Ministério Público e juridicização das relações sociais

AutorFelipe Dutra Asensi
Páginas63-98
2.1. O Ministério Público e sua singularidade no Brasil
O direito à saúde, enquanto direito fundamental, se insere na categoria dos
chamados direitos de titularidade difusa e coletiva30. Em virtude da natureza
destes direitos, no Brasil se consolidou o que se comumente denomina de
litigância de interesse público31, que comporta a ideia de que os direitos não se
restringem às meras partes individuais, na medida em que são de titularidade
de grupos e coletividades. Em linhas gerais, Ingo Sarlet sustenta que tais di-
reitos “trazem como nota distintiva o fato de se desprenderem, em princípio,
da  gura do homem -indivíduo, como seu titular, destinando -se à proteção
de grupos humanos (família, povo, nação)” (Sarlet, 2001, p. 52). São, assim,
novas facetas do princípio da dignidade da pessoa humana, que traduz a ideia
de que “o Estado existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já
que o homem constitui a  nalidade precípua, e não meio da atividade estatal”
(Idem, p. 103). Logo, para além dos direitos individuais, existem direitos que
dizem respeito à humanidade, ao grupo como um todo, a uma coletividade.
O ordenamento jurídico brasileiro estabeleceu diversos atores estatais e não-
-estatais com possibilidade de atuar na efetivação destes direitos. Dentre os
principais atores que atuam nesta concretização, recebem destaque o Poder
Judiciário e, principalmente, as instituições que compõem as denominadas
funções essenciais da justiça.
30 Os direitos coletivos e difusos são metaindividuais porque atingem grupos que têm algo em comum, e não
pertencem a uma pessoa isolada, nem a um grupo delimitado de pessoas. O direito ao meio ambiente,
por exemplo, é um direito desta natureza, pois não diz respeito a uma pessoa singular ou a um grupo
especí co, mas a toda a humanidade, sob pena de ser visto como um privilégio. Há, ainda, a presença
no ordenamento jurídico de direitos individuais indisponíveis, que existem desde a constituição da per-
sonalidade humana, sendo seus titulares identi cáveis uma vez pertencentes a uma coletividade. Mais
precisamente, são direitos individuais, mas não podem ser renunciados pelo seu titular, como o direito à
vida e o direito à dignidade.
31 Para uma análise minuciosa do panorama de litigância de interesse público no Brasil, com foco especial na
atuação do Ministério Público, ver Rogério Arantes (2002), Eduardo Ritt (2002) e Cássio Casagrande
(2008).
CAPÍTULO II
Ministério Público e juridicização das relações sociais
64 INDO ALÉM DA JUDICIALIZAÇÃO: O MINISTÉRIO PÚBLICO E A SAÚDE NO BRASIL
No Poder Judiciário — que é a instituição estatal responsável pela ativida-
de jurisdicional de resolução de con itos — reina a máxima latina nemo iudex
sine actore, ou seja, não há juiz sem autor. Essa máxima evidencia que o Judici-
ário somente pode agir para a concretização de direitos mediante provocação
de quem se sentir lesado pela ação ou omissão de outrem, de modo a adotar
uma postura estática enquanto não for chamado à resolução de um litígio. O
ordenamento jurídico brasileiro possui princípios que reforçam esta perspectiva
e traduzem garantias para a inércia judicial, a exemplo do princípio do juiz
natural32 e o princípio da inércia da jurisdição ou do impulso o cial33. Ambos
remetem à ideia de um poder estático que só age quando for chamado ao litígio
por meio de provocação das partes.
Com isso, foram construídas instituições dinâmicas para a garantia de di-
reitos que não se submetem a uma perspectiva estática ou condicionada à pro-
vocação, na medida em que podem agir de maneira espontânea. Tais institui-
ções compõem as chamadas funções essenciais da justiça, que consistem naquelas
“atividades pro ssionais públicas ou privadas, sem as quais o Poder Judiciário
não pode funcionar ou funcionará muito mal” (Silva, 1993, p. 506) em virtude
de sua atuação juridicamente estática. Estas funções, tais como a Advocacia
Pública e a Defensoria Pública34, encontram -se descritas nos artigos 127 a 135
da Constituição de 1988, recebendo destaque a presença os princípios atinentes
ao Ministério Público.
Em linhas gerais, o MP é uma instituição dinâmica de garantia e efetiva-
ção de direitos, haja vista não precisar ser provocado para atuar em prol de sua
32 O princípio do juiz natural — expressamente previsto no art. 5º, XXXVII e LIII da CRFB — tem como
conteúdo não apenas a prévia de nição do órgão investido de poder jurisdicional de decisão sobre a
causa (vedação aos tribunais de exceção, por exemplo), mas também a própria garantia de justiça ma-
terial, isto é, a independência e a imparcialidade dos juízes (impossibilidade de escolher o juiz ao qual
será distribuída a ação, por exemplo). Os referidos dispositivos jurídicos versam o seguinte: “Art. 5º:
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo -se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança
e à propriedade, nos termos seguintes: (...) XXXVIII — não haverá juízo ou tribunal de exceção (...);
LIII — ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente” (Brasil, 1988).
33 O princípio da inércia da jurisdição — expressamente previsto no art. 2º do Código de Processo Civil
— determina que o início do processo, em regra, seja somente por iniciativa das partes. Assim, faz -se ne-
cessária a petição inicial, que é o documento pelo qual o autor invoca a prestação jurisdicional e, a partir
disso, o processo é regido por meio do impulso o cial provocado pelas partes no órgão jurisdicional. O
referido dispositivo jurídico versa o seguinte: “Art. 2o Nenhum juiz prestará a tutela jurisdicional senão
quando a parte ou o interessado a requerer, nos casos e forma legais” (Brasil, 1973).
34 A Defensoria Pública consiste num serviço de assistência judiciária que visa possibilitar o acesso de
hipossu cientes (pessoas menos favorecidas  nanceiramente) aos seus direitos. Presta, assim, serviços de
assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovem insu ciência de recursos. Logo, as demandas
da Defensoria Pública são de caráter individual, ao passo que as demandas do Ministério Público dizem
respeito a um grupo determinado ou indeterminado de pessoas, ganhando caracteres coletivos.
MINISTÉRIO PÚBLICO E JURIDICIZAÇÃO DAS RELAÇÕES SOCIAIS 65
concretização. Principalmente em relação aos direitos prestacionais, isto é, di-
reitos que exigem a atuação do Estado para concretizá -los por meio de políticas
públicas, a possibilidade de agir independentemente de provocação possibilitou
ao MP ocupar um espaço singular no plano da efetivação de direitos. No caso
da saúde, a título de exemplo, a falta de medicamentos nos postos, a insu ciên-
cia de leitos nos hospitais, os custos dos tratamentos de alta complexidade e
as de ciências nas políticas públicas se constituem como desa os e problemas
sensíveis. Tais problemas, em virtude de sua forte associação ao direito à vida,
primam por soluções céleres, o que amplia a relevância da atuação do Ministé-
rio Público nessa seara.
No Brasil, o MP recebeu um per l distinto não só em relação ao regime
constitucional anterior, mas também em relação a qualquer con guração cons-
titucional já existente. O novo arranjo criado em 1988 permitiu uma nova
con guração das instituições jurídicas e das competências e atribuições que lhes
seriam inerentes para a efetivação de direitos. Nesse contexto, o MP passou a
exercer papel central na defesa da sociedade, sobretudo no que concerne aos
direitos sociais35.
Diante dessas mudanças, o papel que foi atribuído ao MP também passou
a se diferenciar da atuação do Judiciário, na medida em que o Ministério Pú-
blico, segundo Celso Bastos, tem “ sua razão de ser na necessidade de ativar o
Poder Judiciário, em pontos em que este remanesceria inerte porque o interes-
se agredido não diz respeito a pessoas determinadas, mas a toda coletividade”
(Bastos, 1996, p. 123). Entretanto, a diferenciação de funções não ensejou uma
diferenciação das garantias jurídicas que foram atribuídas a ambos. A despeito
de serem instituições com estratégias e possibilidades de ação distintas, os seus
membros possuem as mesmas garantias institucionais que possibilitam uma
atuação mais independente de ambos na efetivação de direitos. Na análise de
Cássio Casagrande,
a independência conferida pela Assembleia Nacional Constituinte ao Judi-
ciário e ao Ministério Público foi o resultado da necessidade de, após anos de
arbítrio, se con ar a estes órgãos a tutela das liberdades públicas e dos direitos
fundamentais, já que no regime autoritário muitas vezes os juízes não pude-
ram garantir os direitos civis justamente pela falta de independência, tendo o
Ministério Público, não raro, atuado como instituição garantidora da e cá-
cia das normas que sustentavam o regime militar (Casagrande, 2008, p. 56)
35 A Advocacia Geral da União, por sua vez, foi destinada para a defesa do Estado federal, ao passo que a
defesa das Unidades da Federação coube às Procuradorias dos Estados e a assistência judicial aos necessi-
tados às Defensorias Públicas.

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