A lei de anistia e os tribunais internacionais
Autor | Michael Procopio Ribeiro Alves Avelar |
Cargo | Juiz federal, mestrando em direito penal pela USP |
Páginas | 106-125 |
106 REVISTA BONIJURIS I ANO 34 I EDIÇÃO 674 I FEV/MAR 2022
DOUTRINA JURÍDICA
Michael Procopio Ribeiro Alves Avelar JUIZ FEDERAL, MESTRANDO EM DIREITO PENAL
PELA USP
A LEI DE ANISTIA E OS
TRIBUNAIS INTERNACIONAIS
EM CASOS GRAVES DE VIOLAÇÕES AOS DIREITOS HUMANOS,
É IMPRESCINDÍVEL OBSERVAR A JURISPRUDÊNCIA DA CORTE
INTERAMERICANA. ISSO EVITA A MANIPULAÇÃO
Humanos sobre o tema, por ser a interpretação
que deve prevalecer nos países que integram o
sistema regional acerca da proteção internacio-
nal de direitos humanos.
Reconhecida a interpretação da Corte Inte-
ramericana como autêntica e de natureza vin-
culante, a obrigação dos Estados de cumpri-la
não impede a investigação sobre os efeitos que
as decisões dessa corte têm sobre o direito pe-
nal e o direito processual penal. Por isso, inte-
ressa debater a jurisprudência sobre as leis de
anistia sob o ponto de vista da irretroativida-
de das leis e das interpretações desfavoráveis
ao réu, em matéria penal, da coisa julgada e do
princípio do ne bis in idem, como garantias do
processo penal.
Pode-se partir, então, para a análise de um
possível viés punitivista da jurisprudência
internacional de direitos humanos e as conse-
quências que essa posição pode ter para a pro-
teção de direitos humanos como um todo. O
intuito é buscar uma análise crítica sobre even-
tuais fl exibilizações de direitos para proteção
de outros, sem prejuízo do reconhecimento da
inderrogabilidade das decisões da Corte no sis-
tema regional de proteção de direitos humanos.
Na América Latina foram aprovadas di-
versas leis de anistia em razão de ter
havido violações de direitos humanos
em períodos ditatoriais, causando um
problema no âmbito do direito inter-
nacional dos direitos humanos, pois essas leis
eximem a responsabilidade de atos que con-
fi guram crimes contra a humanidade e fragi-
lizam a proteção aos direitos das vítimas e de
seus familiares, que não veem seus agressores
punidos e muitas vezes não têm acesso às in-
formações sobre o que efetivamente aconteceu.
Há casos em que fora negado até mesmo relatar
o paradeiro dos corpos, impedindo que as famí-
lias pudessem dar um fi m digno aos restos mor-
tais de seus entes.
Questiona-se, no âmbito da justiça de tran-
sição, se a anistia é um modelo efi caz de lidar
com esses casos, especialmente no período de
redemocratização do país, ou se, ao contrário,
representa um obstáculo à responsabilização
dos envolvidos e à prevenção de novas viola-
ções em um futuro próximo. Apesar do ques-
tionamento teórico sobre os modelos de justiça
de transição, é fundamental analisar a juris-
prudência da Corte Interamericana de Direitos
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1. ANISTIA – ORIGENS E FUNDAMENTO
A anistia representa uma renúncia ao exercício
do poder de punir uma pessoa que praticou in-
fração penal, extinguindo sua punibilidade. É o
perdão estatal a alguém que praticou um delito
por razões eminentemente políticas. Está pre-
vista na Constituição da República Federativa
do Brasil, em seu art. 21, , como competên-
cia da União. Já o art. 48, , explicita melhor a
matéria ao prever a concessão de anistia entre
as atribuições do Congresso Nacional.
Não há, na história do direito ou no direito
comparado, uniformidade terminológica sobre
os institutos que extinguem a pena por ato po-
lítico ou, como se costuma dizer, por clemência
estatal. O termo “graça” já foi usado de forma am-
pla quanto aos atos de perdão da pena imposta
a um criminoso. Há registro de a graça ter sido
prerrogativa soberana nunca contestada aos go-
vernantes, de modo que seria considerada, para
Ladislau Thot, quase contemporânea da própria
sanção penal (C F, 1944).
Aloysio de Carvalho Filho (1944) associa suas
origens ao direito de asilo, como prerrogativa
reconhecida ao soberano, seja derivada de seu
poder de perdoar os crimes de lesa-pátria, seja
em razão de que, com base em seu poder su-
premo, todos os demais direitos se originavam
e eram, por ele, limitados. Ambos os institutos
possuem em comum, para o jurista, uma ex-
pressão de indulgência (C F, 1944).
Prosseguindo em sua análise, Carvalho Filho
(1944) menciona a adoção do privilégio da graça
pelos romanos, que tem muitas variações, mas
sempre representou um ato de indulgência a
quem houvesse transgredido a lei. Na fase da
república, o autor assinala como exemplos a ius
provocationis ad populum, a possibilidade de se
recorrer ao povo em caso de imposição da pena
capital; a intercessio, apelo para que os tribunos
da plebe exercessem a misericórdia; e a institui-
ção jurídica que se aproxima da atual anistia,
consistente na abolitio publica, que representa-
va uma medida política, de competência do Se -
nado, tomada por interesses estatais ou a título
de celebração de divindades.
Carvalho Filho (1944) defende, entretanto,
que no período imperial, com a lex oblivio sur-
giu um instituto ainda mais próximo da atual
anistia, com a possibilidade de um perdão geral,
comum em início de período governamental
como medida popular de obtenção de simpatia
do povo, ou mesmo de fi nal do governo, um le-
gado para marcar o reinado que se encerrava.
Franz Von Liszt, tratando da graça nesse
mesmo sentido bastante alargado, defi ne-a
A anistia representa uma renúncia ao exercício do poder de punir uma pessoa
que praticou infração penal, extinguindo sua punibilidade. É o perdão estatal
a alguém que praticou um delito por razões eminentemente políticas
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1. ANISTIA – ORIGENS E FUNDAMENTO
A anistia representa uma renúncia ao exercício
do poder de punir uma pessoa que praticou in-
fração penal, extinguindo sua punibilidade. É o
perdão estatal a alguém que praticou um delito
por razões eminentemente políticas. Está pre-
vista na Constituição da República Federativa
do Brasil, em seu art. 21, , como competên-
cia da União. Já o art. 48, , explicita melhor a
matéria ao prever a concessão de anistia entre
as atribuições do Congresso Nacional.
Não há, na história do direito ou no direito
comparado, uniformidade terminológica sobre
os institutos que extinguem a pena por ato po-
lítico ou, como se costuma dizer, por clemência
estatal. O termo “graça” já foi usado de forma am-
pla quanto aos atos de perdão da pena imposta
a um criminoso. Há registro de a graça ter sido
prerrogativa soberana nunca contestada aos go-
vernantes, de modo que seria considerada, para
Ladislau Thot, quase contemporânea da própria
sanção penal (C F, 1944).
Aloysio de Carvalho Filho (1944) associa suas
origens ao direito de asilo, como prerrogativa
reconhecida ao soberano, seja derivada de seu
poder de perdoar os crimes de lesa-pátria, seja
em razão de que, com base em seu poder su-
premo, todos os demais direitos se originavam
e eram, por ele, limitados. Ambos os institutos
possuem em comum, para o jurista, uma ex-
pressão de indulgência (C F, 1944).
Prosseguindo em sua análise, Carvalho Filho
(1944) menciona a adoção do privilégio da graça
pelos romanos, que tem muitas variações, mas
sempre representou um ato de indulgência a
quem houvesse transgredido a lei. Na fase da
república, o autor assinala como exemplos a ius
provocationis ad populum, a possibilidade de se
recorrer ao povo em caso de imposição da pena
capital; a intercessio, apelo para que os tribunos
da plebe exercessem a misericórdia; e a institui-
ção jurídica que se aproxima da atual anistia,
consistente na abolitio publica, que representa-
va uma medida política, de competência do Se -
nado, tomada por interesses estatais ou a título
de celebração de divindades.
Carvalho Filho (1944) defende, entretanto,
que no período imperial, com a lex oblivio sur-
giu um instituto ainda mais próximo da atual
anistia, com a possibilidade de um perdão geral,
comum em início de período governamental
como medida popular de obtenção de simpatia
do povo, ou mesmo de fi nal do governo, um le-
gado para marcar o reinado que se encerrava.
Franz Von Liszt, tratando da graça nesse
mesmo sentido bastante alargado, defi ne-a
A anistia representa uma renúncia ao exercício do poder de punir uma pessoa
que praticou infração penal, extinguindo sua punibilidade. É o perdão estatal
a alguém que praticou um delito por razões eminentemente políticas
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