e li-
mites. Dentre as mais variadas dessas instituições e suas práticas correlatas, é
possível destacar a valorização do poder  scalizador e executor dos Conselhos
de Saúde, que são instituições decisivas na incorporação de demandas sociais
nas políticas públicas. Articulando -se aos Conselhos, os próprios usuários do
sistema de saúde reforçaram suas associações para a efetivação do direito, ga-
nhando relevo o surgimento de núcleos associativos de portadores de HIV, cân-
cer, doenças renais etc.
Uma outra prática democrática se refere à recon guração das funções e
poderes das instituições jurídicas: o Judiciário passou a exercer papel decisivo
na resolução de con itos, em particular na saúde, e na de nição de políticas
públicas em geral, o que vem ensejando a judicialização da política e das relações
sociais. É possível atribuir a essa relevância institucional alguns elementos, den-
tre os quais se destacam:
a) a ampliação da possibilidade de controle de constitucionalidade exerci-
do pelo Judiciário por meio da via concentrada (ex.: ação direta de inconstitu-
cionalidade, ação declaratória de constitucionalidade, ação de descumprimento
de preceito fundamental etc.) e pela via difusa (por meio incidentes processuais
a serem julgados por de juízes monocráticos e tribunais);
CAPÍTULO IV
Legitimidade, pluralismo e governamentalidade na juridicização da saúde
136 INDO ALÉM DA JUDICIALIZAÇÃO: O MINISTÉRIO PÚBLICO E A SAÚDE NO BRASIL
b) a intensi cação dos mecanismos e estratégias de ampliação do acesso à
justiça (ex.: Juizados Especiais Cíveis e Criminais, Justiça Itinerante, Defensoria
Pública etc.);
c) o incremento do poder político que as associações de magistrados pas-
saram a exercer no contexto brasileiro de efetivação de direitos, principalmente
por meio de manifestos e estratégias de pressão (ex.: Associação dos Juízes Fe-
derais do Brasil, Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho,
Associação dos Magistrados Brasileiros etc.).
Tais fatores permitem reconhecer um reforço do papel institucional do Ju-
diciário em tornar os direitos expressos formalmente em efetivamente exercidos
pelos seus titulares.
Além disso, no âmbito do direito, outras instituições foram alçadas ao
papel de defensoras da sociedade, com especial destaque para o Ministério
Público, o que ensejou, conforme os argumentos expostos no capítulo an-
terior, a juridicização da política e das relações sociais. A experiência de Porto
Alegre indica que a principal estratégia de atuação do MP é a extrajudiciali-
dade. Com isso, observa -se que as relações sociais podem sofrer muito mais
uma juridicização (con itos que não são levados ao Judiciário, mas que são
discutidos sob o ponto de vista jurídico, principalmente em momentos pré-
-processuais pelo MP) do que uma judicialização (con itos que são levados
ao Judiciário na forma de ação civil pública ou algum outro instrumento
processual).
Como visto, no âmbito dessas novas esferas estatais, sobretudo na saúde,
a juridicização desenvolvida pelo Ministério Público desempenha papel funda-
mental pelo menos em cinco dimensões:
a) na ênfase da ideia de consenso pelo diálogo, ou seja, a valorização do pro-
cesso de negociação, pactuação e concessão recíproca entre os diversos atores
cujo resultado é construído consensualmente;
b) a tentativa de estabelecer estratégias de execução pró -ativa de políticas
públicas, de modo a consolidar recursos, diretrizes e compromissos a serem
implementados num dado tempo pactuado;
c) a incorporação da sociedade civil como pressuposto para a formulação
de consensos que sejam efetivamente plurais;
d) a pluralidade de atores e instituições no processo de interpretação cons-
titucional, que não se restringe somente à interpretação o cial, geral ou abstrata
de um tribunal;
LEGITIMIDADE, PLURALISMO E GOVERNAMENTALIDADE NA JURIDICIZAÇÃO DA SAÚDE 137
e) a constituição de um cenário que busca, por princípio, considerar as es-
peci cidades dos contextos em que as demandas estão inseridas para estabelecer
estratégias mais efetivas para a satisfação de tais demandas.
Diante da con guração constitucional delineada no Brasil, o MP passou a
atuar como um agente que também interfere na produção,  scalização e execu-
ção das políticas públicas em saúde. Como visto no capítulo anterior, em Porto
Alegre, o MP exerce papel fundamental na consolidação de práticas democráti-
cas por meio de uma perspectiva dialógica, o que reforça sua proeminência na
de nição das ações em saúde.
Com a Carta Constitucional de 1988 e as normas que lhes são posteriores,
a saúde recebeu, dentre outros elementos,:
a) múltiplas dimensões do ponto de vista de seu conteúdo (ex.: individual,
social, de cidadania etc.);
b) regras e princípios especí cos de sua estruturação (ex.: Lei 8080/90, Lei
8142/90, Normas Operacionais Básicas etc.);
c) um arcabouço jurídico -institucional relevante para sua efetivação (ex.:
formas de participação social, regras de distribuição de recursos etc.).
Nesse contexto, o estabelecimento de estratégias para a garantia e efetiva-
ção do direito à saúde passou a exigir a compreensão da própria especi cidade
deste direito no ordenamento jurídico brasileiro, que se irradia sob múltiplos
aspectos. Associados à ampliação do papel das instituições jurídicas, os proces-
sos de efetivação do direito à saúde têm ensejado discussões sobre:
a) o que seria legítimo enquanto demanda em saúde ou, mais especi ca-
mente, o que seria legítimo pleitear enquanto direito à saúde de todos e dever
do Estado;
b) os pressupostos sociais e políticos para a con guração dos sentidos do
direito à saúde que extrapolem o sentido o cial estatal;
c) diante da existência de uma pluralidade de direitos sociais que exigem
a prestação positiva do Estado, o enfrentamento dos desa os acerca do aporte
de recursos econômicos para sua plena efetivação, o que amplia as práticas de
governar direitos.
A  m sobre re etir sobre tais questões, proceder -se -á nas próximas páginas
uma discussão sobre:
a) a perspectiva habermasiana acerca da legitimidade do direito;
b) a análise da perspectiva pluralista do direito;

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