Intervenção do estado na liberdade contratual: Análise da teoria da utilidade negocial
Autor | Uinie Caminha - Elisberg Francisco Bessa Lima |
Páginas | 201-217 |
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O presente artigo tem por escopo Oaferir os reflexos do extremismo da atual concepção social dos contratos, ressaltando os riscos de um retrocesso nas relações entre o Poder Público e os seus cidadãos. Demonstra-se que direitos e garantias individuais passam a ser relativizados em nome de uma ordem social, promovendo desmedidas intervenções estatais na autonomia privada do cidadão.
A evolução histórica da ordem contratual brasileira evidencia a natureza cultural do instituto jurídico denominado contrato, ou seja, atribui-lhe valor gerado pelos dinâmicos anseios e interesses sociais. Após a superação do liberalismo econômico instituidor do Estado Liberal do século XIX, por não mais condizer com a aspiração da sociedade do século XX, instauram-se a ordem social e suas vertentes, fundando-se, com isso, o Estado Social.
Os reflexos dessa alteração são incorporados pelo Direito, especialmente em sua ordem contratual, na qual passa a prevalecer a função social dos contratos, em detrimento da sua essência jurídico-econô-mica. Nesse contexto, critérios legais não bastam para aferir a validade de um contrato por parte do Poder Público, necessariamente, além de sua legalidade, passa a ser exigida a sua legitimidade.
As manifestações de vontade dispostas nos contratos passam a se submeter a análises que vão além do aferimento da legalidade, estabelecendo-se, também, sub-jetivos critérios de legitimidade social das disposições acordadas.
Exemplifica-se a presente problemática com a Teoria da Utilidade Negocial, aplicada pelo Poder Público no exercício do seu poder de tributar, pela qual são desqualificados contratos, em razão da alegada falta de propósito comercial e de exclusivo interesse de promover elisão fiscal, o que, na ótica do fisco, o instrumento contratual ilegítimo.
Sendo assim, no decorrer deste trabalho, analisam-se a atual concepção social do contrato e seus reflexos para a ordem econômica e para a relação entre o Poder
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Público e o cidadão, especialmente na seara tributária. Citam-se algumas indagações orientadoras: a transformação histórica dos anseios sociais gerados pela gradativa evolução do Estado Liberal para o Estado Social influenciou nas concepções e nos princípio da ordem contratual brasileira? Qual a implicação da preponderância da função social dos contratos à ordem jurídica e econômica? A relação entre os sujeitos tributários sofre alguma influência em razão da relativização das disposições contratuais promovida pelo aferimento da legitimidade social dos contratos? Para tanto, o presente trabalho é desenvolvido pelos tópicos abaixo descritos:
Inicialmente, busca-se evidenciar o contrato como valor cultural, ou seja, fruto das transformações sociais e das relações intersubjetivas, em que a dinamicidade das necessidades humanas promove-lhes diversas concepções: social, econômica, política e jurídica. Para tanto, explana-se acerca das concepções dos contratos, partindo do Estado Liberal para o Estado Social, com objetivo de evidenciar a atual preponderância da função social dos contratos em detrimento das suas características jurídico-econômicas.
Evidenciam-se, também, os reflexos da atual predominância da função social dos contratos nos princípios e nas classificações contratuais, ressaltando as suas características e os seus institutos jurídicos.
Discorre-se, ainda, sobre a concepção econômica dos contratos e a sua relação com o princípio da função social, notada-mente diante de uma acentuada publiciza-ção do ordenamento civil brasileiro. Os impactos dessa socialização dos contratos são analisados sob a perspectiva dos custos de transação negociais.
Ultima-se o presente trabalho exemplificando os riscos gerados por uma acentuada concepção social dos contratos, mediante a aplicação da Teoria da Utilidade Negocial por parte do Estado no exercício do seu poder de tributar, mesmo sem qualquer respaldo legal.
Por conseguinte, este trabalho visa ressaltar o necessário comedimento na integração das funções social e econômica dos contratos, em respeito à natureza jurídica destes, resguardando os direitos e garantias individuais, especialmente a livre iniciativa e a liberdade contratual e de contratação.
As instituições contratuais de uma determinada sociedade espelham os traços socioculturais nesta existentes. As relações intersubjetivas são amparadas por regra-mentos, sejam de ordem pública ou privada, compostos de ideais caracterizadores dos mutantes anseios vividos em cada época, por cada coletividade.
O caráter instrumental do contrato que o torna uma ferramenta de realização dos interesses dos indivíduos faz deste instituto espelho da realidade social, econômica e política na qual ele é desenvolvido. Os cambiantes valores culturais, por expressarem evolução das vontades humanas, tornam o contrato um instituto jurídico necessariamente dinâmico.
Ainstrumentalidade do contrato guarda uma perspectiva variante, pois é concebida pelo determinismo cultural, adaptando-se às instáveis necessidades socioeco-nômicas dos homens. Se o predomínio cultural de uma coletividade é o religioso, necessariamente feições religiosas terão os contratos; se é o econômico, características econômicas neles prevalecerão; se é social, funções sociais por eles serão assumidas.
Tal realidade se torna mais evidente a partir da concepção de contrato, aparentemente simplista, porém clarividente, de JeffersonDaibert (1977, p. 16), quando expressa: "Concluímos, pois que o que caracteriza [o contrato] é o acordo simultâneo de vontades, seja qual for a maneira destas
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se manifestarem". Percebe-se, pois que, nessa expressão, assume o contrato o instrumento que reflete a maneira como os indivíduos interagem entre si, espelhando assim os traços socioculturais do ambiente em que disciplina.
Jorge Mosset Iturraspe (1998, p. 11), baseando-se no Código Civil argentino, conceitua contrato: "El contrato, definido en el artículo 1.137 del Código Civil como el acuerdo de varias personas sobre una de-claración de voluntad común destinada a reglar sus derechos, es una de las especies dentro del género acto o negocio jurídico". Ou seja, o autor define o contrato como acordo de vontade comum destinada a regrar seus direitos, sendo uma das espécies dentro do gênero negócio jurídico. Ressaltando semelhantes características, como negócio jurídico e manifestação da vontade, Silvio Rodrigues (2002, p. 9) conceitua contrato da seguinte forma: "Negócios jurídicos bilaterais, isto é, os que decorrem de acordo de mais de uma vontade. (...) Foi o que fez Clóvis Beviláqua, nem sempre com aplausos de todos, ao afirmar que 'o contrato é acordo de vontades para o fim de adquirir, resguardar, modificar, ou extinguir direitos'. Por conseguinte, cada vez que a formação do negócio jurídico depender da conjunção de duas vontades, encon-tramo-nos na presença de um contrato, que é, pois o acordo de duas ou mais vontades, em vista de produzir efeitos jurídicos".
Já sob a concepção econômica do contrato, Pinheiro (2007, p. 113) evidencia a incorporação dos valores da segurança jurídica e da eficiência econômica para a efetivação da função contratual na sociedade, conforme se expressa abaixo: "Apenas por meio dos contratos é que se podem realizar investimentos com vistas a reduzir riscos no futuro, tema de que vamos nos ocupar mais adiante. A natureza do contrato é a promessa de cumprimento recíproco - prometer vem do latim promitere, que significa 'atirar longe', obrigar-se verbalmente ou por escrito a fazer ou dar. Só há eficiência em uma economia quando é possível assegurar que tais promessas serão cumpridas. Ou seja, nos exemplos acima, só valeriam como verdadeiros contratos se pudessem ser de alguma forma liquidados ou, em oposição, se não houvesse o cumprimento de promessa, se algo pudesse ser feito para induzir aquele que prometeu a cumprir a palavra".
Em todas as referidas abordagens acerca de contrato, a manifestação de vontade é evidenciada como característica inerente a este instrumento. Logo, para uma substancial compreensão dos contemporâneos institutos da teoria contratual, especialmente dos seus princípios e das suas concepções econômicas, faz-se necessária uma breve análise histórica das manifestações das vontades que contextualizaram o contrato na passagem do Estado Liberal para o Estado Social.
O processo evolutivo dos contratos é reflexo das transformações sociais, econômicas e políticas vividas pela civilização humana, particularmente a partir do século XVIII, quando a influência do medievo religioso cede espaço para valores que comporiam as forças capitalistas, como a liberdade econômica e a institucionalização do lucro.
Rodrigues Junior (2002, p. 27), acerca da superação das concepções medievais, que gerou o denominado Estado Moderno, afirma que: "O Feudalismo e seus espectros, dentre os quais a ideologia da Igreja, as lições da Escolástica e da Patrícia, a vedação à usura e ao anatocismo, são lentamente expurgados ou combatidos no panorama europeu. O ponto de culminância de todo esse processo é a Revolução Francesa de 1789, quando o absolutismo deixa de serútil aos capitalistas. O rei, após disputar com forças feudais e unificar o estado, perde sua importância, pois não mais interessavam à burguesia a manutenção das cor-
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porações de ofício e a intervenção direta nos assuntos econômicos".
Os...
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