De L

AutorCunha, Jos

De Lévinas A Marx: Ética E Política Entre Transcendência E Revolução (1)

O homem do mundo liberal não escolhe seu destino sob o peso de uma História. Ele não conhece suas possibilidades como os poderes inquietos que fervem nele e que já o direcionam para um determinado caminho. Para ele, são apenas possibilidades lógicas abertas a uma razão serena que escolhe, mas mantém a sua distância eternamente. A citação acima está propositadamente sem o autor, como uma provocação ao leitor para que a partir de seu conhecimento ou de sua intuição procure um nome que poderia ter feito tal afirmação. Bem, todos aqueles que estão familiarizados com o pensamento marxiano poderiam acreditar tratar-se de uma frase de Marx. Porém, trata-se de uma assertiva de Emmanuel Lévinas. (2) Essa questão do peso da história sobre o destino das pessoas, para a qual Lévinas nos chama a atenção, vai ao encontro daquilo que Marx havia formulado na base do materialismo histórico e que expressa claramente no início d'O 18 de Brumário de Luís Bonaparte: Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles que escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhe foram transmitidas assim como se encontram. A tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo que comprime o cérebro dos vivos. (3)

Essa pequena provocação inicial pretende revelar o propósito deste texto, que é buscar pontos em comum ou fronteiras que permitam uma aproximação entre os pensamentos levinasiano e marxiano. Todavia, é de se reconhecer que existem grandes diferenças entre os dois autores, a começar pelo fato de que Lévinas concentra seus trabalhos no campo da ética e Marx concentra seus trabalhos no campo da economia política. Além disso, Lévinas parece escrever sob a perspectiva da entrega e da doação, enquanto Marx parece escrever sob perspectiva da conquista e da emancipação. Enfim, há boas razões para se afirmar as diferenças dos dois pensamentos e, até certo ponto, a impossibilidade de conciliação entre ambos.

Todavia, como nos lembra Bensussan, o próprio Lévinas não cessou de conferir mérito ao marxismo por ter revogado e evitado toda a hipocrisia do sermão, toda palavra oca, todo romantismo... toda edificação, todo chamado ao romantismo, em nome da escassez. (4) Em uma entrevista publicada em 1983 pela Revista Esprit (5), Lévinas, ao ser diretamente indagado sobre a possibilidade da relação de sua filosofia com o marxismo, responde dizendo que o marxismo convida a humanidade a reclamar o que é do meu dever dar-lhe, e que o marxismo tomou o Outro a sério. (6) É como se o pensamento de Lévinas e de Marx se encontrassem vindos de direções opostas: enquanto o primeiro fala de responsabilidade e doação, o segundo fala em emancipação e exigência. Porém, ainda que vindos de direções opostas, ambos precisaram empreender uma crítica radical, denunciar o aviltamento do humano escondido por detrás de gracejos pseudo-humanistas, romper com o pensamento filosófico dominante e instituir as suas reflexões a partir de um não-lugar, isto é, uma transcendência ou uma revolução. Nesse sentido é que Bensussan afirma: eu diria que, se há um ponto de encontro entre os dois [Lévinas e Marx], seria na "Justiça" e na "Revolução", nas demandas que formam a alteridade radical. (7)

Lévinas costuma dizer que é preciso seguir pegadas ou buscar vestígios. Então, buscarei os vestígios dos pontos de contato entre os dois autores a partir de quatro perspectivas: i) crítica do idealismo; ii) insubmissão diante da totalidade; iii) sociedade, justiça e profecia; e iv) transcendência e revolução. Em todas essas perspectivas estarão presentes as pegadas de uma alteridade radical, como assinalou Bensussan.

I) Crítica do Idealismo

Tanto Lévinas quanto Marx em suas respectivas abordagens ou metodologias de investigação rejeitaram o idealismo e lhe fizeram críticas contundentes. Marx, com inspiração em Epicuro e Demócrito, trabalha sob o prisma do materialismo. Já Lévinas, com inspiração em Husserl, trabalha sob o prisma da fenomenologia. Não obstante materialismo e fenomenologia sejam abordagens ou métodos distintos, ambos convergem no sentido da crítica do idealismo e da primazia para a realidade e os sujeitos reais. Ao esboçar sua crítica da economia política, Marx afirma expressamente: Parece ser correto começarmos pelo real e pelo concreto... (8) Da mesma forma, a ética levinasiana é marcada pela proximidade de outrem, por uma presença concreta e material, razão pela qual Lévinas não hesitou em dizer que a matéria é o lugar próprio do para-o-outro. (9) A maneira de pensar tanto de Marx quanto de Lévinas implica uma concretude profunda, de modo que não se permita ao raciocínio que as representações substituam as pessoas reais. Por isso Lévinas enfatiza: o sujeito é de carne e osso, homem que tem fome e que come, entranhas numa pele e, portanto, susceptível de dar o pão da sua boca ou de dar a sua pele. (10) No lugar das idealizações, Lévinas e Marx propõem o real como o lugar adequado para o pensamento, onde o desafio maior é justamente escapar das armadilhas das fantasias e devaneios idealistas que a razão teórica fez parecer sensatas para boa parte da tradição filosófica. Esse lugar--o real--implica, ao mesmo tempo, uma saída de si mesmo para enxergar o outro e ser tocado por ele, por suas carências e dificuldades. Nessa mesma linha, ao tratar dos aspectos propriamente materialistas do pensamento levinasiano, Gerard Bensussan nos lembra de que tanto Lévinas quanto Marx assumem o árduo trabalho de rejeitar o idealismo para inventar, encontrar, construir um outro lugar para o pensamento--que é comandado pela figura obsessiva do Real. (11) O pensamento situado nesse locus se depara com a vida factual, palpável e tende a substituir especulações por práticas concretas que busquem uma saída para as amarras que oprimem o humano e diminuem a vida, que asfixiam o existente. Essa saída, para Lévinas é a responsabilidade própria da ética da alteridade, já para Marx é a crítica da economia política, esse continente que, como diz Bensussan, está situado nos antípodas do "céu" dos filósofos. (12)

Lévinas é contundente em sua crítica ao chamar nossa atenção para o fato de que o liberalismo situa a liberdade no campo da razão e, assim, produz racionalmente um mundo idealizado, fora do real. (13) Assim como o mundo é idealizado, o homem também é idealizado pelo liberalismo, como se vivesse exclusivamente por sua razão e suas escolhas, imune às condições materiais e históricas de sua própria vida. Essa perspectiva que tanto incomoda Lévinas, segundo ele próprio, foi primeiramente questionada na história ocidental pelo marxismo. (14) Segue Lévinas falando sobre o marxismo:

O espírito humano não é para esta doutrina uma pura liberdade, uma alma que voa para além de todos os laços. Não é mais a razão pura que faz parte de um reino de fins. O espírito é vítima das necessidades materiais. À mercê de uma matéria e de uma sociedade que não obedecem mais à varinha mágica da razão, sua existência concreta e submissa tem mais importância, mais peso do que a razão impotente. A luta preexistente pela inteligência impõe decisões que ela não escolheu. (15) De acordo com esse entendimento do marxismo, Lévinas reconhece a importância da compreensão dessa materialidade do ser social para ter em conta uma concepção não liberal e não idealizada de sujeito, isto é, concepção que entende cada ser humano não apenas como espírito que cria, mas como ente constituído a partir de uma corporeidade que caracteriza seu próprio ser. Claro que somos mais que o corpo, todavia o corpo é a base do nosso ser. Em outras palavras, isso equivale a dizer que o eu transcende o corpo, mas não há eu sem o corpo. Assim, o sentimento de identidade implica uma união indissolúvel entre espírito e corpo, de maneira que o modo de ser do espírito e de sua manifestação depende do corpo, se liga ao corpo. (16)

Lévinas nos fala de um sentimento do corpo como um dado biológico ou materialidade intrínseca da condição humana. Com base em tal sentimento é possível compreender que não existe liberdade do espírito fora da presença corpórea. Ser eu, implica ter um corpo. E a corporeidade humana invoca uma corporeidade social, não à maneira de um organicismo, mas como meio de crítica das estruturas sociais. Assim, as análises das formas de sociedade e das estruturas políticas devem levar em consideração não apenas supostas manifestações de vontades abstratas, mas a corporeidade mesma das pessoas, as condições em que estes corpos estão engajados. Daí Lévinas, fazendo coro com Marx, critica: as formas da sociedade moderna fundadas sobre o acordo das vontades livres, aparecem não apenas como frágeis e inconsistentes, mas como um todo falsas e mentirosas. (17) E numa frase com sentido muito semelhante àquela dita por Marx em O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, Lévinas assevera: somente sob o peso de toda a sua existência, que carrega um legado sobre o qual ele não poderá mais voltar seus passos, o homem dirá seu sim ou não. (18)

Essa corporeidade como algo próprio da materialidade que constitui a ética levinasiana, invoca a ideia de sensibilidade, também presente na obra de Lévinas. Em Totalidade e Infinito, Lévinas trata da sensibilidade como a maneira pela qual o eu realiza o seu para si a partir da fruição de elementos materiais. Como ser sensível o eu vive na medida em que desfruta dos elementos reais que constituem a vida. Diz Lévinas, vivemos de "boa sopa", de ar, de luz, de espetáculos, de ideias, de sono etc... (19) Ordenamos os elementos reais da vida conforme nossas necessidades ou egoísmo próprio, o mundo material é, de certa forma, consumido pelo eu no seu desejo de satisfazer-se a si mesmo. Nada disso é feito por representação ou como atividade do pensamento, mas como ato movido por sentimento. Eu "sinto" fome ou "sinto" prazer ou "sinto" dor, então procuro alguma satisfação...

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