Aplicação do art. 27 da Lei N. 9.868/1999 no controle difuso de constitucionalidade

AutorVanessa Vilela Berbel
CargoGraduada pela Universidade Estadual de Londrina - UEL
Páginas208-218

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1. Delimitação do tema

O sistema jurídico pátrio prevê a convivência entre dois modelos de controle de constitucionalidade: (i) o "americano" e (ii) o "europeu". O modelo "americano" ou controle difuso, autoriza a apreciação da constitucionalidade da norma pela judicatura ordinária; já o modelo "europeu", ou controle de constitucionalidade concentrado, atribui competência para a averiguação de constitucionalidade a um único órgão jurisdicional especializado.

A convivência entre estes dois modelos depende da harmonia entre os juízos proferidos por todos os legitimados, de molde a não comprometer o valor mais caro deste sistema, qual seja, a segurança jurídica.

Ocorre que a Constituição Federal, como carta política que é, encontra-se permeada de termos vagos e ambíguos; esta amplitude semântica é necessária à sua atualização, permitindo a permeabilidade das mudanças sociais. Assim, cumpre aos aplicadores do direito o compromisso de fixar o conteúdo semântico de seus termos e aplicá-los à legislação infraconstitucio-nal.

Além da amplitude semântica, os signos empregados no texto constitucional estão carreados de conteúdos ideológicos, impedindo a formação de um consenso. Daí a importância da técnica consagrada no art. 27 da Lei n. 9.869/1999, mormente ao controle difuso.

O tema em comento possui ampla aceitação doutrinária e vem sendo recepcionado pelo Supremo Tribunal Federal, que por reiteradas vezes se manifestou a favor da modulação de efeitos nas declarações de inconstitucionalidade no controle de constitucionalidade pela via incidental.1

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2. Análise semiótica da norma jurídica

Norma jurídica, como tantos outros termos jurídicos, é usualmente utilizada de forma diversa pelos doutrinadores; ora como texto de lei, ora como o juízo construído a partir deste suporte físico. Não há consenso doutrinário, como sói ocorrer com a maioria dos conceitos pertencentes à Teoria Geral do Direito.

Neste passo, a semiótica empresta ao Direito critérios objetivos capazes de fixar um conceito próprio de norma jurídica, dando solidez à construção do trabalho científico, ao se estabelecer qual o nível lingüístico a ser empregado pelo ente cog-noscente.

Enquanto teoria dos signos componentes da linguagem, a semiótica possibilita a redução drástica da ambigüidade e vagueza nos conceitos próprios do direito. Isso, pois, tratamos aqui de direito positivo enquanto linguagem, ou seja, sistema composto de proposições lingüísticas prescriti-vas, dirigidas ao regramento de condutas humanas, cujas unidades são as normas jurídicas.

A Semiótica distingue-se em três partes fundamentais: (i) sintaxe, (ii) semântica e (iii) pragmática, conforme formulação proposta por Charles Morris, embasada nas distinções de signo, objeto e interpretante de Charles Peirce.

A perspectiva semiótica permite a realização de cortes metodológicos, de forma a depurar o direito positivo em três planos de análise: (i) a do texto de lei, consistente em literalidade desprovida de sentido, ou seja, suporte físico (sintaxe),2 (ii) a relação do suporte físico com o objeto do mundo a que se refere (semântica) e (iii) a relação do suporte físico com os utentes da linguagem (pragmática).

Percorrendo-se as três fases supramencionadas de investigação é que se chegará à norma jurídica, enquanto unidade mínima e irredutível da mensagem deônti-ca, portadora de um sentido completo.

Sintaticamente, o direito positivo se apresenta como texto jurídico desprovido de significação, também chamado de plano de expressão ou plano dos significantes, cuja construção depende da observação das normas gramaticais e morfológicas da língua na qual se apresenta.

No plano semântico, busca-se a correspondência do suporte físico (signo) com o objeto do mundo a que se refere (significado). Esse conteúdo semântico não é conferido pelo próprio texto, o qual é totalmente desprovido de sentido, mas sim construído pelo intérprete a partir de um processo hermenêutico.

Outrossim, a investigação semântica não é possível sem a necessária investigação pragmática. O direito, enquanto fato comunicacional destinado a influir na conduta humana e dirigi-la de certa maneira, pertence ao mundo dapraxis, devendo ser analisada a relação entre emissores e destinatários dos comandos prescritivos.3

Sem ignorar a possibilidade de uso de definições sintáticas da norma jurídica, por opção metodológica, damos ênfase à preocupação semântico-pragmática da construção de sentido, mormente das normas constitucionais, que tendem a maior vagui-

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dade e ambigüidade. Nesse sentir, preocu-pamo-nos, inicialmente, em questionar a possibilidade de um mesmo suporte físico ser capaz de embasar juízos diversos sobre a constitucionalidade de uma determinada norma jurídica e quais as implicações que estas mudanças de interpretação são capazes de gerar aos receptores das mensagens do discurso jurídico.

Nesse sentir, estamos seguros de que a generalidade, vagueza e ambigüidade dos textos constitucionais, associados a um dissenso ideológico, tendem a um desacordo de valores e de fatos, capazes de afetar a segurança jurídica dos destinatários dos comandos normativos.

É pela diversidade ideológica que uma norma jurídica, construída a partir de um mesmo suporte físico, pode ser considerada constitucional ou inconstitucional. Nessa linha de raciocínio, leciona Warat que "a partir da análise pragmática pode ser levantada a tese no sentido de que em um discurso normativo, para que exista o efeito de uma univocidade significativa, deve haver uma prévia coincidência ideológica".4

3. Do controle de constitucionalidade concentrado

Restou estabelecido que as normas jurídicas são significações, construídas pelo intérprete por meio da interpretação dos textos jurídicos. Segundo Paulo de Barros Carvalho, "a norma jurídica é exatamente o juízo (ou pensamento) que a leitura do texto provoca em nosso espírito".5

Apesar da possibilidade de construção da norma jurídica por todos os receptores das mensagens prescritivas do discurso jurídico, o sistema credencia órgão de aplicação do direito - Poder Judiciário - capaz de impor uma determinada significação.

Referida significação, em se tratando de controle de constitucionalidade, poderá ser imposta sob dois modelos: (i) controle de constitucionalidade concentrado e (ii) controle de constitucionalidade difuso.

Diz-se modelo concentrado de constitucionalidade, em razão da exclusividade do Supremo Tribunal Federal em exercê-lo; por sua vez, o termo abstrato é emprego em função do âmbito de aplicação da decisão proferida, incidindo em tantas quantas forem as relações jurídicas concretas que venham a se formar ao longo do tempo.

O modelo concentrado ou abstrato aprecia as questões de inconstitucionali-dade como objeto principal da tutela juris-dicional, mediante ação prevista pela Lei Maior. A Constituição Federal de 1988 contempla as seguintes vias de controle (ações): (i) ação direta de inconstituciona-lidade, prevista no art. 102,I, "a"; (ii) ação direta de inconstitucionalidade por omissão, prevista no art. 103, § 2°; (iii) ação de-claratória de constitucionalidade, prevista no art. 102,I, "a", infine, e (iv) argüição de descumprimento de preceito fundamental, prevista no art. 102, § 1° da Constituição Federal.

O controle abstrato apenas pode ser provocado pelos constitucionalmente legitimados, previstos no art. 103 da Constituição Federal. Outrossim, a decisão proferida em sede de controle abstrato pelo Supremo Tribunal Federal produzirá efeitos dúplices, erga omnes e vinculante.

O efeito dúplice encontra-se previsto no art. 24 da Lei n. 9.868/1999, o qual dispõe que uma vez "proclamada a constitucionalidade, julgar-se-á improcedente a ação direta ou procedente eventual ação declaratória; e, proclamada a inconstitucionalidade, julgar-se-á procedente a ação direta ou improcedente eventual declaratória". Isso significa que sempre a Corte Maior irá se pronunciar a respeito da constitucionalidade ventilada nas ações de controle direto.

No controle de constitucionalidade abstrato, a norma jurídica geral e concre-

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ta a ser proferida pelo Supremo Tribunal Federal terá em seu antecedente os vícios da lei e, em seu conseqüente, a declaração de constitucionalidade ou inconstituciona-lidade.

Não é só, além da norma jurídica de cunho declaratório, o órgão julgador impõe outras normas, que regularam os efeitos daquela. Estas normas determinam os chamados efeitos: vinculante, erga omnes e temporais. De todos os efeitos próprios do controle abstrato de constitucionalidade, nos importa a análise dos efeitos temporais da decisão. Todavia, por questões didáticas, reservaremos tópico próprio para a análise.

O art. 28 da Lei n. 9.868/1999 dispõe sobre os efeitos erga omnes e vinculante, delimitando, respectivamente, os sujeitos afetados pela decisão e o seu grau de eficácia. Os destinatários da decisão serão todos os sujeitos submetidos à jurisdição nacional, vale dizer, a decisão proferida em sede de controle abstrato possui eficácia "contra todos". Por sua vez, o efeito vinculante impede que os demais órgãos do Poder Judiciário, assim como o Poder Executivo, venham a proferir juízos diversos sobre a (in)constitucionalidade da norma.

No entanto, os efeitos erga omnnes e vinculante não impedem que o próprio Supremo Tribunal Federal venha a reapreciar o juízo anteriormente proferido a respeito da inconstitucionalidade, passando a apresentar entendimento...

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